Em relação aos Beatles, tudo é muito simples e tudo é muito difícil de explicar. No fim de 1968 o jornalista e realizador Tony Palmer maravilhava-se com a rapidez com que eles compunham e gravavam, e chamava-lhes «os melhores escritores de canções desde Schubert». A analogia com Schubert faz lembrar uma outra característica comum de que Palmer não fala, e de que não poderia falar quando escreveu: tudo o que os Beatles compuseram e gravaram, mais coisa menos coisa, foi feito em pouco mais de sete anos. Embora Schubert tenha morrido mais novo que John Lennon, a sua carreira madura terá durado doze anos.
Apesar de a sua separação ter sido anunciada oficialmente só ano e meio depois, os quatro músicos iriam juntar-se num mesmo estúdio pela última vez no Verão de 1969. Nenhum o sabia na altura. Esta cronologia dá uma pungência acrescida às imagens reproduzidas no documentário de 2021 de Peter Jackson, que captura vinte e um dias de Janeiro de 1969. Vemo-lo hoje com o entusiasmo aterrorizado de quem já sabe o que aconteceu a seguir e apesar desse conhecimento acredita que o que aconteceu pode ainda ser evitado. Depois dessa fatalidade, o resto das vidas daquelas quatro pessoas continuou a ser afectado pelo que tinham feito em conjunto durante menos de oito anos; e foi sempre comparado com esse tempo tão curto. A possibilidade de as suas vidas remanescentes terem sido o efeito de coisas que lhes deixaram de acontecer aos 29 ou aos 27 anos tornou-os aos quatro vítimas involuntárias de uma tempestade de azar moral de proporções homéricas.
Não é fácil explicar bem as causas do nosso entusiasmo pelos Beatles, e de como tem durado tanto. Falar de puro génio não é exagerado, mas é só uma promessa de explicação. O apelo genérico às qualidades das suas canções, como o apelo à qualidade genérica dos seus autores, nunca consegue caracterizar de modo cabal esse entusiasmo. Não parece existir um denominador comum; não há nenhuma força ou significado inaparente que una tudo o que fizeram. As tentativas para reduzir tudo a uma causa ou uma propriedade determinante são dificultadas pela grande variedade das muitas coisas que os Beatles fizeram em conjunto: mais de duzentas canções, e também entrevistas, declarações, roupas, imagens, filmes e o resto.
Por outro lado existe um ar de família em tudo o que fizeram, que se vai alterando mas que na maior parte dos casos se consegue reconhecer sem esforço. Este ar de família nota-se ainda na produção subsequente de cada um dos quatro ex-Beatles, e nas suas declarações, aparições e entrevistas, mesmo quando estão a reagir ao seu passado comum. A maior parte das canções que cada um escreveu a partir de 1969 parece-se com reproduções a que falta o original, e em alguns casos com versões perfeitas de canções que os Beatles nunca compuseram.
Dizem-me que um número substancial de pessoas consegue identificar canções dos Beatles em menos de um segundo. Identificar uma canção dos Beatles não é o mesmo que reconhecer que uma canção é dos Beatles. Reconhecer a autoria de uma canção é como lembrarmo-nos de um cheiro parecido com outro cheiro. Identificar uma canção requer uma familiaridade extensa com particulares. Quem o consegue fazer teve de se habituar ao longo de muito tempo a ouvir canções dos Beatles. Aquilo a que chamamos particulares são sempre particulares identificados; e a capacidade de identificar um particular requer tempo para se desenvolver.
O hábito de ouvir muitas canções dos Beatles não é porém apenas um efeito de exposição, que apanhamos como uma doença e fica armazenado numa parte da nossa cabeça como coisa mental; inclui muitos tipos de acção diferentes, e por isso lhe chamamos hábito. Quem o tem ou quem o apanhou tenta regularmente cantar canções dos Beatles, ou pelo menos canta-as esporadicamente no banho ou quando vai passear; pode tentar reproduzi-las, e aprender a tocar, ou pelo menos comprar, certos instrumentos só para conseguir fazê-lo; irá dar-se com as pessoas de que precisa para alimentar o seu hábito, e falará muitas vezes sobre ele. Tudo isto também no fundo tem de ser explicado melhor. Estou convencido de que não se trata de uma questão de acumulação de conhecimento, ou mesmo do produto de um conhecimento massivo de particulares, e decerto não do efeito da familiaridade com bibliografia secundária e com bisbilhotices para-musicais. No caso dos Beatles, em cada manifestação desse hábito há uma espécie de respeito e homenagem que não se conseguem eliminar. Uma paródia dos Beatles ou uma versão desafinada de uma música deles continua a ser uma canção dos Beatles; as nossas más intenções ou a nossa inépcia técnica são reabsorvidas naquilo que as motivou, e redimidas pela sua causa; e isto, creio, indica uma coisa importante acerca dos Beatles.
Como observou Paul McCartney, quando duas pessoas com hábitos parecidos se encontram a experiência convida à modéstia. Passado um primeiro momento de reconhecimento mútuo, descobrem que não têm muito a dizer sobre os seus hábitos, a não ser sob forma de histórias sobre a coincidência, que só indirectamente podem fazer justiça à peculiaridade de cada um. Não é diferente de uma cerimónia em que duas pessoas trocam notas de sonhos que tiveram, sem que esperem vir a ter o mesmo sonho ou desenvolver uma teoria comum sobre os sonhos. No princípio de 2022 a revista da Universidade de Lisboa pediu a António Feijó que escolhesse, e falasse brevemente sobre, quatro coisas, e ele escolheu quatro pares de canções dos Beatles.[1] Não me espantou a sua escolha; ao longo dos anos falámos muitas vezes dos Beatles — embora falar, como se terá percebido, não seja bem o termo certo.
[1] Revista da Universidade de Lisboa (22). Março 2022. 7. Online em https://www.ulisboa.pt/sites/ulisboa.pt/files/publications/files/ulisboa_22_net_final.pdf. Os quatro pares são: «Some Other Guy» (duas versões ao vivo no The Cavern, Liverpool) e «Money»; «She’s a Woman» e «Drive My Car»; «Rain» e «For No One»; e «Happiness is a Warm Gun» e «A Day in the Life».