«Da ausência do abraço» em tempos de pós-poesia: propostas de Monika Rinck
«A questão sobre a verdade não é mera questão de saber se algo de fato acontece, se é fingido, “encenado”, a questão sobre a verdade inclui o vínculo entre aquilo que vemos (seja realidade ou teatro) e o real, que o estrutura.» Dessa premissa lida em Alenka Zupancic — Warum Psychoanalyse?, Diaphanes, 2009 —, a artista Monika Rinck (1969), que mora em Berlim, estabelece uma busca pelo sentido da poesia, e o faz por meio de provocações sucessivas em forma de ensaios e poemas. Pressuposta é a linguagem que deve superar o caráter estético, compreendendo-se como ciência social, melhor dizendo: as tarefas e possibilidades da linguagem cresceram em todas as frentes e defensivas. De tal modo se estenderam que, a seu ver, doravante seria possível falar exclusivamente pela poesia: com colisões metafóricas de fragmentos desiguais, análises, músicas, cantos, intervenções, certezas menos incisivas, clarezas mais precisas, sons mais suaves, toques gentis.
Na aproximação entre poesia e conceito, o debate de que participa (Spekulative Poetik) vem atualmente sublinhando o valor figurativo da «demora» na elaboração de estruturas criativas. O conceito fundamental seria «repouso» (Rast): o instante de pouso na pressa.
O contingente isolamento físico a que todo o Planeta se submete devido aos riscos de contaminação com o novo corona-vírus acaba por confirmar a justeza premonitória das cautelas que Monika Rinck anuncia no prefácio do livro Champagner für die Pferde — ein Lesebuch (Frankfurt am Main: Fischer, 2019) e que norteiam seus textos.
A poeta sempre se movimenta em campos artísticos diversos. Ilustra esses enlaçamentos a aproximação entre as operações da poesia e o ofício da jardinagem. E a escritura de poemas ela considera um «cerimonial rítmico» que desempenha as funções mais diversas. Assim, para apresentar sua obra, seleciono e traduzo o ensaio «Jardinagem de vãos — o devir do jardim — sobre os trabalhos de Weinberger e Weinberger», bem como os poemas «O último idílio», «Poço» e «Da ausência do abraço».
Maria Aparecida Barbosa
Jardinagem de vãos — o devir do jardim sobre os trabalhos de Weinberger e Weinberger[1]
Provém de Rosmarie Waldrop o conceito do Gap Gardening — da jardinagem que se volta aos vãos, às zonas de transformação. O conceito se prestou à poeta para a descrição das propriedades do poema em prosa, em que o final definido do verso se desprende conscientemente para o lado da página e permite à margem estender-se adentro com um ambiente textual em substituição ao vazio interior — proporcionando aberturas, descontinuidades, fendas semânticas e deslocamentos de significados. «Voices, planted on the page, do not ripen or bear fruit. Here placement does not explain, but cultivates the vacancy between them. The voices pause, start over. Gap gardening which, moved inward from the right margin, suspends time. The suspension sets, is set, in type, in columns that precipitate false memories of garden, vineyard, trellis. Trembling leaf, rules of black thumb and white invisible angle of breath and solid state.»[2]
Jardinagem de vãos — uma formulação propícia também para se referir ao modo de operar de Lois e Franziska Weinberger, cujo trabalho em campo poético encontra seu lugar na posição marginal, nas lacunas que a própria urbanização ajudou a criar. O terreno baldio é plantado e cuidado, mas não com a finalidade de descaracterizá-lo completamente ou de torná-lo harmônico com o entorno. «Sem paisagem, sem obra nem história, sem acidentes ou acontecimentos singulares que propaguem ao redor alguma empresa regional, inesperada para quem vem da vizinhança.»[3] A fronteira é a expectativa do observador e sua revisão, os trabalhos mesmos são de grande abertura. Algo vai se transformar consideravelmente num ambiente pautado como novo, a margem adquire uma considerável valorização. Ou seja, o foco precisa se voltar a outro ponto que não seja o centro. «Act so that there is no use in a centre», indica Gertrude Stein a sis leitoris[4] logo na primeira frase do capítulo «Room» em Tender Buttons.[5] Trata-se de recintos, cujo centro está sendo negociado, sobre quartos negligenciados ou simplesmente deixados sozinhos e sua flexibilidade resiliente. O trabalho de horticultura do casal Weinberger tem lugar em áreas abandonadas, áreas incultas nos espaços urbanos, em terrenos não cultivados ou degradados. Somam-se a isso jardins móveis plantados em sacolas, em baldes, em contâineres com rodas cheios de terra proveniente de lugares que não despertam interesse. São cooperações singulares em solo provisório, uso intermediário com auxílio de plantas sem lobby, das denominadas plantas ruderais. «Das über Pflanzen / ist eins mit ihnen» (o tocante a plantas / está em uníssono com elas) foi o título do trabalho com que Weinberger participou em 1997 na Documenta X em Kassel (Alemanha): ele plantou um trecho desativado de linha férrea na Estação Ferroviária Central com plantas ruderais do leste europeu e com isso remetia não somente à importância das conhecidas invasões biológicas (que termos!), mas igualmente da imigração, do assentamento do próprio e rejeição do estrangeiro — contextos que se impõem já na indagação concernente à definição de plantas ruderais.
«Toda definição é uma ilha», escreve Michel Serres, «o que nega ou recusa determina, um pedaço de terra cercado de água por todos os lados»,[6] um pedaço de terra, quinhão de ribanceira, um talude limítrofe em estradas de tráfego intenso, faixas verdes sem controle que cruzam regiões industriais. O trabalho com conceito conduz diretamente às indagações sobre natureza tocada e intocada, às questões a respeito de impactos nocivos ao meio-ambiente — seria o caso? E se for, nocivo a quem? Plantas ruderais são definidas pela sua localização relacional: não existe planta que seja originalmente, enquanto evolução, uma planta ruderal.
Elas se alastram por ecossistemas avariados. Ou, se preferirmos, são sua porção humana. Uma sociedade de cultura vegetal, independente de ser versão tardia da mesma. Todavia, como eu defino o prejuízo, como fundamentá-lo? Essas plantas demandam tempo, parecem absorver em si as condições inóspitas contra as quais prevalecem e, assim, tornam-se plantas cultivadas per se. «Saqueada pelos que passam sem ficar, dela só vemos as ruínas. Nunca tivemos sob os olhos a não ser os restos de uma terra devastada», escreve Michel Serres, «vivemos em meio a lembranças.»[7]
O conceito de vegetação ruderal é derivado do latim rudus, ruderis; rudimento, escombro, no plural escombros de concreto — essas plantas crescem até mesmo no solo mais árido, embora não em qualquer um, «entre elas / principalmente plantas nativas / exigem aura precisa, afinada para sua reprodução».[8] Mas onde quer que se estabeleçam, nada deve ser feito, elas cuidam de si mesmas. Basta certa demora. Horticultura do baldio — essas plantas sem delongas preenchem a lacuna, surpreendendo. Desse modo, a artista Judith Hopf pôde encontrar o sumagre como seguro identificador em projetos de construção urbana abandonados. «Na vizinhança das placas de construção sua expansão me pareceu mais observável: a placa na área de construção está lá, o terreno está preparado como lacuna urbana, de alguma maneira o arbusto surge ali imediatamente e então, o que é curioso, por um longo tempo quase nada acontece nesse local de produção, que na vizinhança dessa enigmática planta anuncia grandes feitos. Como se explica isso — quem melhor o entende, que aqui nada acontecerá: o sumagre, ou o construtor que parece ignorar o surgimento desse arbusto.»[9] Fica patente a ideia de um crescimento longe do humano, que, para além do apocalipse, nem se importa com o fim dos tempos tampouco com o fim do mundo, indiferente e com tristeza diligente. Assim pelo menos pareceria ao homem que, contudo, não está mais lá para encontrar o seguinte: crescimento persistente, plantas lenhosas perenes pelas quais o vento sopra sem olhares testemunhas — e ao redor estendem-se espaços infinitos.
E então, vinda do parque, cheguei a Pankow, virei à esquerda e perto de uma série de palacetes restaurados, à altura de uma pessoa ali por detrás de grades um campo verde se move para trás e para fora: plantas herbáceas meio desbotadas, arbustos sumagre balançando em conjunto, a elegância flexível e as folhas falciformes, de certa maneira agradáveis, eu penso, e o movimento é cheio de entusiasmo, talvez me engane, o lúpulo se debruça gotejando pela borda das grades, talvez seja novo aqui, imagino com urtigas até os joelhos, o vento também passa por esse estamento; há tanto plástico pelo chão, garrafas, sacolas nos galhos, um jardineiro generoso, talvez maníaco-depressivo, simplesmente permitiu o que me parece exagero proposital. Veja só, uma corda apodrece ali, lá estão milhares de papeizinhos coloridos. Os terrenos dos artistas Weinberger são diferentes — têm pouco em comum com esse bioma de acúmulo prolífero. Na área de 500 metros quadrados localizada nos arredores de Viena, cuja vegetação tem características semelhantes à tundra, os Weinberger tanto plantaram como também desbastaram/desramaram, «a fim de manter o estado dinâmico do movimento, a fim de evitar e prevenir um crescimento excessivo dos mais fortes e até o aumento das estepes / o surgimento de arbustos e árvores que tudo cobrem e sombreiam / e, com isso, preparar a terra para a germinação das variedades baixas.»[10] Então, ocorre-me o poema «Plástico», de István Kemény.[11] Ei-lo:
Plástico
De repente o plástico estava lá,
Embora ninguém nunca o tivesse inventado.
Mais de cem cientistas alemães com penteadas
Barbas o inventaram ou talvez ninguém.
Plástico não teve pais.
Cresceu em orfanatos.
Ninguém jamais o amou,
Estragava-se, leve e fedorento,
Quando se queimava. Nós o empregávamos como sacola de compras,
Como balões de aniversário, como quase tudo,
Mas se alguém o xingava, não
O defendíamos.
Por desforra nunca sumia,
Nos sorria sarcástico de cima dos espinheiros,
E se à luz crepuscular o tomávamos por caveira,
Isso causava vergonha à morte.
Em certas ocasiões… mas nunca
Teve ocasião, nunca.
Ele veio para ficar. Nós sabemos que são necessários 450 anos, até que uma garrafa plástica se desfaça. Trata-se de uma impressionante durabilidade, sim, é notável essa presença vital, prova evidente de que sobreviverá a todos nós. No poema de István Kemény é o plástico que, como paródia desatrelada de memento mori, pode causar vergonha à morte e para tanto não carece mais do que de sua capacidade tenaz de perdurar. Não o ouço chiando e ciciando ao vento? Um objeto indigno, no qual à primeira vista somente são legíveis as consequências de uma duração irrefletida. Não seria um pequeno triunfo, por outro lado, ver a morte mascarada de maneira tão árida e miserável? O recipiente plástico, engarranchado no arvoredo, desperta também a faculdade reflexiva do homem em face de uma ruína no plano, ele zomba da força imaginativa e parece pairar acima do sublime, com todo seu desejo pejorativo pelo monstruoso, embora nem seja volumoso. É um pathos frívolo, mas de certa forma bastante fecundo, ter na visão da caveira escarnecedora do saco plástico uma ruína resistente, temerária, disponível nas mais diversas cores.
Num trabalho anterior de Weinberger, de 1977, vemos, em frente à paisagem alpina do Tirol, uma cerejeira adornada com cores: Baumfest (festa da árvore).
Algumas pontas de galhos revestidas de plástico colorido feito patinhas de um cachorro enfermo, enfuna-se na copa a sombra negra de uma lona, coletores de vento inflados, centenas de enxertos aleatórios, como se a árvore estivesse numa pista de voo de sobras coloridas e, movimentando-se, ela mesma fosse carregando tudo consigo. Que festa! A coisa toda, porém, não tem nada de sarcasmo, como seria de se supor. Além disso, a montagem cuidadosa e exuberante, a meu ver, não quer sugerir críticas irônicas voltadas ao inorgânico na natureza. Em vez disso, a árvore parece ser o objeto de uma decoração ritual, imagine-se uma religião sincretista que a queira dessa maneira — e especule sobre o seu singular culto.
Não há matéria-prima além da mediação. Imagens atemporais obscurecem a temporalidade da verdade, a temporalidade da natureza. Imagino um idílio imunizado que extrai sua força precisamente de sua suposta perturbação. O idílio perturbado é o idílio completado. O escritor Jean Paul chamava de idílio a completa bênção na delimitação, ele teria fronteiras, «uma vida cercada num jardim caberia aos que com o idílio foram abençoados, que lograram arrancar para si uma folha do livro dos abençoados»[12] — tudo o mais se configura como moldura. Mas aqui nos deparamos com uma abertura. Contra a repressão e a ameaçadora presença insistente do reprimido — pois o que se recalca está lá — lidamos com a afirmação tangível contra a labuta do purismo em campo aberto.
Michel Serres esboça no livro Le Parasite um cenário memorável. Aquele que quer comunicar sem perturbações seria comparável com o que incendeia a própria casa, para se poupar de ouvir ruídos de ratos correndo e chiando no sótão. «Feito isso, eu a reconstruo sem rato. Mas para tanto, como pedreiro devo trabalhar sem dormir, sem virar as costas e sair por um instante, sem comer. Mas à noite, os ratos retornam aos alicerces e à refeição.»[13] Não somente o rato sempre fez parte da casa, mas também ignorância, erro e confusão fazem parte do conhecimento — ele é a casa, prossegue Serres. Por analogia pode-se dizer: o plástico é o jardim. Ele é até mesmo o idílio.
ALIEN INVADERS
Quem quer que acentue — tendo em vista a natureza sedentária das pessoas — sua intrínseca proporção de vida vegetal, tem de lembrar que o ser humano tem pés, não tem raízes. A rejeição é uma função do sedentarismo — ou, forçando a falar com Rousseau: o primeiro que cercou um campo e gritou isso é meu!, trouxe consigo crimes e misérias. Mas não é esse o caso. Assim como já revela a infeliz expressão invasão biológica, que se ocupa mundo afora com o fenômeno dos neófitos, a abrangência do conceito nativo (correlacionado com o movediço) é extremamente permeável.
Lois Weinberger lamenta que às vezes a recepção do seu trabalho para a Documenta X compreendia que as plantas fortes e exóticas reprimem as plantas frágeis e nativas. «As plantas dos países do Leste e do Sul europeu naturalmente têm a ver com migração, elas migram junto com as pessoas. Esse é, contudo, um único aspecto do trabalho. Mas não se trata de equipará-las aos problemas migratórios dos seres humanos. Certamente que não. Eu naturalmente não posso equiparar plantas e pessoas.»[14] O benefício da metáfora aqui ameaça nivelar rasamente a diferença — bem como a polissemia da operação. Já está se traindo a língua que fala em infestora ou praga ao se referir ao picão branco (Adventicia parviflora), que Napoleão teria introduzido (em alemão Franzosenkraut, literalmente erva do francês) em jardins alemães, e no Brasil se diz que é originário do Perú, donde teria se espalhado pelos jardins da América e da Europa e por aí afora. Toda ocorrência de R-selected species, em que se incluem as espécies ruderais e também as espécies de plantas pioneiras, tem imediata recepção no reservatório de sintomas das angústias caóticas. R está para rate of increase a que se chega subtraindo a taxa de mortalidade de uma espécie da sua taxa de natalidade. Adicionais fatores têm pouco impacto sobre as incidências desse tipo de populações. R-selected species são consideradas adaptáveis, pouco exigentes, oportunistas e até mesmo parasitas. É possível notar como as acepções começam a apresentar nuanças perigosas. O que se concebe como erva daninha ou praga e por quê fornece dados sobre a contraparte: aqui encontra a definição de daninho o sentido da projeção oposta à autoimagem ameaçadora.[15] Quem adentra meu jardim? Se uma planta é ou não nativa é uma questão de temperatura, condições do solo e zona climática, e não de fronteiras nacionais. As espécies de plantas, que antes da última era glacial eram nativas da Europa Central e durante a era glacial foram extintas, não são capazes de superar a jornada pelos Alpes com o processo de aquecimento da terra. Historicamente, são plantas nativas. Além disso, em uma variante reacionária da ecologia, rege a crença de que as plantas nativas, por assim dizer representantes naturais do país, tendem a ser endêmicas, ocorrendo exclusivamente num bioma, ou seja, seriam pacíficas e corretas, o que obviamente não é o caso.
Esses esforços tiveram seu ponto alto na política paisagística nacional-socialista, que em 1941 pretendia proibir por lei o cultivo de plantas estrangeiras na Alemanha, as miúdas Impatiens parviflora (em alemão Mongolenkraut, literalmente erva do mongol) foram combatidas como uma invasora bolchevista, que ameaçava a beleza da vegetação nacional.[16] No entanto, sob a perspectiva hodierna, não é suficiente idealizar as transferências descontroladas, o que seria metafórica perda, que negligencia as condições dadas do entorno natural e vai de encontro ao trabalho com a natureza. Nesse sentido os jardins transportáveis dos Weinberger desdobram seu potencial. Mas em muitos outros sentidos também. Senão se incidiria na arbitrária limitação da leitura que perde de vista a margem móvel e a exuberância poética dessas obras, enquanto os sentidos idiossincráticos se impõem no mapa histórico da jardinagem e paisagismo. O jardim esquecido em uma caixa, o terreno baldado, o jardim transportável pelas mãos de um monge confuso, recipientes com terra apanhada em locais distantes, a maneira como se mantêm dispostos, estranhamente deslocados em seu pesadume e em seus vasilhames coloridos e inflados, irradiando um singular e falso desejo de voltar à origem que talvez jamais tenha tido, ou teria? Pólen, olhe só, isso está virando polenta. Temperando opostos, criamos um prato.
Jardim e Terreno
O jardim prototípico é o paraíso. Até mesmo em condição que há tempos é pós-paradisíaca pode-se ainda ouvir a reverberação nítida da fascinação ancestral. A palavra oriunda do persa tem acepção de «jardim do senhor». Esse jardim, portanto, tem dono, assim como a narrativa oriental invariavelmente menciona o senhor do jardim. A etimologia da palavra jardim mostra prontamente o seu intrínseco conflito: o jardim se define menos pelas plantas, trilhas, pelos canteiros e pela ornamentação, do que pelas cercas, por ser um recanto confinado — aproximando-se ao grego chortos, terreno — pastos, pátio — rodeado de sebes ou de muro; na etimologia germânica a palavra se afina com a acepção de gürten.[17] De maneira semelhante a sebe — ou cerca-viva — marca a barreira da propriedade, em alemão «die Hecke [a sebe] provém de hegga — hegen [cuidar, nutrir]; e o verbo hegen “cercar com plantas em torno, fechar o local, para assegurar o direito, cuidar, proteger, conservar [...]”»[18] A exclusão ao que tudo indica se dá em função do cuidado. Essa talvez seja a razão pela qual Weinberger optou no contexto de seus trabalhos pelo conceito de terreno (Gebiet) em que provisoriamente e sem grandes circunstâncias alguém se instala, assumindo assim o espaço livre quase paradisíaco, como Franziska Weinberger fez com uma cascalheira abandonada nos arredores de Viena. Lá o casal de artistas depositou suas plantas. É um ponto de virada contra a posse inquestionável de certos espaços, a cuja vulnerabilidade Serres aponta: «[...] isso é meu. Isso é meu porque isso está fechado. Não é mais meu, é menos meu se tiver um buraco na cerca viva, não um buraco, mas uma ferida. Esse jardim é de algum modo meu corpo, ou a extensão de meu próprio corpo. Ele está em ordem, não será mais meu ou será menos meu se estiver em condição degradada.»[19]
Quem se encontra num hortus conclusus, está evidenciando metaforicamente o foco à internalização. O espaço não inspira barbárie e o gozo negativo do selvagem desregramento, que para Kant[20] anda de mãos dadas com a inibição das forças vitais, essas por sua vez aguardando a sua tanto mais forte efusão, inapropriada ao poder do julgamento e vigorosa à imaginação. Aqui, no jardim cercado, disponho de meras porções de minha força imaginativa, em extensão inversamente correlacionada ao incremento da contemplação. Se eu desmurar o hortus, a recíproca será verdadeira. Um calafrio provoca o poema Averno, de Louise Glück, no qual o fazendeiro supõe que poderia lidar com as consequências do incêndio do seu campo — até que um dia a primavera chegou:
The terrible moment was the spring after his work was erased,
when he understood that the earth
didn’t know how to mourn, that it would change instead.
And then go on existing without him.[21]
Ou, como Lois Weinberger escreve: «A intuição de que cravos silvestres e urtigas serão as flores da sepultura nutre a ira contra essas flores.»[22]
O desvelo também cultiva um espaço. Lois Weinberger, inclinando-se, realizando as tarefas mais sutis no tempo do jardim, fala de um «devir do jardim» (Vormir des Gartens). Este é o tempo que a planta leva para estar onde não estava antes. O que está no porvir é limitado e ilimitado; acho que o tempo é como um jardim no seu devir. Ele não precisa de delimitações, já tem os próprios limites. Recuperar ao estado bárbaro o que não é bárbaro nem cultivado, mas que simplesmente não é ou ainda não é — e se estiver denso, desbastar —, retornar ao trabalho de abrir uma lacuna. Jardinagem de vãos: movo a planta para as lacunas. O jardim mesmo, diz Weinberg, deve estar abaixo do visível, na terra; não, ele deve ser a terra da qual brota:
Jardins têm lugar sob a terra
Quer dizer estão embaixo
você submerge em direção a eles
esta é a única maneira de percebê-los — e sobre a terra — efeitos segmentários e sobras.[23]
A planta, uma derivação, cintilação.
A rigor, todavia, não procede que na área relegada a si a vegetação que cresce à mercê das regras do vento não frutifica: ela foi semeada. Wilkens escreve, em consonância com a parábola do semeador em Marcos 4: «o gesto de semear tem algo em comum com a abastança. Só então o gesto é capaz de selar uma aliança com a natureza. [...] o remédio contra a insensatez do “ser-assim-e-não-diferente” é o caminhar livre. A enfermidade concerne à mentalidade da posse, inclusive à possessão do mistério.»[24] Desse modo, todo jardim se liberta da atitude mesquinha de posse, ou resistem a ela as sementes dissipadas, a seca, o vento, as inundações e a geada posterior. E mesmo o que parece ser equilíbrio nada mais é senão desaceleração dos processos de mudança. É necessária uma aliança para dar forma ao acaso e à aleatoriedade, para além do fatalismo. Mas a aliança com a natureza deve ser mediada, quer seja por intermédio de rituais como os que associamos às evocações xamanísticas das sociedades tribais, quer seja de uma maneira romântica, ou seja, estilizada. Os ritos servem justamente ao propósito de interpor-se entre distância e proximidade e impedem também que o outro se manifeste como prolongamento do próprio, isto é, como um fetiche. Manifestam-se formas de lidar com o medo, anteriormente legadas às margens dos sistemas racionais de conhecimento nos sistemas ocidentais: o desavindo e desarranjado, que ao olhar mais cauteloso, sim, se mostra entretecido nos discursos do saber moderno ou requisitado para os respectivos benefícios. Outra forma seria a mediação estética na relação com a natureza: trabalho de campo poético.
Trabalho de campo poético
Cultivo de vãos — queria retomar a imagem inserida no começo deste texto, uma espécie de podagem semântica e rítmica do bloco textual à maneira de Waldrop, mas igualmente um jardim adjacente, o cuidado e a nutrição dos vãos, o provimento de campos vazios no jardim, com permeabilidade e espaço indefinido. Muitos termos abstratos remontam etimologicamente a significados agrícolas. Na Grécia do século VI a. C. havia incidências de versos que não eram escritos da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda conforme se escreve em tantas línguas conhecidas, mas sim em bustrofédon, que se desenvolviam indo e vindo, alternando-se consoante as linhas — as ímpares apontavam a uma direção, as linhas pares voltavam — assim como o boi se movimenta ao puxar o arado no campo, indo para a frente e retornando para trás.[25] Na palavra francesa paysage coabitam rememorações do paisano com o deus pagão nos elementos da paisagem: paysage, paysan, paien: «topologia de uma carta montada por placas díspares, diversamente coloridas, extravagantemente encaixadas, capa de retalhos de vinhas, prado, lavouras, bosques.»[26] Sucede na paisagem, sucede na página. O camponês, escreve Serres, compôs catalisando a paisagem pagus a pagus. Ora, eis aqui a antiga palavra agrícola latina, que semelhantemente ao verbo pangere se reedita em página: «a que lavro, esta manhã, em sulcos regulares, com a relha do estilo, pequeno recorte onde se finca, ou se planta, ou onde se estabelece a existência de quem escreve, onde ele a canta.»[27]
Mas não estamos falando de trabalho de campo literalmente, estamos falando de trabalho de campo poético. A prosa pode ser escrita em todo o mundo, desde que o formato da página convenha. De certa maneira, a poesia permanece no mesmo lugar, entra e sai, condensa, estabelece limites, os quebra, retorna por um lado, canta, repete, se aprofunda nos pensamentos, prejudica o objeto, expande-o, afasta-se dele, retoma-o, mas não faz isso linearmente. O movimento dos versos sugere uma estadia, uma fixação, uma cautela — que nunca deve ser mal interpretada como elogio à imobilidade. A continuação é trópica.
«Jardinagem de vãos adentrando da margem direita suspende o tempo», como fala Rosmarie Waldrop, institui a existência trêmula, uma forma de fatalidade, que conhece múltiplas direções. Penso no jardim, subterrâneo e sem luz, no nosso devir do jardim, uma atitude levemente propensa, de cócoras, um repouso num bioma avariado. Weinberger se reporta a uma área que se deteriorou à condição de local gracioso, de descuidado preciso. Isso não é o oposto da apropriação. Trata-se antes de uma atitude que tira proveito do calafrio ante o caos, alegria de viver temperada por leve pânico é a diversidade do poema: tanto a qualidade latente como a qualidade formal.
Jardins, terrenos, refratários a distúrbio, a vegetação complexa, por meio dos quais se alcança uma espécie de fusão metafórica de proteção e manutenção.