Sabemos, pelo menos desde Flaubert, que toda a educação sentimental é uma educação também política, é Bildung, é formação global. Para falar da educação sentimental-desportiva de um italiano, começo por um romance hoje esquecido. Como qualquer escolha, é arbitrária, mas não completamente. O título é L’allenatore (O treinador), o autor é Salvatore Bruno, que Enrique Vila-Matas colocaria na companhia de Bartleby, a família de escritores que publicaram um livro e se calaram para o resto da vida.
Foi editado em 1963 e, por meio dos monólogos das mulheres que o amaram e dos amigos que lhe invejaram a sorte, retrata um sedutor entediado (um jornalista que imaginamos como a máscara do próprio Bruno, com a cara do Mastroianni de La dolce vita), que se serve da ginástica sexual como sucedâneo do futebol. Uma espécie de inversão da condição humana: não é o fanático como alienação do Homem, mas sim o homem como alienação do Fanático. A psicanálise fica de pernas para o ar, pois «[…] para metade dos italianos doentes por futebol a Juventus é apenas um transfert porém para ele o transfert é o resto das mulheres e o resto de tudo enquanto a Juventus é a única verdadeira realidade sentimental». Cito, com a mesma pontuação livre do monólogo pós-joyceano, da edição de 2003[1] que, dois anos depois da morte do autor, resgatou do esquecimento o único livro deste jornalista que estudou em Florença, andou pelas redacções dos grandes jornais de Roma, publicou um romance numa editora histórica da tradição literária italiana do séc. XX (Vallecchi), com o patrocínio intelectual de um escritor conceituado (Romano Bilenchi) e, quase de seguida, voltou para a aldeia natal (Presicce), onde morreria em 2001 no mais rigoroso silêncio.
Presicce fica na ponta extrema do salto da bota itálica, a um passo do último mergulho, isto é, o cabo onde o mar Jónico e o Adriático confluem, chamado, como na Galiza, Finis Terrae. Ali onde a terra acaba e o mar principia, a «verdadeira realidade sentimental» era quase sempre a Juventus. Era assim também no meu tempo, tendo eu nascido menos de dez anos depois daquela publicação e poucos quilómetros mais a norte. Para Carmelo Bene, encenador-realizador-dramaturgo-actor amado por Pierre Klossowski e Gilles Deleuze, nascido no mesmo fim de Itália e da Terra, aquilo era o «sul do Sul». Isto talvez não passe de uma fantasia intelectualista, mas com um significado cultural fascinante, que Bene explica bem na sua autobiografia. Se o Sul de Itália é a zona geográfica que mais contribuiu para o pensamento filosófico, o berço dos não numerosos filósofos italianos de renome (Giordano Bruno, Vico, Campanella, Croce, Gentile…), o sul do Sul é a terra onde o pensamento se despoja de si mesmo, abdicando não só de filosofar mas também de pensar. Bene chegava a falar de «despensamento» e escolhia como herói (mais uma escolha arbitrária, mas também não completamente) um frade franciscano, São José de Cupertino, outro «filho da terra» que as crónicas do séc. XVII descrevem como idiota, analfabeto, «frei asno», desajeitado e, no entanto (aliás, por isso mesmo), capaz de voar durante os seus frequentes arrebatamentos místicos.
O arrebatamento místico de Salvatore Bruno pela Juventus tem a sua dose de «despensamento» programático. Lê-se no livro: «[…] que raiva que vergonha que humilhação e que mau gosto armar-se em inteligente quando a inteligência é um bem comum de alto consumo de que todos podemos usufruir. Todos menos ele […] idiota voluntário orgulhoso de o ser».[2] A aspiração à santidade idiota, em termos futebolísticos, tem também uma leitura geopolítica: o sul do Sul que apoia a Juventus é o Sul que não reconhece nem a antiga capital do reino (Nápoles), nem a mais recente (Roma) como pólos de atração sentimental, mas estica o abraço até Turim, a cidade dos Sabóia, os conquistadores de 1860. Como Garibaldi na vila de Teano, põe a fé republicana entre parênteses, saúda o Rei de Itália, entrega aos Sabóia o Sul arrancado aos Bourbon e retira-se. A unidade nacional é dada como facto consumado, sem as recriminações de quem, depois do jogo, em câmara lenta, quer rever aquele penálti polémico.
E a história da Juventus está cheia de polémicas que é melhor ignorar. A equipa da FIAT, propriedade da família Agnelli, donos de Itália, país cuja gíria política cunhou o sintagma aparentemente redundante de «poderes fortes», para os distinguir dos poderes democraticamente distribuídos e bem menos poderosos, tinha de ganhar sempre. E ganhava. Muito, nos anos Trinta (com o penta entre 1931 e 1935); bastante, nas décadas de 1950/60 (a época de Bruno e do seu romance); quase todos os anos, na década de 1970. Daí que torcer pela Juventus, para várias gerações, não foi apenas um erro de juventude, foi infância pura, simpatia espontânea pelo mais forte, pelo pai que tudo resolve, embora lhe chamassem «Velha Senhora», alcunha que autorizava a suspeitar que talvez não houvesse pai nenhum, apenas uma única grande Velha Nossa Senhora, Mãe mediterrânica todo-poderosa desde a infância do mundo. Por isso o jornalista juventino Marco Caneschi resolveu escrever a história sentimental do clube como se a contasse à filha,[3] recordando que a equipa foi objeto de análise da felicidade dos italianos online. Sim, um grupo de observadores examinou alguns milhões de tweets e terá descoberto que a Juventus é uma das principais causas da felicidade de um povo. E talvez não só de um, se até o madeirense Cristiano Ronaldo, depois do famoso golo de bicicleta marcado pelo Real Madrid na fortaleza inimiga, o Juventus Stadium, na meia-final da mais recente Liga dos Campeões, veio dizer: «...sempre foi un club que desde quando era niño... que me gustaba… gustaría… la Djuve...»[4]
Quem viu jogar a Selecção nacional por esse mundo fora, durante muitos anos, viu jogar uma Velha Senhora maquilhada. A que ficou em quarto no Mundial da Argentina de 1978 era, de facto, a Juventus com mais alguns reforços tirados de outras equipas rivais. Era um tempo em que, em Itália, tínhamos um partido-estado (a Democracia Cristã), uma família-estado (os Agnelli) e uma equipa-estado, por acaso a equipa dos Agnelli. Alguns amigos mais velhos já eram adeptos do Inter «de Milão» ou do «A. C.» Milan (tão engraçadas as redundâncias e os acrescentos supérfluos dos outros povos e das outras línguas: toda a gente sabe que o Inter é de Milão e ninguém se lembra de que o Milan tem um «A. C.», Associazione Calcio, antes do nome). Eles tentavam abrir-nos a pestana para o fraco peso internacional da pátria, lido nos fracos êxitos europeus do clube que só em 1985 ganharia a primeira das apenas duas Taças dos Campeões, numa final marcada pelos confrontos violentos com os hooligans do Liverpool que originaram a tragédia no Estádio Heysel de Bruxelas. Para os «despensadores» do sul do Sul era uma espécie de introdução à visão crítica da história nacional e até mesmo um alerta avant la lettre para os riscos da perda de soberania num eventual processo de integração europeia.
Uma das formas de superstição do nosso tempo (o que para os vindouros será talvez tema de estudo misturado com curiosidade, como os horóscopos que Galileu e Kepler ainda faziam) é a crença segundo a qual os êxitos futebolísticos espelham outros êxitos nacionais. Como todas as crenças, esta também nunca desilude os crentes, pois tem sempre uma explicação. Alguns realçam o facto de os êxitos desportivos serem directamente proporcionais aos outros (grande equipa = grande nação); outros apontam para o inversamente proporcional (de que nos vale sermos campeões do mundo se não tivermos o Sistema Nacional de Saúde da Noruega e os níveis de escolaridade da Finlândia, países que nunca ganharam nada?). Entretanto, porém, à medida que a simpatia infantil pela Juventus ia ficando abalada pelos «porquês» da primeira maturidade, essa Selecção azzurra quase toda juventina ganhava o Mundial de Espanha em 1982, o país real derrotava o terrorismo das Brigadas Vermelhas, o partido-estado democrata-cristão cedia a presidência do Conselho de Ministros a um socialista (Bettino Craxi) em 1983 e, em breve, a nossa economia ultrapassaria a britânica. Era a década de oitenta e não havia tempo para dúvidas: a bola, o PIB e tudo marchavam ao mesmo ritmo, rumo a um futuro radioso.
E a década trazia também um novo líder militar e espiritual para o Sul, que talvez tornasse ainda mais estridente a nossa mania pelas equipas do Norte, em particular pela Juventus de Turim. A juventude, mesmo em pleno hedonismo dos Oitenta, ainda era a idade da raiva e da revolta, quer fossem pai ou mãe o alvo edipiano a abater. Como se podia continuar a torcer pela Juventus, então, se no Nápoles jogava agora, desde 1984, Diego Armando Maradona?
Retomando um velho texto de Osvaldo Soriano, dois filósofos italianos escreveram recentemente que os génios do futebol (Soriano preferia dizer «poetas») são os que não se limitam a ver espaços de jogo que mais ninguém vê, mas criam espaços de jogo onde não devia haver espaço nenhum.[5] Maradona tinha a mesma, ampla, visão de jogo do bianconero Platini, com mais fantasia. Introduziu, entre uma panóplia de invenções extraordinárias, a rabona, ou seja o remate de pernas cruzadas como as dos bailarinos de tango, e o pontapé livre com a bola que sobe para o ar e cai com uma trajetória de pombo morto, que mais tarde, pela gíria do pólo aquático, se tornaria famosa como palombella (pombinha), palavra gravada para sempre nos cartazes do melhor filme de Nanni Moretti, Palombella Rossa (1989), manifesto de uma esquerda ainda comunista à beira de uma crise de nervos e à espera de um toque de magia que abrisse espaços políticos onde só havia catenaccio e permitisse ganhar um campeonato eleitoral. Não ganhou. Ganhou o Nápoles: os campeonatos em 1987 e 1990, a Taça UEFA em 1989.
Contribuiu também para roubar carinho e atenção à fé bianconera, além dessa nova Nápoles argentina, a chegada à primeira divisão da equipa da cabeça de concelho do nosso sul do Sul, Lecce. Não só foi chama de curta duração (a equipa regressou à segunda divisão após uma época apenas), como também o próprio Lecce parecia querer adaptar-se à bigamia de muitos dos seus fãs. Última equipa da tabela, já na penúltima jornada do campeonato, conseguiu ficar para a história derrotando, em Roma, a equipa da casa, primeira da tabela na altura, abrindo assim caminho ao 22º scudetto da Juventus.
Corria o ano de 1986 e, poucos meses antes, o Milan caíra nas mãos do empresário da actualidade e do futuro, Silvio Berlusconi. Não era apenas a primazia dos Agnelli que há tempos estava a ser insidiada, mas também o choque da fábrica metalomecânica pesada contra o fabrico imaterial de conteúdos audiovisuais. A indústria que faz fumo pelas chaminés recuava frente à indústria que, substituindo as lareiras, vende fumo casa por casa. E a aristocracia operária da primeira ia sendo vampirizada pelo imaginário da segunda.
A revolução futebolística de Berlusconi foi a única realmente progressista, das muitas que se lhe atribuem, mas custava-nos admiti-lo. Depois de massacrar os filmes na televisão, interrompendo-os com a publicidade e conspurcando a imagem com o logótipo do canal (sempre bem visível num canto do ecrã), ele e o seu treinador, Arrigo Sacchi, tiveram o desplante de fazer do jogo da bola o teatro do final de século: o futebol total de Sacchi, ou seja, a equipa que roda como a engrenagem de um relógio por toda a extensão do campo, só podia ser apreciado ao vivo, no estádio, e não na televisão, que, com as suas câmaras, exaltava o lance e o pormenor, mostrava a bola e não o que se fazia longe dela, onde as tropas rápida e invisivelmente se movimentavam. No país da ópera e das rivalidades entre sopranos, surgiu logo o duelo entre Sacchi e Maradona, e até mesmo entre Sacchi e algumas vedetas do seu Milan. Tradição e talento individual. Ou então, para nos mantermos na metáfora teatral: teatro do actor, à italiana, baseado no histrionismo do capocomico, contra o teatro do encenador, construído a partir do ponto de vista externo, que racionalmente organiza o espaço cénico do play (jogo e acção dramática).
A contraposição é talvez demasiado abstracta, porque os dois elementos contrapostos nunca se apresentam no estado puro. Seja como for, o nosso coração batia à italiana, do lado dos actores e do talento individual; e do futebol visto na televisão, com as pernas tensas, os cotovelos levantados, os esgares de dor e de cansaço em primeiros planos entremeados com os grandes planos da batalha, estilo Paths of Glory (Kubrick, 1957), pois sabíamos, com Desmond Morris, que o futebol é a continuação da guerra (e das caçadas paleolíticas) por outros meios.
A exaltação do golo, do dribbling e da dor era também uma forma de nos desenvencilharmos das garras da política que, cada vez mais, pairavam sobre o desporto irracionalmente mais amado. Era a beleza do gesto individual, o heroísmo campal contra as manobras de bastidores, em que uma taça era apenas uma etapa na longa marcha para o Conselho de Ministros. Em 1994, Sacchi tinha chegado a treinador da Selecção nacional e Berlusconi à liderança da nação, baptizando o seu partido com um berro de estádio: Forza Italia! Já nem isso se podia gritar sem o receio fundado de puxar brasas à sardinha do empresário-presidente. Completava-se assim a colonização do nosso irracional, com uma parábola, a de Berlusconi, que parecia reproduzir em síntese o que, no ensaio El Origen Deportivo del Estado (1924), Ortega y Gasset dizia da sociedade humana: uma lenta passagem desde a associação de jovens para o rapto das mulheres não consanguíneas, dotada de regras dignas de um Atlétic Club, até aos órgãos aptos para a formulação e implementação das leis do Estado. Do clube ao governo. Já para não falar dos jogos vendidos e rendidos às apostas ilegais, das ligações perigosas entre campeões e máfias, ou das matanças nos teatros do primeiro Mundial da nossa infância, na Argentina de Videla.
Para o espectador cujo excesso de consciência o torna agora afectivamente impotente, incapaz de amar uma equipa que é também um consórcio de parceiros com fins nem sempre claros, não resta outra opção senão o regresso ao culto ainda mais vincado e inconsciente, idiota, pela inteligência muscular do atleta. O talento individual mesmo em detrimento de eventuais equipas do coração.
A explicação, nem sempre unânime, da origem das palavras brasileiras «torcida» e «torcedor» aponta para duas formas de relacionamento crítico com a realidade: seria uma referência ora a uma acção mágica do fã, capaz de influenciar, «torcer» os eventos (e os italianos, como outros, gostam de definir o conjunto dos adeptos como o décimo segundo homem em campo), ora ao sofrimento de quem, sentado nas arquibancadas, se contorce ou torce chapéus e luvas. O fim da torcida, a rendição aos medíocres lemas olímpicos «o importante é participar» e «que ganhe o melhor», surge assim como forma de aceitação passiva da realidade. Se, com a crítica da Juventus, o jovem adepto tivera o seu curso intensivo na Frankfurter Schule, uma introdução lúdica à Kritische Theorie, o mesmo via-se agora condenado ao que Marcuse chamava «derrota da lógica do protesto». Sábio é quem se contenta com o espectáculo do jogo.
Ver a partida sem tomar partido, apreciar o lance, desfrutar da descarga erótica do golo marcado por qualquer um dos jogadores em campo, multiplicar por mil a alegria breve e tuitável, isolando tudo isto numa série de fragmentos eternamente presentes representa, no fundo, um regresso (ou uma regressão) ao tempo parado da meninice, ao amor infantil pelo vencedor, seja ele quem for. Noventa minutos de menoridade, com possibilidade de ir a prolongamento.