A maneira mais frequente e mais simples de ligar as ideias que um poeta tem sobre a poesia às ideias que tem sobre a política consiste em argumentar que a sua poesia reflecte ou exprime as suas ideias políticas. Este modo de ver as coisas, no entanto, depende de se achar que a poesia implica a transmissão ou a propaganda de certos conteúdos, mensagens ou recados, nomeadamente de recados políticos. Não tem por isso nada a dizer sobre o caso daqueles poetas que, como Alexandre O’Neill, manifestaram reservas em relação à ideia da poesia como publicidade, isto é, como transmissão de conteúdos. Para esses poetas não parece à primeira vista haver maneira de ligar considerações políticas a considerações artísticas; e por essa razão quando deixam de acreditar numa determinada doutrina política são frequentemente acusados de não acreditarem em nenhuma doutrina política. Parece-me no entanto que o cepticismo de O’Neill acerca da relação entre ideias sobre poesia e ideias sobre política é uma forma de cepticismo político, que tem por alvo as doutrinas políticas segundo as quais cabe aos poetas fazer publicidade ou dar recados. Este tipo de cepticismo está ligado ao cepticismo de O’Neill em relação à sua própria poesia, que é possivelmente a característica mais continuada desta.
**
Como a maior parte das pessoas a partir de uma certa idade, O’Neill reconheceu que «[tinha deixado] de acreditar em muita coisa em que acreditava». A admissão, que ocorre numa entrevista de 1982, é porém genérica. Quando o entrevistador A. Baptista-Bastos lhe pediu exemplos, O’Neill respondeu: «Sei lá ... Sei lá... No Estaline, por exemplo» (Meirim 103). Um pouco inquieto com o rumo da conversa, o entrevistador fez-lhe prontamente algumas perguntas sobre o envelhecimento, a morte e a vida; e as coisas seguiram o curso normal. Três anos depois, noutra entrevista, iria declarar de modo mais sanguíneo que em matéria de «fé política» tinha só «uma fezada». «Tendo para . . . o PS,» explicou (170). A declaração foi não obstante interpretada como expressão de uma crença política pouco importante. Em qualquer vizinhança há casos de convicções que não podem ser tomadas a sério. Nesses casos, como reconheceu implicitamente O’Neill, as profissões de crenças não são a expressão de convicções, mas um pedido de desculpas por se acreditar em coisas «que todos execram» (idem).
Uma interpretação benigna da declaração de O’Neill, porventura encorajada pelo declarante, consiste em atribuir essas crenças à idade ou à ironia do autor. Pode no entanto muito bem dar-se o caso de a tendência professada por O’Neill não ser táctica ou contingente; e pertencer a uma família reconhecível de teorias que ele imaginasse, instintivamente ou não, poder aplicar-se ao mesmo tempo à poesia e à política. Tender para o PS era com efeito em 1985 a expressão de uma opinião política muito comum; mas ao mesmo tempo a expressão de uma opinião política muito minoritária entre escritores portugueses, isto é, entre quem na altura se considerava que usava, e que devia ser estimado por usar, uma linguagem especial. O caso precedente que ocorre é o do conhecido conselho de William Wordsworth: «imitar e na medida do possível adoptar a linguagem dos homens» (xx). Tender para o PS era em 1985 um modo de falar comum; e reclamar essa tendência parece ser um modo de valorizar essa linguagem comum. A característica é relevante para a poesia de O’Neill, como aliás é para a de Wordsworth; mas ao mesmo tempo mostra uma dificuldade a respeito da ideia de adoptar uma linguagem comum. Com efeito, poucos poetas, como poucos dos seus primos filósofos, tomaram a sério as opiniões e os usos da maioria sobre como se fala e pensa; e isso, no caso de O’Neill, impediu-o sempre de se tornar plenamente estimado por outros poetas, pelo menos quando lhes lembrava que fazia versos. Entre os seus contemporâneos, entrevistadores e críticos a estima vai preferencialmente para O’Neill-que-eu-conheci, O’Neill publicitário, e de um modo genérico para O’Neill personagem pública.
A tendência de O’Neill para o PS e a poesia de Wordsworth (e, como veremos, a de O’Neill) não são todavia emanações de um modo não-poético de falar ou de exprimir opiniões, que se evolariam sem esforço dos factos brutos. Exemplificam antes um estado ou um processo a que O’Neill chamou argutamente na entrevista de 1985 «desatavio voluntário» (Meirim 163). O desatavio voluntário pressente-se em questões de poesia e em questões de opiniões políticas numa mesma relação contra-intuitiva entre deliberação e espontaneidade. Essa relação consiste em, esperando toda a gente o contrário, imaginar que as manifestações de espontaneidade devam ser precedidas por uma forma de deliberação; um verso é, como diz na mesma ocasião, «um processo lento de dizer uma coisa» (idem) que consiste em torná-la comum: «desconfio do que é fechado, hermético,» conclui. Do mesmo modo podemos imputar uma deliberação demorada à alteração das suas opiniões políticas; tão demorada de facto que em 1953 ainda terá chorado a morte de Estaline quando já não acreditava nele (Bom 25). Parece a O’Neill que em matérias de poesia e de política é requerido um certo tempo e esforço para se chegar às verdadeiras tendências. «Agora,» declara, sempre na mesma entrevista, «estou cada vez mais exigente» (Meirim 163).
A Wordsworth o desatavio voluntário também interessava, por exemplo quando famosamente falou, a respeito da poesia, da relação entre «o afluxo espontâneo de sentimentos poderosos» e «uma emoção recolhida em tranquilidade» (xxxiii). É nesse processo que para si consiste um poeta «adoptar a linguagem dos homens», isto é, imitá-la na sua poesia; e é nele que consiste, em matérias de política, metamorfosear opiniões de guilda em tendências comuns. Exemplo de opiniões de guilda são o pranto de O’Neill pela morte de Estaline, mas também «a alegria grande da vingança» que Wordsworth terá sentido pela de Robespierre. Nenhuma dessas mudanças se terá devido a leis históricas ou psicológicas, ou à idade dos poetas, mas antes porventura aos efeitos do desatavio voluntário: ao tempo que ambos achavam era requerido para chegar às suas verdadeiras tendências. Não é assim surpreendente que tais tendências se exprimam de modo concomitante em matérias de política e de poesia; e que em The Prelude, que é uma espécie de entrevista de vida de Wordsworth, se informe que a notícia da morte de Robespierre lhe foi comunicada premonitoriamente «na linguagem corrente daqueles dias» (10.537).
A tendência para a poesia e a tendência para o PS são caracteristicamente no caso de O’Neill tendências para coisas «com todos os seus defeitos» (Meirim 170-1). Descrevemos frequentemente como defeituosas, ou como sobre coisas defeituosas, as ideias que sabemos que quem está por perto não partilha. O’Neill sabia muito bem que em 1985 poucos dos seus pares partilhavam as suas noções de política e de poesia, e menos ainda partilhavam a sua intuição de que uma relação entre poesia e política não passa por cometer à poesia a função de advogar opiniões políticas. Talvez também pressentisse que os seus pares não achavam que os seus versos fossem realmente poesia. As tendências anti-wordsworthianas da maior parte dos poetas contemporâneos de O’Neill, pelo menos em Portugal, detectam-se na preferência muito generalizada por soluções políticas musculadas, por um tom «fechado e hermético», e ainda pelo exercício do trabalho publicitário. É notável o número de estalinistas portugueses com ambições literárias que trabalharam em publicidade durante o século XX. Imaginar que a poesia não é o anúncio das nossas crenças políticas requer imaginar que escrever versos não é como fazer publicidade, embora fazer publicidade não requeira que se imagine assim a poesia, mesmo quando os publicitários também escrevem versos. Como O’Neill explicou, fazer publicidade depende de um «jeito para o jogo de palavras, trocadilhos, etc.» (115). Esse jeito porém, como admitiu, «tem-me prejudicado razoavelmente na poesia».
O’Neill descreve este problema a propósito de uma experiência profissional. Conta a história de um slogan que fez «por brincadeira, claro» (idem) e que, porque foi tomado a sério, lhe ia custando o emprego. Contrasta-o com outro slogan que fez «a sério» e que foi bem compreendido pelo cliente e muito repetido e modificado pelo público. Acrescenta que no caso deste segundo slogan «os bêbados pegaram logo nele, o que é uma verdadeira consagração». A diferença entre os dois slogans não é, ao contrário do que possa parecer, como a diferença entre poesia e publicidade. A poesia não é publicidade feita por brincadeira, ou publicidade que por causa dos seus méritos poéticos não encontrou cliente. Existe todavia para O’Neill uma regra que se aplica em ambos os casos e que podemos bem entendido estender a muitos outros: a de que escrever é sempre «uma actividade . . . chata quando o cliente não percebe as nossas intenções e acha que está tudo mal» (idem). A regra aplica-se de resto a todos os casos em que agimos intencionalmente. A razão geral por que poesia e publicidade podem ser mal compreendidas é a de que «as nossas intenções» podem sempre não ser percebidas, embora na maior parte dos casos, e seguramente com a maior parte da poesia, tal não se verifique. Parece por isso natural que as frases publicitárias de O’Neill mais admiradas por quem acha que poesia e a publicidade são a mesma coisa sejam as frases rejeitadas por clientes, ou as frases feitas a brincar: frases como «Vá de metro, Satanás,» e «Ele não merece, mas vota no PS». Para essas pessoas a poesia, como a publicidade rejeitada, pode consistir em recados linguísticos incompreensíveis ou incompreendidos; mas consiste sempre, como a publicidade aprovada, na intenção de mandar recados, isto é, em recados. A ênfase não é posta no meio mas na mensagem; para um literato estalinista, a mensagem é o meio.
Reconhecemos na história de O’Neill a única teoria acerca da poesia em que ele parece acreditar ou que se lhe pode atribuir. O’Neill sugere que frases compostas a sério e apropriadas pelo uso comum são mais importantes que frases compostas por brincadeira que são tomadas a sério. Os bêbados de O’Neill são por isso uma espécie de pseudónimo dos homens comuns de Wordsworth; reconhecem a sua linguagem num certo tipo de poesia; e o sinal desse reconhecimento, da «consagração», como lhe chama O’Neill, é herdarem, incorporarem e distorcerem formas de poesia compostas por terceiros. Percebe-se em suma que a «linguagem dos homens,» ou pelo menos dos bêbados, seja o grande critério de êxito para o exercício do desatavio voluntário; e começa a perceber-se melhor porque é que O’Neill tendia para o PS.
**
Nem todos os poemas de Wordsworth são porém ilustrações do seu programa. Alguns dos piores foram incluídos pelo jornalista D. B. Wyndham Lewis e o escritor Charles Lee na antologia de 1930 The Stuffed Owl, com o subtítulo «Uma antologia da má poesia», cujo título provém de um soneto de Wordsworth, nela incluído. Seria um serviço importante à literatura portuguesa a publicação de uma antologia semelhante. Nela figurariam com muita probabilidade, além dos piores poemas de Pessoa e Camões, as obras completas de José Carlos Ary dos Santos (1937-1984). Ary dos Santos foi um dos numerosos literatos estalinistas que trabalharam em publicidade. Publicou muitos livros e fez muitos slogans. A. Baptista-Bastos, num tributo póstumo, chamou-lhe «um génio da publicidade» e deplorou «o desdém atrevido e ignorante com que alguns medíocres preopinantes se referem ao grande poeta». Elogiou-lhe ainda «a moral proletária do trabalho».
Ao longo da sua vida literária relativamente curta Ary dos Santos acreditou para todos os efeitos práticos que a poesia e a publicidade dependiam dos mesmos talentos e serviam essencialmente para a mesma coisa; eram, como tantas vezes se ensina hoje sem pensar, uma questão de linguagem, daquilo a que O’Neill como vimos chamou «o jogo de palavras»; e poesia e publicidade eram, por coincidência, as duas coisas principais que Ary dos Santos fazia em público. Não parece exagerado supor que a serventia idêntica consistisse em transmitirem opiniões de clientes e recados de figuras aspiracionais ao «homem comum». É possível que, como O’Neill e Wordsworth, Ary dos Santos acreditasse no homem comum; mas, ao contrário de O’Neill, ou de Wordsworth (que a passear nos Lagos ouvia do lado de lá da muralha os sluagh-ghairmean, isto é, os slogans, dos escoceses), achava que era preciso explicar-lhe certas coisas ou pelo menos informá-lo de certos factos, quer através da poesia, quer da publicidade. Ary dos Santos colaborou com O’Neill em publicidade (Oliveira 160); mas admirou-o também como poeta, visto que lhe mostrou poemas e pediu conselhos literários (121). Os maus poetas admiram frequentemente as coisas certas e os poetas certos; e como qualquer pessoa, e como os bons poetas, podem admirar as pessoas certas por razões erradas, e não admirar as pessoas certas por razões certas (mas também por certas razões). Sendo maus poetas, e se a expressão dessa admiração for poesia, é no entanto previsível que o resultado da admiração seja má poesia.
Num poema de 1972 intitulado «Brevíssima antologia da poesia com certeza», e cujo título alude a uma conhecida canção por sinal publicada no ano da morte de Estaline, Ary dos Santos escreveu:
Mas se não fosse o O’Neill
Portugal não tinha Abril.
— Ai meu adeus pequenez
o que será deste mês
se nos não chove de vez?
Bem choveu. Ele que fez?
Tropeçou-nos de ternura
a todos como bem quis.
Em Lisboa amor procura
Alexandre Português
que é gaivota e não o diz. (306)
O verso alarmante «Portugal não tinha Abril» prenuncia as poesias hoje mais lembradas de Ary dos Santos; mas o poema não parece em geral referir-se a acontecimentos futuros. Composto em 1972, tende a aludir a coisas que aconteceram até 1972. A passagem de facto menciona e usa alguns poemas muito conhecidos de Alexandre O’Neill. Entre estes contam-se «Um adeus português» (de um livro de 1958), «Auto-Retrato» (de um livro de 1962), «Portugal» (de um livro de 1965, e a que voltarei), e «Gaivota» (de um fado de 1969).
As referências de Ary dos Santos a O’Neill são nesse poema favoráveis, mas não são as únicas referências favoráveis. «Brevíssima antologia» inclui elogios a outros poetas, embora muitos deles menos extensos do que aqueles que faz a O’Neill. Vistos no seu conjunto os objectos de admiração de Ary dos Santos variam em qualidade e em estima. A quem não os admira a todos não é simples detectar um critério que torne perspícuas as razões da admiração comum. Ary dos Santos elogia Mário Cesariny e José Régio, mas também Miguel Torga e Manuel da Fonseca. Não se deve também presumir que qualquer dos admirados de Ary dos Santos, e nomeadamente O’Neill, admirasse todos os seus co-admirados ou sequer que gostasse deles, apesar de com probabilidade se terem todos conhecido; os admirados não costumam escolher nem os co-admirados nem os pan-admiradores, e não podem por isso ser responsabilizados por terem dado origem a má poesia, a não ser num sentido causal lasso.
Consegue-se pelo contrário normalmente perceber a razão por que um admirador escolhe um admirado. No caso de Ary dos Santos, que não é um poeta difícil ou dissimulado, é geralmente simples determinar a natureza da afinidade em relação à maior parte dos poetas que elogia no seu poema. A afinidade é por exemplo abertamente sexual no caso de Cesariny; veladamente sexual no caso de José Régio; e veladamente política nos casos de Manuel da Fonseca e de Miguel Torga. Note-se contudo que podendo presumir-se também em Ary dos Santos admiração política velada por Cesariny é difícil imputar-lhe admiração sexual, velada ou explícita, por Torga. Em qualquer caso nenhuma expressão de admiração a que tenha dado origem, quando sob forma de poesia, é boa poesia ipso facto. Ary dos Santos parece incapaz de fazer boa poesia, em especial quando admira os assuntos ou as pessoas sobre que escreve. Versos no poema como «um mago dentro da cama» (sobre Cesariny) e «e viva Miguel que outorga / ar livre mesmo que morda» são matéria incontroversa de mocho empalhado.
Excluídas as motivações sexuais ou políticas, os motivos sobrantes de admiração de Ary dos Santos parecem todavia menos claros. Não é claro em particular o modo como Ary dos Santos imaginava a natureza da afinidade que tentou descrever em relação a O’Neill, que não é nem sexual nem política. Uma possibilidade é a de que Ary dos Santos tenha calculado a sua afinidade para com O’Neill a partir de uma ideia que tinha sobre aquilo que deveria ser um poeta. É essa ideia que de certo modo parece imputar a O’Neill. O cálculo de uma afinidade tem quase sempre uma natureza normativa. A admiração de Ary dos Santos faz adivinhar uma ideia sobre a semelhança entre quem Ary dos Santos achava que era e quem achava que O’Neill devia ser: um publicitário e um poeta, e por essa razão um transmissor de recados ou de mensagens. A admiração por O’Neill parece-se deste modo com um retrato ideal de Ary dos Santos, e o poema que a manifesta com uma autobiografia ficcional na terceira pessoa. A tal semelhança não é necessária a partilha, explícita ou imputada, de uma ideia de poesia e por isso, para Ary dos Santos, de publicidade; não tem de ser uma semelhança «teórica» ou «filosófica,» e muito menos «política.» Mas a suposição dessa semelhança exemplifica a ideia de que, como os talentos necessários à publicidade são talentos eficazes na poesia e ambas são uma questão de linguagem, não existe uma diferença essencial entre poesia e publicidade e portanto entre publicidade e política.
**
Apesar de ser uma auto-descrição acertada, o poema de Ary dos Santos não é uma boa descrição de Alexandre O’Neill; e não faz justiça aos poemas de O’Neill a que alude. «Portugal», o mais conhecido desses poemas, tinha sido publicado em 1965, mas em rigor estava pronto pelo menos desde o princípio do ano anterior. Fora anunciado para publicação no nº 13-14 da revista O Tempo e o Modo (Fevereiro-Março de 1964) e tinha depois sido integralmente cortado pelos Serviços de Censura, pelo menos duas vezes (as provas que nos chegaram, enviadas em Fevereiro de 1964, têm marcas de dois lápis de cores diferentes, e na margem a indicação, a tinta permanente, «mantém-se “cortado”»). O poema viria enfim a ser publicado num livro, não sujeito na altura a exame prévio, cujo título provém de um verso desse poema, e é anunciado também no texto da página de provas que não foi aprovada («Do livro a publicar FEIRA CABISBAIXA»).
Não é implausível que quem recomendou que se mantivesse «cortado» tivesse lido o poema «Portugal» como publicidade a uma opinião política particular; ou pelo menos tivesse sentido que o país epónimo não estava a ser nele anunciado do melhor modo. Ao fazê-lo poderia ter alegado em seu favor a alusão aberta que O’Neill faz a modos de fazer publicidade ou, mais propriamente, a modos de apresentar as queixas de um consumidor («ó Portugal, se fosses só três sílabas / de plástico, que era mais barato!») em relação a um produto de distribuição corrente. Esse produto, por coincidência também chamado Portugal, como na altura eram chamados fogões e sabonetes, é no poema descrito através de uma longa lista de qualidades e comparações, que inclui referências a regiões, animais e objectos. Parece assim que O’Neill se está a queixar de um artigo insatisfatório, e a propor implicitamente a sua substituição por um artigo equivalente, mais simples e mais barato, possivelmente um artigo linguístico. Não se pode pois censurar quem o proibiu por ter visto no poema um motivo veladamente político. No entanto o poema torna também claro, apesar do seu título, que aquilo que está nele a ser descrito não é o país tradicionalmente conhecido pela designação ‘Portugal’ mas antes a definição do termo ‘Portugal’ como, nas palavras de O’Neill, uma «questão que eu tenho comigo mesmo». É essa de facto a única definição de ‘Portugal’ que aparece no poema. O vocabulário político é nele um vocabulário psicológico: refere estados mentais do autor, estados mentais imputados pelo autor a outras pessoas, e celebradamente um «meu remorso, / meu remorso de todos nós...» O que poderá ter parecido inaceitável aos Serviços de Censura não é exactamente que ‘Portugal’ fosse definido no poema «Portugal» como uma coisa mental, mas que o objecto mental descrito (uma sensação de remorso) no poema não fosse suficientemente claro ou positivo; a sua posição não será assim muito diferente da de quem iria no futuro rejeitar o slogan que O’Neill fez para o PS.
Vinte anos mais tarde, no prefácio a um livro de dois amigos americanos, também intitulado Portugal, O’Neill corrige a sua teoria anterior sobre remorsos e estados mentais, e desse modo a ideia de que o vocabulário político que lhe interessa mais é um vocabulário psicológico. À primeira vista a correcção é quase imperceptível. O’Neill usa, em vez de «remorso», a palavra «culpa». Culpa e remorso parecem-se ambos com sentimentos ou sensações; e descrever o nome de um país como um remorso é, graças a uma confusão oportuna entre uso e menção, quase o mesmo que descrever aqueles que são naturais desse país como sentindo-se culpados por terem qualquer relação com ele. No entanto, a ênfase de O’Neill na actividade ou no sentimento de culpa é diferente: «Em Portugal», começa o seu prefácio, «nunca deixamos cair um objecto: ele é que nos escapa das mãos. E, claro, a culpa não é nossa» (Já cá não está quem falou, 197). A diferença principal entre culpa e remorso é neste contexto uma diferença em relação à atitude dos portadores dos sentimentos. Enquanto o remorso tem a forma de uma questão existencial (como em outros autores conhecidos que exprimiram opiniões sobre Portugal acontece com sentimentos como saudade ou medo), o que para O’Neill é neste caso relevante acerca da noção de culpa é que o portador putativo do sentimento não admite qualquer culpa. O exemplo com que começa o seu ensaio é afinal o de uma coisa a «escapar» das mãos de um português; mas ao escapar essa coisa desaparece também a culpa pelo ocorrido. O exemplo sugere que a pessoa passou a achar que não pode ser responsabilizada como agente por aquilo que aconteceu a uma coisa que estava na sua vizinhança mais imediata. A relação deste português com Portugal não é assim como a de um criminoso para com os seus crimes, ou sequer como a do dono de um cão que mordeu alguém para com a pessoa mordida ou para com o cão que a mordeu; assemelha-se pelo contrário à relação com uma ocorrência a que se é alheio, com um objecto de uso comum de que não se é proprietário, ou com pensamentos de quem nunca se conheceu, não muito diferente da atitude que temos em relação a fenómenos meteorológicos.
O’Neill nem sempre é claro a respeito desta distinção, e no mesmo ensaio fala várias vezes naquilo a que chama «aptidão para a culpa» (198). Esta maneira de falar é infeliz porque transforma um sentimento num talento; e depois, como já tinha feito no poema de 1965, transforma uma condição psicológica num traço nacional. Falar assim não acrescenta utilidade descritiva ao que fora dito anteriormente sobre remorsos, e não é essencialmente diferente da forma que é dada ao assunto no poema «Portugal». Falar de aptidões para um sentimento que caracterizaria um tipo de relação política ignora crucialmente a ideia, que O’Neill tinha começado por desenvolver no seu prefácio, segundo a qual a culpa não é como um talento que se possa ter, mas como um sentimento que se costuma evitar. A haver algum talento envolvido, tratar-se-ia no máximo de um talento para evitar a culpa. O evitar desse sentimento exprimir-se-á naquilo a que chama mais adiante no mesmo prefácio um «jeito para a negociação» (idem). Esse jeito para a negociação parece ser a virtude relevante para a descrição de acções que ocorrem na nossa vizinhança imediata de uma forma tal que não nos possam ser imputadas; e portanto de descrever acções sem identificar agentes. A palavra «negociação» como O’Neill a usa não designa porém formas positivas ou preparatórias de comércio, mas apenas um modo de minimizar contingências incontroláveis; não é assim o objecto de um talento ou de uma virtude.
O’Neill chama a esta condição «surdez mental muito voluntariamente praticada» (idem). A expressão combina, como a expressão «desatavio voluntário», a relação entre um acontecimento e uma atitude caracteristicamente deliberada em relação ao que acontece. Quem acha que um prato se lhe escapou das mãos acha deliberadamente que ele se lhe escapou inadvertidamente das mãos. Falamos em surdez voluntária quando alguém desliga intencionalmente o seu aparelho auditivo, ou quando decide não ouvir o que lhe está a ser dito; e existe de facto uma relação com a culpa que consiste em recusar a consideração de relações entre as nossas acções e aquilo que acontece por causa delas. Desse ponto de vista, aquilo a que O’Neill chama negociação consiste em eliminar sentimentos a respeito daquilo que aconteceu. O objecto do negócio é o remorso; mas o resultado do negócio é a ausência de culpa.
A ideia de política sem culpa é parecida com a ideia de poesia voluntariamente desataviada. Em ambas existe aquilo a que Baldassare Castiglione tinha chamado memoravelmente «um certo desdém de tudo, que esconde a arte e mostra que o que se faz e diz se faz sem esforço e quase sem pensar» (I, xxvi). O «desdém que esconde a arte» é neste sentido uma moral política particular, mas também a caracterização de uma atitude política acerca da arte, a saber, da moral política que permite aos agentes eximirem-se às suas responsabilidades, e estabelecer essa inocência através de um processo laborioso de negociação. Mas este é apenas o lado menos solar da imitação da linguagem dos homens, deliberadamente desenhada para esconder a arte: e essa é a atitude política de O’Neill em relação à poesia. O’Neill parece assim também a este propósito ser do partido de Wordsworth. Com efeito, as formas de desdém pela ideia de habilidades artísticas e em especial pela ideia de artefactos e pela ideia de uma arte que se note estão implícitas na noção de «imitação da linguagem dos homens.» Esse desdém é o sinal da desconfiança que os seus cultores sentem quanto à ideia de que cabe aos poetas transmitir recados aos homens comuns, e talvez até ensiná-los a falar através de dispositivos construídos de propósito para o efeito. A ideia de O’Neill sobre poesia é assim uma ideia política: e explica as suas tendências políticas, ou pelo menos que tenha chegado a essas tendências.
Referências
Baptista-Bastos, A. «Ary dos Santos ou a voz indomada e indomável». Jornal de Negócios. 16.I.2009. Online em https://www.jornaldenegocios.pt/opiniao/detalhe/ary_dos_santos_ou_a_voz_indomada_e_indomaacutevel.
Bom, Laurinda. Alexandre O’Neill: passo tudo pela refinadora. Lisboa: Editorial Notícias. 2003.
Castiglione, Baldassare. Libro del corteggiano. (W. Barberis, ed.) Torino: Einaudi. 1998.
Lewis, D. B. Wyndham & Charles Lee (eds.) The Stuffed Owl: An Anthology of Bad Verse. London: J.M. Dent & Sons. 1930.
Meirim, Joana (ed.) «Diz-lhe que estás ocupado»: conversas com Alexandre O’Neill. Lisboa: Tinta da China. 2021.
Oliveira, Maria Antónia. Alexandre O’Neill. Uma biografia literária. 2ª edição. Porto: Assírio & Alvim. 2024.
O’Neill, Alexandre. «Portugal». Provas tipográficas do n.º 13-14 de O Tempo e o Modo submetidas à Comissão de Censura, com os respectivos cortes. Fundo DBE - Documentos João Bénard da Costa, FMS, Pasta 06769.009. Online em https://docs.revistasdeideias.net/extras/0000002126.pdf.
O’Neill, Alexandre. Poesias completas. Lisboa: Assírio & Alvim. 2000.
O’Neill, Alexandre. Já cá não está quem falou. (M. A. Oliveira & F. Cabral Martins, eds.) Lisboa: Assírio & Alvim. 2008.
Santos, J. C. Ary dos. Obra poética. Avante: Lisboa. 1994.
Wohl, Hellmut & Alice. Portugal. London: Muller & Summerfield. 1983.
Wordsworth, William. «Preface [to Second Edition of Lyrical Ballads]». Lyrical Ballads, with Other Poems. In Two Volumes. London: Longman & Rees. 1800. 1:v-xlvi.
Wordsworth, William. The Prelude: Newly Edited from the Manuscripts (J. Engell & M. D. Raymond, eds.). Oxford: Oxford UP. 2016.