Tolstoi era um moralista. Escreveu um romance — Ana Karenina — em que a infidelidade acaba em morte, e outro — Guerra e Paz — em que as suas personagens têm de passar por mil páginas de turbulências políticas, militares e sentimentais até atingir a beatitude conubial. No epílogo de Guerra e Paz Natasha, a protagonista, está irreconhecível. Durante a parte principal do romance tínhamo-nos habituado a que fosse temperamental, bela, e reflectida; independente, e quase egoísta; e atreita a paixões funestas.

O casamento e a maternidade acabam por esgotar o interesse que Natasha tem pela música, por festas, por bailes, e pela sua aparência; parecem de facto esgotar qualquer interesse pelos seus interesses. Na sua nova vida subordina o espírito, deliberada e alegremente, ao espírito do seu marido, e conclui que o cumprimento dos seus deveres domésticos é completamente satisfatório e profundamente absorvente. Tudo isto faz dela, na ética de Tolstoi, «uma esposa e mãe exemplar».

A Natasha antiga só se entrevê num único momento do epílogo. O seu marido, Pierre acabou de chegar a casa de uma viagem, e Natasha embarca num sermão que começa como proclamação conscienciosa das vantagens da estabilidade matrimonial face ao mero romance:

«Que estúpido», disse Natasha subitamente, «achar-se que a lua de mel e os primeiros tempos são os mais felizes. É ao contrário: agora é melhor.  Se não te tivesses ido embora. Lembras-te como discutíamos? E era sempre culpa minha. Sempre. E discutíamos sobre quê? Já nem me lembro.»

«Sempre a mesma coisa», disse Pierre, a sorrir, «ciú...»

«Não digas essa palavra, não a aguento», exclamou Natasha. E um lampejo frio e zangado acendeu-se-lhe nos olhos. «Viste-a?» acrescentou, depois de uma pausa.

«Não, e se a tivesse visto não a teria reconhecido.»

Ficaram em silêncio.  

O leitor não tinha sido informado sobre «ela» — os acontecimentos em questão provavelmente passaram-se durante o período que o romance deixa por documentar — e a referência pode por isso ser muitos tipos de coisa, a um romance estritamente factual ou a uma fantasia sentimental produzida pela imaginação de Natasha. Tudo que sabemos através desta cena é que uma fractura anterior continua a reverberar na relação entre os dois. Serão os ciúmes constantes de Natasha a única falha na sua união perfeita?  Ou serão pelo contrário a centelha de vida que impede que a sua relação se extinga completamente? Ou, as duas coisas, seja lá o que isso for? 

O ciúme é uma emoção pouco atraente mas, ao contrário do ódio, do desprezo, ou do despeito não é uma emoção proibida. Se soubéssemos que Pierre tinha enganado Natasha, acharíamos que os seus ciúmes eram inteligíveis e mesmo razoáveis.  Compreenderíamos. Ou pelo menos diríamos, a nós próprios e a ela, «Compreendo.» Somos lestos quando se trata de considerar inteligíveis os ciúmes «justificados» — tão lestos que a própria velocidade da nossa reacção indica uma falta de interesse em examinar o assunto em maior pormenor.  Façamos no entanto justamente isso.

O nosso domínio natural, quando se trata de ciúmes, é a justa cólera da mulher traída. Parece falar-nos na linguagem racional dos direitos, das infracções e da justiça. Por essa razão a atitude de Natasha em relação a Pierre é a de que «tinha de ser mantido sob sua propriedade exclusiva, em casa». Mas a execução de um contrato não é a preocupação principal de um cônjuge ciumento; a infidelidade não tem nada a ver com direitos de propriedade.

Sendo verdade que o casamento é uma relação contratual, não há muitos casos em que os votos matrimoniais façam menção específica da exclusividade sexual.  Nunca assisti a um casamento em que o casal se prometesse mutuamente não dormir com outras pessoas; eu pelo menos não prometi isso. E no entanto, no que diz respeito às muitas coisas que são explicitamente prometidas — amar, honrar, obedecer, cuidar, etc. — as pessoas raramente insistem nos seus direitos contratuais. Todos os divórcios são uma violação da cláusula «para sempre», e no entanto nem os cônjuges nem as testemunhas se sentem inclinados a sentir ultraje por causa disso. Mesmo que incluíssemos uma cláusula de não-infidelidade nos nossos votos matrimoniais tal não implicaria que o principal problema da infidelidade passasse a ser o incumprimento desse acordo.

A pessoa ciumenta percebe isto melhor que ninguém. Pode dizer coisas (num modo surdamente furioso) sobre propriedade, mas tem um entendimento muito exacto e muito preciso dos limites de tais alegações. Não podemos ser donos de outra pessoa; não temos «direitos» sobre o seu corpo, ou aliás sobre os seus afectos, ou interesses, ou atenção. A cerimónia do casamento pode incluir o facto de eu dizer «Sou tua», mas a verdade é que não sou e nunca poderei ser de alguém, e que nenhuma proclamação minha pode alterar a situação. O ciúme consiste no sabermos isso combinado com a intolerabilidade disso: em reconhecer que não sou dono, e em precisar de ser dono. É no entanto mais a segunda coisa que a primeira. O ciúme é muitas vezes caracterizado erroneamente como uma atitude negativa, e integrado por erro na família a que pertencem o medo, a ira, a repulsa ou a negação. Para se perceber o erro vejamos de novo o caso de Natasha.

No excerto que transcrevi acima vê-se que Natasha vive numa situação contrária à negação. É assombrada por uma coisa que aconteceu muitos anos antes; além disso procura activamente manter-se assombrada — alimentando o fogo da sua própria paixão antiga. A pergunta — «Viste-a?» — não é pronunciada em tom de ansiedade ou medo mas no tom de uma emoção que a transporta no tempo. O seu súbito olhar frio e a sua voz zangada ligam-na a um incidente cujos pormenores desconhecemos, mas de que ela não parece conseguir libertar-se. A outra mulher, o que quer que tenha sido para Pierre, é para Natasha uma espécie de ligação a um eu anterior ou, ainda mais provavelmente, a uma versão alternativa do seu eu actual: alguém que ela poderia ter sido mas não é. Quer Pierre esteja ou não a dizer a verdade quando afirma que já não seria capaz de a reconhecer, presume-se que a outra mulher seja mais importante para Natasha do que para Pierre.  

Poder-se-á objectar que eu estou a ler coisas demais nestas poucas linhas. É verdade. Consigo imaginar tudo com esta nitidez porque já estive nas duas posições: já fui a outra mulher, e já fui vítima da outra mulher. Em ambos os casos senti ciúmes intensos, e quis com todas as minhas forças ocupar a posição da minha contraparte. Não há nada mais apetecível para a Outra Mulher do que a posição sólida e segura da mulher que chegou primeiro; para quem, por sua vez, não há nada tão atraente como o romance espontâneo e despreocupado que ela imagina que ele tem com a Outra.

Esta é a cena primitiva do ciúme: vejo um sinal no corpo do meu amante e a minha cabeça liga-o a Ela. Como é que reajo? Imaginar-se-á que me sinto zangada por me terem tirado aquilo que é meu; ou com medo de o perder completamente. Mas as emoções que sinto não são essas; essas são apenas as caretas que o meu ciúme faz quando quero concitar simpatia. A verdade íntima daquilo que sinto é muito mais enfurecedora do que a fúria e muito mais violenta do que o medo: é o desejo. O desejo do desejo. Quero, simplesmente, ter sido desejada com o desejo com que nesse momento Ela era desejada. Não com a mesma espécie ou o mesmo grau de desejo, mas com uma amostra concreta daquele acto passado de desejo. O ciúme deseja o amor destinado e dirigido a outra pessoa, exactamente o amor que podemos ter a certeza de nunca conseguir ter. O ciúme cobiça esse desejo de modo impossível, inatingível, insaciável. Como todas as coisas verdadeiramente eróticas, procura aquilo que não se pode obter. O ciúme é uma emoção positiva. O ciúme é uma forma de luxúria.

Lacan, a propósito do Banquete de Platão, diz-nos que o eros consiste em «dar o que não temos». Pense-se quão frequentemente, numa relação amorosa, a nossa imagem de um gesto amoroso corresponde precisamente a actos que a pessoa amada não quer realizar. Se alguém não costuma elogiar as minhas roupas, será isso que, «por uma vez!», requeiro dessa pessoa. Se alguém nunca dobra a roupa, que a dobre.  Quanto mais difícil ou mais improvável, mais romântica me parecerá a possibilidade de a outra pessoa o fazer; e todavia, se essa pessoa se decidir alcandorar à altura das circunstâncias, o resultado será sempre anti-climático. O romance consiste em a acção não ser realizada ou ser irrealizável. Uma vez, no decurso de uma discussão sentimental furiosa, foi-me observado que «nada daquilo que eu faço corresponde ao que queres; e se correspondesse deixava de corresponder!»  Era absolutamente verdade. Queria que ele me mostrasse o seu amor — mas não um amor qualquer. Queria ver um amor que ele não tinha.

O amor que não temos não é regra geral visível — porque não está lá. Mas no caso especial em que alguém ama outra pessoa, o amor que não tem por mim torna-se uma coisa concreta e incarnada — incorporada por Ela, incarnada n’Ela. O ciúme conduz o eros à maturidade; o ciúme torna visível o invisível.

Enquanto o invisível permanece invisível conseguimos contar-nos muitas mentiras nobres: que certo gesto romântico faria diferença; que o amor que procuro nele é um amor que é ou podia ser por mim; que o romance é um problema de dois corpos. A maior parte do tempo Natasha vive no espaço destas mentiras nobres, no interior do qual pode dizer com deliberação «o meu marido» — ou pelo menos imaginar que o pode fazer com deliberação. O ciúme expõe a presença de uma terceira pessoa na relação: às vezes na carne, outras em espírito, sempre mal recebida e nunca completamente eliminável. O ciúme é uma forma de atracção que nos repele.

Nunca compreendi como é que o poliamor consegue sobreviver à rivalidade erótica, mas tenho exactamente o mesmo tipo de objecções à monogamia. Na realidade ambos diferem apenas nas especificações do contrato relevante, e tal diferença parece ridiculamente superficial diante de um problema que se situa no núcleo de lava da nossa alma.  Se a paixão erótica significa querer aquilo que não é, nem pode com justiça ser, nosso, como poderá ser alguma vez estável? O ciúme é o fio com que se tece o romance, e o fio por que este se desfia.

Existirá uma solução para este problema erótico? O poeta português, filósofo e génio literário absoluto, Fernando Pessoa oferece uma. O seu Livro do Desassossego inclui um conjunto de sugestões sexuais para o grupo de pessoas a que chama «mal-casadas», se bem que esclareça que «as mal-casadas são todas as mulheres casadas e algumas solteiras». Pessoa dirige-se a todas as mulheres que sofrem desse problema erótico, e diz-lhes que

[Imaginem] o seu marido mais branco de corpo. Se imaginam bem, senti-lo-ão mais branco sobre si.

. . . Beijem o marido que lhes estiver em cima do corpo e mudem com a imaginação o homem num olhar belo que lhes estiver em cima da alma.

. . . A substituição não é tão difícil como julgam. Chamo substituição à prática que consiste em imaginar o gozo com um homem A quando se está copulando com um homem B.

. . . Todo o prazer é do cérebro, todos os crimes que se dão é só em sonhos que se cometem.

Pessoa percebe que a tríade é a medida do eros; e que pelo contrário a estabilidade requer uma díade. A sua solução — fazer caber três num espaço para dois através de uma infidelidade mental — reflecte uma compreensão quase perfeita do problema. Quase perfeita. O único erro de Pessoa tem origem na sua perspectiva masculina ou, pelo menos, em não conseguir abstrair-se dela. Qualquer mulher com um temperamento erótico adequado poderia ter-lhe explicado que o melhor conselho a uma mal-casada não é dizer-lhe que imagine que está a ter relações sexuais com um homem diferente, mas como uma mulher diferente.

* Publicado originalmente em 13 de Fevereiro de 2021, com o título “The Other Woman,” na revista The Point.

 

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