Quando digo que sou, os meus interlocutores imaginam uma vida dupla, e princípios. O hábito de perder tem a reputação de nos tornar saudáveis. Não estou porém convencido de que seja sustentável a longo prazo, e não creio que alguém com juízo faça de propósito coisas contra o que acredita ser sustentável.
Desde que me lembro que sou; sou como quem é legitimista, ou comunista, ou nestoriano; sem ideal nem esperança. Acredito que a história do mundo acabou em Elvas, num domingo, a 26 de Maio de 1946, e que o resultado final foi 2 a 1. Nasci por isso com uma preocupação de segunda-feira. Sou sempre levado a averiguar o que terá acontecido no dia anterior, como quem se inteira da evolução de uma doença grave acerca de cujo curso não tem ilusões, embora com a cerimónia de não visitar o doente tanto quanto devia.
Tive recentemente intimações do esplendor de Maio de 1946 quando passei uma manhã na Biblioteca Nacional a ler números de A Bola de Agosto de 1969, por razões científicas. Não senti nostalgia que venha a propósito. O que contemplei foi um mundo desportivo em que tudo estava de acordo com o direito natural, como um legitimista teletransportado aos tempos joviais da Vilafrancada. O Belenenses tinha acabado em oitavo, atrás da CUF, mas essa não era a novidade (no ano seguinte porém acabaria em sétimo, à frente da CUF). A novidade era que, à medida que ganhava por 5 a 2 séries de jogos de pré-temporada, em Benguela, em Bruxelas, ou na Beira, era tratado com uma atenção que me confirmava na minha ideia de ordem mundial.
Em 1969 Fred Flintstone vagueava pelas florestas; a geografia e o entendimento da gramática eram sólidos. O Norte acabaria como agora na Lapónia; mas começava avisadamente na Calçada de Carriche. Seis dos catorze clubes da primeira divisão estavam a sul da calçada referida; a União de Tomar suponho que em Tomar, perto dos Urais. Em 1969 ouvia-se muitas vezes dizer «Os Belenenses»; e temer «pelo Belém». Estas expressões tornaram-se muito raras; para onde terão ido?
Tudo no nome ‘O Belenenses’ é opaco. A ninguém ocorre falar do Barreirenses ou do Portimonenses ou do Tirsenses. O Belenenses? Poderá esta indecisão entre o singular e o plural ter anunciado a probabilidade de virem a existir dois Belenenses, e a probabilidade de eu vir a ser, como creio que agora sou com mais propriedade, dos Belenenses?