Assim preparada, assim confiante e inquiridora,
lancei-me em busca da verdade.
Virginia Woolf, Um quarto só meu
1. Preliminares
Para começar, os pontos de partida. Primeiro, o ponto de partida teórico. Como motivação do seu inquérito, Sally Haslanger (2000b) usa como epígrafe Simone de Beauvoir a perguntar: o que é uma mulher? De acordo com esta epígrafe, esta é uma questão com a qual temos de nos confrontar se admitimos que há mulheres. Beauvoir (1987 [1949]) começa o texto original notando o quão irritante é o tema «a mulher», principalmente tendo em conta as confusões e desacordos acerca do que é isso de ser mulher. Logo nesta parte inicial do seu texto, Beauvoir salienta como a questão do que é ser mulher é complicada. Apelando implicitamente ao senso comum e à linguagem quotidiana, Beauvoir nota como é problemático, por um lado, sugerir-se que (em meados do séc. XX) já não há mulheres e, por outro, exigir-se às mulheres (igualmente em meados do séc. XX) que sejam mulheres — «permaneçam mulheres, tornem-se mulheres» (Beauvoir: 9).[1] A sugestão implícita no senso comum, que Beauvoir ilustra com possíveis citações, é o pressuposto de que nem todos os seres humanos do sexo feminino são necessariamente mulheres. Parece assim ficar exposto o problema que vem a gerar a discussão que aqui se vai apresentar. O que se diz e faz sobre «a mulher» sugere uma distinção entre ser-se um ser humano do sexo feminino e ser-se uma mulher. Este é o ponto de partida de Haslanger (2000a, 2000b, 2005) e é este ponto de partida que gera as atuais discussões sobre a metafísica do género e o significado de expressões como «ser mulher».
Agora, o ponto de partida ideológico. Neste artigo, assume-se à partida que a dita filosofia feminista tem uma componente normativa (política, ética). A filosofia feminista não é neutra. Como nota Mari Mikkola, a filosofia feminista é ativista na medida em que procura «sustentar uma causa e falar por um determinado grupo» (Mikkola 2021: 213). Esa Díaz-León (2017) e Katharine Jenkins (2016) apresentam o feminismo na filosofia como um movimento político e intelectual que visa descrever e resistir à opressão das mulheres. Jennifer Saul (2012) nota como o termo «mulher» tem significado político. Na mesma linha de pensamentos, Haslanger (2000a, 2000b, 2005) defende uma metafísica feminista como fornecedora de razões para uma oposição aos regimes sociais e políticos que oprimem e subordinam mulheres, considerando que o projeto filosófico de desenvolver o conceito de género neste âmbito permite obter instrumentos efetivos contra as injustiças sobre as mulheres.[2]
Por último, o ponto de partida metodológico. Como nota ainda Mikkola (2021), a partir desta motivação política e social, a filosofia feminista tem como propósito tornar explícito se e como o género afeta o inquérito filosófico. Louise Antony (2012) rejeita uma certa maneira de fazer isto. De acordo com Antony (2012), a motivação feminista não tem de resultar num projeto de recusa da filosofia clássica ou tradicional, deslegitimando os seus conceitos e as suas teorias e substituindo-os por conceitos e teorias que não sejam «masculinantes».[3] O ponto de Antony (2012) levanta-se contra Jennifer Hornsby (2000) e o seu projeto para uma filosofia da linguagem feminista, que não será aqui abordado.[4] O que se pretende realçar é que Antony defende que um espírito feminista (a feminist mind) pode e deve manifestar-se na filosofia enquanto projeto crítico ou prático. O projeto feminista crítico consiste em manifestar esse espírito feminista na explicitação e análise dos enviesamentos machistas, ou masculinantes, que poderão ser subjacentes a conceções e noções filosóficas. O projeto feminista prático consiste em abordar as questões filosóficas que dizem diretamente respeito às mulheres. Contra o projeto de substituição de Hornsby, Antony argumenta que nenhum dos projetos, crítico ou prático, exige a rejeição de conceitos e teorias filosóficos anteriores. Pelo contrário, a sua proposta é que ambos podem usar livremente esses conceitos e teorias para fazer avançar o espírito feminista na filosofia. Isto estabelece a agenda da filosofia feminista: usar os conceitos e as teorias disponíveis na filosofia para, por um lado, criticar possíveis enviesamentos masculinantes e, por outro lado, aplicar esses conceitos e teorias aos assuntos urgentes das mulheres. Os dois projetos, crítico e prático, podem ser simultâneos. É precisamente isso que acontece nas discussões que aqui serão abordadas.
Os três pontos de partida mencionados também estão interligados. Responder à questão de saber o que é uma mulher é um inquérito filosófico, que tem como motivação a opressão ou a injustiça social a que estão sujeitas as mulheres, e essa resposta tem de passar por considerar criticamente os conceitos e as teorias disponíveis na filosofia para que tenham aplicação na realidade social. O meu ponto de partida é então que, ainda que se rejeite que fazer filosofia feminista é substituir conceitos e teorias (supostamente) masculinantes por conceitos e teorias (supostamente) feministas, fazer filosofia com espírito feminista é defender de modo ativista e suportar teoricamente a justiça de género. Se a justiça (de género) é o ponto de chegada da filosofia feminista, ou dos vários projetos envolvidos na filosofia feminista, no ponto de partida tem de estar a própria noção de género e, por isso, também o próprio conceito de mulher.
2. Articulações
No mesmo ano em que Beauvoir se viu confrontada com a obrigação de escrever O Segundo Sexo para esclarecer as questões urgentes e aparentemente confusas acerca do que é ser mulher, Willard van Orman Quine escreveu e publicou o seu famoso artigo «On What There Is».[5] O que há? Começa por perguntar. Uma reação imediata e óbvia seria responder: tudo. Mas, como nota Quine, responder assim seria o mesmo que dizer que há o que há. Contudo, nota ainda Quine, as várias tentativas disponíveis na história da filosofia para responder à questão de saber o que há, de modo menos óbvio e mais interessante, conduzem a dificuldades filosóficas intransponíveis ou posições filosóficas insustentáveis. A sua solução é proceder ao inquérito metafísico através de uma investigação da linguagem. Sustentando-se na teoria das descrições de Bertrand Russell,[6] e sem esquecer a distinção entre sentido e referência estabelecida por Gottlob Frege,[7] Quine propõe que um compromisso ontológico fica estabelecido apenas onde se faz corresponder um valor a uma variável ligada numa frase ou teoria. Uma entidade pode então ser assumida como existente — e assim integrar a lista de tudo o que há — apenas se é o objeto mapeado por um conceito para o verdadeiro. Por isso, Quine defende que um debate acerca do que há tem de ser conduzido no plano semântico: tem de ser sobre as frases e teorias que usamos para afirmar a existência e as relações das entidades relevantes. A proposta é que uma ontologia é determinada pelos nossos esquemas conceptuais: falar de frases ou textos que descrevem a realidade é a única via aceitável para fazer metafísica. Uma ideia fica assim estabelecida: um inquérito metafísico é em primeira instância um inquérito linguístico. Mas outra ideia fica sugerida: se o que nos comprometemos a aceitar que há depende dos nossos esquemas conceptuais, então o nosso compromisso com a existência de mulheres depende dos esquemas conceptuais que temos à disposição e, em particular, que são expressos no nosso uso da linguagem.
A metafísica feminista lançada por Haslanger (2000a, 2000b) e promovida por Esa Díaz-León (2017, 2016) partilha esta ideia. Talvez de maneira mais importante, a metafísica feminista precisa desta ideia. Como nota Haslanger (2000a), a metafísica feminista surgiu como um empreendimento controverso, quer para a metafísica quer para o feminismo. A aparente incompatibilidade surge da pressuposição de que o que há é independente de mentes, de um modo relevante que explicaremos adiante. A ideia é que, se o que há é independente de mentes, um projeto feminista normativo e ativista não pode ser compatibilizado com o inquérito metafísico, que deve ser neutro social e politicamente. Um exemplo amplamente citado na literatura é o projeto metafísico de Ted Sider (2017, 2011), que entende que a metafísica deve descrever o nível mais fundamental da estrutura da realidade recorrendo a termos que «recortam a natureza pelas suas articulações».[8] Este projeto assume o realismo ontológico: a tese de que a realidade existe e é como é independente de mentes. Díaz-León (2017) salienta que Sider admite que tenhamos e precisemos de descrições de níveis não fundamentais da natureza. Contudo, rejeita que estas devam ser dadas pela metafísica. Para Sider (2011), a metafísica trata das descrições do nível mais fundamental da realidade e todas as outras descrições têm de, em última instância, ser remetidas a estas descrições mais fundamentais. Como notam algumas feministas, nesta perspetiva, parece não haver lugar para uma metafísica feminista, onde o género, enquanto distinto do sexo, é a noção crucial.[9] Mas Sider (2017) responde defendendo que o género poderá ter um lugar na metafísica desde que a descrição dos fenómenos que envolve seja escolhida como a alternativa cujos termos são os mais próximos de termos de recorte da natureza pelas articulações.
Com base no realismo ontológico, espera-se da metafísica que descreva a realidade de modo objetivo. Como salienta Mikkola (2021), se se supõe que a metafísica é um projeto meramente descritivo, que trata exclusivamente do que há independentemente de mentes, questões normativas como as que motivam o feminismo não têm lugar na metafísica. Em particular, a metafísica assim considerada parece deixar de fora noções cruciais para as feministas: os conceitos de género e de mulher. A metafísica tradicional oferece como resposta à questão «o que é uma mulher?» uma categoria natural. Por exemplo, um ser humano do sexo feminino. Mas, como bem nota Beauvoir, não é imediato ou óbvio que todos os seres humanos do sexo feminino pertençam ao género mulher, assim como pode não ser imediato ou óbvio que todos os indivíduos que pertencem ao género mulher são seres humanos do sexo feminino. Do ponto de vista da filosofia feminista, nenhuma categoria natural capta a categoria ser mulher. No entanto, as feministas querem insistir que há mulheres na realidade.[10] Ser mulher, defendem, é uma categoria real que agrupa seres humanos de acordo com determinadas características. Em causa para as feministas está o caráter social desta categoria, e o que isso acarreta para a exclusão da opressão e injustiça social que recaem sobre as mulheres. A ideia subjacente é que o caráter social do género tem de ser distinguido do caráter natural do sexo. Mas, novamente, propriedades e relações sociais não são espécies de coisas que possam ser descritas numa metafísica social e politicamente neutra. A filosofia feminista exige assim à metafísica tradicional que admita que certas propriedades e relações antes tidas como naturais são, afinal, sociais.[11]
Segundo Haslanger (2000a), a ideia de que metafísica e filosofia feminista são incompatíveis pode ser desmontada considerando-se, por um lado, as repercussões que o inquérito metafísico pode trazer para o propósito feminista e, por outro lado, os novos conceitos e as novas abordagens com que a filosofia feminista pode contribuir para enfrentar os velhos problemas metafísicos. Entre estes problemas, destaca-se — pela sua relevância para a filosofia feminista — a distinção entre o que, no mundo, é independente ou dependente de mentes. O que é (para uma qualquer entidade) ser independente ou dependente de mentes? Haslanger (2000a) responde traçando a história mais recente da metafísica contemporânea a partir das propostas de Quine (1961a, 1961b) para a epistemologia. De acordo com Haslanger, a metafísica contemporânea terá sido influenciada pela rejeição do fundacionismo na epistemologia, desencadeada por Quine em meados do séx. XX. Tal como a epistemologia depois de Quine, a metafísica terá passado a aceitar que nenhuma certeza indubitável ou qualquer acesso direto à realidade teriam de estar na base de um inquérito acerca do que há. Influenciada pela epistemologia, a metafísica terá assumido que esse inquérito acerca do que há deve ser feito olhando para a linguagem comum e, em particular, para o modo como expressa ou refere conceitos.
Ainda segundo Haslanger (2000a), com esta mudança de paradigma metodológico, a metafísica pós-quineana tornou-se imanente, holista e falibilista. Em vez de começar com verdades indubitáveis e evidentes, externas às nossas práticas e reflexões, como fundação, o inquérito metafísico é motivado por essas mesmas práticas e reflexões. Deste modo, segue preceitos holistas e falibilista, segundo os quais a aceitabilidade de uma crença enquanto justificada depende em última instância da manutenção da coerência entre a totalidade das crenças e é permitido a uma crença que seja revista ou falsa, desde que se mantenha a coerência da totalidade das crenças no sistema. Este tipo de inquérito metafísico não requer acesso direto ao mundo para a formação de crenças justificadas nem exige autoridade sobre outras formas de inquérito filosófico. Pelo contrário, a sugestão é que o acesso à realidade tem de passar pela linguagem e pelos esquemas conceptuais que nela são expressos. Haslanger sugere que, ao assumir que o inquérito metafísico é em primeira instância semântico, a metafísica pós-quineana passa a poder ser permeável à introdução de entidades sociais na lista de tudo o que há. Assim, a proposta será que, uma vez que os nossos compromissos ontológicos dependem dos esquemas conceptuais que adotamos e determinam o tipo de coisas que aceitamos existir, então entidades de natureza social não ficam vedadas do inquérito metafísico. Género e mulher passam então a ser noções de pleno direito na metafísica. A relação entre a filosofia feminista e a metafísica é, pois, uma relação de contributo mútuo. Da mesma forma, Díaz-León (2017) propõe que a metafísica feminista está intimamente ligada, não apenas à filosofia política ou prática, mas também à filosofia da linguagem. Mais concretamente, ao atual projeto a que se tem chamado engenharia ou ética conceptual. A sua proposta será apresentada mais adiante, depois da de Haslanger.
3. Construções
Aplicada à metafísica feminista, a questão geral da metafísica — saber até onde o que há é ou não independente de mentes — traduz-se na questão de saber até onde a mente está envolvida na construção do mundo. A questão levanta-se no confronto entre o realismo ontológico e a filosofia feminista: se a distinção biológica entre sexo feminino e sexo masculino não capta a categoria ser mulher, então descrever o nível fundamental da estrutura da realidade em termos das suas articulações mais básicas não serve a uma metafísica feminista. É preciso considerar outros níveis de descrição do que há. Para Haslanger, as feministas terão rejeitado a metafísica tradicional em parte por envolver a noção de espécie natural (natural kind). A metafísica tradicional, diz, assume que distinguimos espécies naturais olhando para o mundo. Mas a metafísica depois de Quine impede esse procedimento e exige que olhemos antes para os termos linguísticos e esquemas conceptuais com que descrevemos a realidade. Cumprir o programa de Quine, olhar para os nossos termos linguísticos e esquemas conceptuais, revela que a noção de espécie natural é usada de duas maneiras: ora para falar de espécies (kinds), ora para falar de tipos (types). Habitualmente, prossegue Haslanger, usamos «espécie» para classificar substâncias (quase sempre objetos físicos) de acordo com as suas propriedades manifestas e chamamos «essência» ao conjunto destas propriedades manifestas comuns. Mas nem sempre «espécie natural» nos serve com este propósito. Por vezes, salienta ainda Haslanger, usamos este termo para ligar objetos que, precisamente, não têm em comum propriedades manifestas. Nestes casos, sugere, não estamos a falar de uma espécie definida por uma essência, mas de um tipo, que caracteriza como uma unidade de coisas (substâncias ou não) ligadas por algo que não um conjunto de propriedades manifestas partilhadas.
Haslanger propõe que a distinção entre espécie e tipo introduz variedade ontológica na noção tradicional de espécie natural: mostra que nem todas as espécies naturais têm de ser compreendidas como conjuntos de objetos que partilham uma essência. A questão agora é saber o que são essas unidades a partir das quais ligamos em classes entidades que não têm necessariamente as mesmas propriedades manifestas. Para Haslanger, as respostas a esta questão dividem-se consoante se entende que o que há é ou não dependente de mentes. Enquanto o realismo assume que tipos são objetivos, e por isso independentes de mentes, o antirrealismo rejeita-o, ou porque rejeita que possamos saber se essas unidades são tipos objetivos (ceticismo), ou porque rejeita que esses tipos são objetivos (nominalismo). Portanto, conclui Haslanger, para a realista, há tipos que são objetivos e podemos conhecer. Mas a antirrealista questiona ou a existência ou a objetividade desses tipos. Para a antirrealista (cética ou nominalista), tipos são construções sociais: são dependentes de fatores sociais e políticos e, por isso, dependentes de mentes.
Díaz-León (2017) distingue o construcionismo social daquilo a que chama antirrealismo global ou construcionismo global a partir de uma questão que considera estar na interseção da metafísica com a filosofia da linguagem. Díaz-León sugere que, no âmbito da filosofia da linguagem, se assume que para representar a realidade tem de se combinar conceitos em pensamentos e para expressar pensamentos tem de se combinar palavras em frases com significado. Díaz-León entende que esta é uma ideia comum à filosofia da linguagem e à metafísica contemporânea. A partir desta interseção, Díaz-León desenha três possibilidades para a metafísica. A primeira é o realismo ontológico, que, como vimos, considera que compete à metafísica fornecer descrições do nível mais fundamental da realidade, usando termos que recortam a natureza pelas articulações da sua estrutura mais básica. Para o realismo ontológico, essa estrutura mais básica da natureza existe e é como é independente de mentes. Díaz-León apresenta duas respostas ao realismo ontológico. O antirrealismo ontológico, apesar de aceitar que devemos escolher os termos mais próximos para recortar a natureza pelas suas articulações, rejeita que essa escolha seja independente de mentes, e mais concretamente, dos interesses que motivam o inquérito metafísico. O antirrealismo global ou construcionismo global entende que a metafísica não se debruça sobre a descrição da realidade tal como é independentemente de mentes, mas sobre os esquemas conceptuais mais úteis para os nossos propósitos. Nesta perspetiva, mais do que representações, os nossos esquemas conceptuais são construções da realidade. O antirrealismo ou construcionismo global recusa tanto o realismo ontológico como o antirrealismo ontológico, na medida em que rejeita que tanto a realidade como os nossos critérios para determinar o que é mais fundamental são independentes de mentes. Nesta perspetiva, os termos e conceitos que escolhemos para descrever a realidade são também o que a constrói.
O construcionismo social surge nas propostas de Díaz-León em contraste com o antirrealismo ou construcionismo global. Díaz-León quer oferecer uma alternativa ao antirrealismo ou construcionismo global, a partir dessa interseção entre metafísica e filosofia da linguagem. A alternativa pretende preservar uma tese que é compatível quer com o realismo ontológico quer com o antirrealismo ontológico, a que chama realismo global ou realismo mínimo. De acordo com o realismo global ou mínimo, os nossos pensamentos e as nossas frases são verdadeiros quando correspondem à realidade e falsos em caso contrário. Também o realismo global ou realismo mínimo concorda com o realismo ontológico no que diz respeito à existência de uma estrutura fundamental da natureza que é independente de mentes e, por isso, dos nossos interesses. No entanto, rejeita que o critério de seleção entre descrições da realidade seja a coincidência dos termos com as articulações da estrutura mais fundamental da realidade. A proposta do realismo global ou mínimo é que, pelo menos em alguns contextos, os critérios de seleção das descrições da realidade são sociais e políticos. Díaz-León nota como as propostas de Haslanger (2000a) podem ser aqui inseridas, mas as de Haslanger (2016) estão mais próximas do antirrealismo ontológico.
De facto, Haslanger (2000a) posiciona-se contra o antirrealismo e o construcionismo social que este acarreta quanto aos tipos. Na sua perspetiva, muitas feministas têm adotado o antirrealismo de tipos por considerarem que é a melhor motivação do feminismo contra a metafísica tradicional—e o que temos vindo aqui a chamar realismo ontológico. A razão pela qual Haslanger entende que as feministas se sentem apoiadas pelo antirrealismo contra a tradição é que assumem que a opressão e injustiça social a que estão sujeitas as mulheres se fundamenta na distribuição metafísica de todos os indivíduos na espécie natural mulher ou na espécie natural homem. Para estas feministas, a ideia de que a distinção entre mulheres e homens é natural e objetiva, ou seja, independente de mentes ou de propósitos sociais e políticos, é o que motiva a subordinação das primeiras pelos segundos. A contraproposta do feminismo é que a agregação de características individuais como o corpo, o género e a sexualidade nas espécies ou tipos feminino e masculino não é fundada na natureza, mas construída socialmente. A isto pode acrescentar-se que não apenas o género, mas também o sexo é uma construção social.[12] Resulta daqui que, pelo menos o género, embora também possivelmente o sexo, são tipos sociais.
Haslanger propõe-se contrariar este resultado com o que chama um realismo moderado. Esta posição é realista porque assume que tipos objetivos são recursos conceptuais que resultam de diferenças naturais reais entre indivíduos, mas é moderada porque aceita, a partir de Quine, que esses mesmos recursos conceptuais são também influenciados por fatores sociais e políticos. Uma vez que é informado pela epistemologia pós-quineana, o realismo moderado está impedido de concluir, acerca da influência que os fatores sociais e políticos podem ter sobre os nossos recursos conceptuais, que aquilo a que estes nos dão acesso é também dependente de mentes.[13] O realismo moderado proposto por Haslanger permite escolher os tipos objetivos com que queremos recortar o mundo, de acordo com os nossos propósitos, interesses ou preocupações, sociais e políticos. A partir de um realismo moderado pode então reivindicar-se a mesma mudança social e política exigida pelas antirrealistas. Antirrealistas e realistas moderadas concordam que há uma relação de determinação mútua entre os esquemas conceptuais pelos quais classificamos coisas no mundo e os nossos interesses e preocupações sociais e políticas. A partir daqui, as realistas moderadas podem então juntar-se ao projeto feminista de agir pela mudança social necessária para acabar com a opressão e a injustiça social sobre as mulheres: embora não possamos alterar o que há independentemente das nossas mentes ou ações, podemos refletir e agir sobre os recursos conceptuais a partir dos quais dividimos o que há em diferentes espécies ou tipos.
Tal como no caso do antirrealismo cético ou nominalista de que nos fala Haslanger, o problema do antirrealismo ou construcionismo global de que nos fala Díaz-León é que se sustenta numa tese contrária ao realismo global ou mínimo, de acordo com a qual, uma vez que podemos fazer sentido de uma noção do mundo externo apenas enquanto representação nossa, a verdade ou falsidade de uma frase não depende de qualquer correspondência com uma realidade independente de mentes. Segundo Díaz-León, para o antirrealismo ou construcionismo global, a realidade é construída pelas nossas crenças e teorias acerca dela. Entendida enquanto tese sobre a natureza da realidade, esta é uma tese que Díaz-León classifica como implausível. Contudo, Díaz-León defende que o antirrealismo ou construcionismo global pode tornar-se (mais) plausível se o que estiver a ser afirmado como construído pelas nossas crenças e teorias for, não a natureza da realidade, mas a natureza das nossas representações e, mais relevantemente para nós, a natureza dos nossos conceitos. O ponto de Díaz-León aqui é que o construcionismo social (acerca dos nossos conceitos) não conduz necessariamente ao antirrealismo global. O compromisso ontológico do construcionismo social é com a natureza social (e política) dos nossos conceitos, e não das entidades ou dos fenómenos que os nossos conceitos classificam. Uma outra posição a distinguir do antirrealismo ou construcionismo global, e que Díaz-León parece favorecer, é o construcionismo parcial. De acordo com o construcionismo parcial, algumas entidades e fenómenos reais são socialmente construídos. Este será o caso do género. Como explica Díaz-León, o construcionismo parcial permite afirmar, como Haslanger (2000a, 2016), que o que determina se um indivíduo é do género feminino ou masculino é o lugar de privilégio ou submissão que ocupa socialmente (ou economicamente), e não qualquer propriedade ou conjunto de propriedades biológicas. Para Díaz-León, afirmar que algumas entidades ou fenómenos são socialmente construídos é então plausível se afirmado no âmbito de um construcionismo parcial — e não global.[14] Note-se que, para uma entidade ou fenómeno, ser socialmente construído é o sentido relevante que queremos dar à ideia inicial de Haslanger de ser dependente de mentes. O objetivo de Díaz-León é defender que fatores sociais e políticos desempenham um papel crucial na escolha das descrições que queremos fazer da realidade, mantendo o realismo global ou mínimo. O problema, como veremos, é que Díaz-León sustenta as suas propostas numa conceção mentalista de conceitos.
4. Conceitos
Haslanger (2000b, 2005) delineia um projeto para a metafísica feminista que caracteriza como melhorativo (ameliorative). Haslanger (2000b) tinha antes chamado a este projeto «analítico».[15] Na metafísica feminista, o objetivo do projeto melhorativo é enfrentar a importante noção de género.[16] Como vimos, as feministas antirrealistas quanto aos tipos defendem que o género é uma construção social: uma ligação de coisas diversas numa só classe que não é objetiva e, por isso, independente de mentes ou de fatores sociais e políticos. Tendo como base o seu realismo moderado, o projeto melhorativo de Haslanger permite à metafísica feminista procurar pelo género, não enquanto essência de uma espécie natural (um conjunto de propriedades manifestas comuns), mas enquanto uma unidade objetiva que agrega diferentes indivíduos numa classe: um conceito. Haslanger distingue um projeto melhorativo de um projeto descritivo e de um projeto conceptual. Enquanto um projeto descritivo olha para o que é um conceito no mundo e um projeto conceptual olha para o conceito enquanto tal, um projeto melhorativo olha para as tarefas que o conceito cumpre nas nossas vidas práticas e teóricas. Por isso, ao contrário dos projetos descritivo e conceptual, um projeto melhorativo é normativo: procura a melhor forma de entender o conceito em investigação, o conceito alvo, avaliando se os termos usados na linguagem comum para o referir medeiam adequadamente o nosso acesso à parte da realidade que queremos descrever. Por isso, um projeto melhorativo é também estipulativo: exige que nós decidamos o que queremos fazer com um conceito. No caso da metafísica feminista, o que queremos fazer com o conceito de género é investigar como contribui para a manutenção da subordinação social e política das mulheres, mas também como pode contribuir para acabar com essa subordinação.
Haslanger (2000b) entende que o conceito de género deve cumprir quatro tarefas numa metafísica feminista. Resumidamente, essas tarefas são: identificar e explicar as desigualdades entre mulheres e homens; determinar semelhanças e diferenças entre ambos; revelar como se entrelaça em fenómenos sociais e políticos; e explicar a agência das mulheres. Para Haslanger, o projeto descritivo e o projeto conceptual não são suficientes para fazer o conceito de género cumprir estas tarefas. A sua proposta é que só um projeto melhorativo pode revelar que o conceito de género liga uma diversidade de fenómenos sociais e políticos a partir de um fenómeno nuclear: ser um ser humano do sexo feminino (ou masculino). Uma avaliação do conceito de género, propõe Haslanger, mostra que o sexo biológico determina um padrão de relações sociais e políticas disponíveis para os indivíduos que caem sob o conceito mulher (e os que caem sob o conceito homem). É este padrão de relações disponibilizado aos indivíduos do sexo feminino (e do sexo masculino) que distingue a classe das mulheres (e a classe dos homens), ou seja, o género. Mais importantemente ainda, o padrão de relações disponíveis para mulheres (e homens) determina que são social e politicamente subordinadas em relação aos indivíduos que têm acesso ao padrão de relações disponíveis para os que nascem com o sexo masculino. O sexo é então um marcador físico da distinção entre duas classes de indivíduos que se distinguem por uma relação de subordinação social e política em detrimento dos que pertencem à classe mulheres e com o privilégio dos que pertencem à classe homens. Verifica-se então que o conceito de género ocupa um lugar central numa rede conceptual que define as relações sociais e políticas disponíveis a cada indivíduo de acordo com o sexo com que nascem. O género pode então ser reconhecido como uma classe social.
A proposta de Haslanger enfrenta críticas. Uma delas é apresentada por intermédio de um puzzle montado por Jennifer Saul (2012), que Díaz-León (2016) explica assim: se usamos «mulher» como um termo para sexo feminino, a distinguir de «homem» enquanto termo para sexo masculino, alguns indivíduos a quem queremos chamar mulher ou ficam de fora de ambos (pessoas transexuais) ou ficam dentro de ambos (pessoas intersexuais); mas se usarmos «mulher» como termo para género, enquanto classe social, como propõe Haslanger, então não é possível ter critérios explícitos para determinar quem cabe e quem não cabe nessa classe, dada a complexidade de relações sociais e políticas em que os indivíduos que pertencem à classe das mulheres se encontram. Para Saul, o contextualismo oferece a seguinte solução para o puzzle: «mulher» é usado ora como termo para sexo ora como termo para género, consoante o contexto de enunciação. Mas tal solução seria insatisfatória para o feminismo pois permitiria que, em alguns contextos, a opressão e injustiça social sobre mulheres fosse aceitável. Díaz-León propõe que esta insatisfação seja superada encarando o contextualismo a partir de uma perspetiva descritiva do termo «mulher». A proposta é que uma investigação descritiva do conceito mulher revela que o contexto de escolha entre conceitos para descrever partes da realidade (como ocorre com o conceito de sexo e o conceito de género) se estende aos fatores sociais e políticos envolvidos na constituição do próprio conceito — e não apenas das razões para o escolher para descrever as mesmas partes da realidade, como no projeto de Haslanger.
A partir da interseção da metafísica com a filosofia da linguagem, Díaz-León quer defender uma posição realista moderada sobre a verdade e a realidade. A sua posição é realista porque assume o realismo global ou mínimo, de acordo com o qual a verdade (ou falsidade) de pensamentos e frases depende da sua correspondência com a realidade. Para o realismo global ou mínimo, o realismo ontológico é verdadeiro: a realidade que determina a verdade dos nossos pensamentos e frases é independente de nós. Mas o realismo global ou mínimo rejeita, contra o realismo ontológico, que a melhor (ou única) descrição da realidade é aquela que mais se aproxima das articulações na estrutura da realidade. Para o realismo global ou mínimo, fatores sociais e políticos contam para a escolha dos conceitos e termos com que queremos descrever a realidade. Mas a posição de Díaz-León é moderada porque cede a uma certa ideia antirrealista: que, pelo menos algumas partes da realidade, são elas próprias socialmente construídas. Para Díaz-León, algumas entidades e alguns fenómenos reais são socialmente construídos, nomeadamente o género.
A posição que Díaz-León pretende defender distingue-se do construcionismo social de uma maneira importante. A proposta do construcionismo social é que, embora os esquemas sociais com que escolhemos recortá-la sejam dependentes de fatores sociais e políticos, a realidade é independente de mentes. Díaz-León quer ir mais longe e propor que, não apenas a escolha dos conceitos, mas os próprios conceitos são dependentes dos nossos interesses sociais e políticos. É aqui que começa o problema.
Díaz-León ilustra esta possibilidade considerando conceitos densos (thick concepts). Uma descrição destes conceitos revela que, enquanto modos de conceptualizar fenómenos, têm elementos descritivos e elementos normativos. Ao contrário do que é descritivo, o que é normativo envolve uma avaliação, que diz respeito a valores positivos ou negativos.[17] Os nossos conceitos podem ser puramente descritivos ou puramente normativos. Mas também podem ser conceitos densos, ou seja, podem conter elementos descritivos e normativos. A carga normativa dos conceitos densos depende do contexto em que são usados. Termos que podem ter carga positiva num contexto, podem ter carga negativa noutros. A partir desta distinção entre conceitos escassos (puramente descritivos ou puramente normativos) e conceitos densos (com elementos descritivos e normativos), Díaz-León sugere que uma escolha entre diferentes conceitos para descrever uma mesma realidade não tem então de depender do maior ou menor grau com que fazem corresponder a descrição à realidade. Afinal, diferentes conceitos escassos ou densos podem descrever corretamente a realidade. A sugestão é então que a escolha dos melhores conceitos para aplicar a uma descrição da realidade pode depender do contexto descritivo ou normativo em que queremos aplicar o conceito. Um conceito surge então como uma conceptualização de experiências que, além de estar entrelaçada numa rede de elementos sociais e políticos, pode conter em si próprio elementos normativos.
5. Ramificações
Díaz-León considera que há uma ligação fundacional entre a questão central da filosofia da linguagem, de saber como frases representam o mundo (e têm assim significado), e o projeto geral da metafísica, de fornecer descrições da realidade. A sua proposta assenta na ideia de que pensamentos são estados mentais que representam o mundo e são constituídos pela ordenação de conceitos previamente adquiridos.[18] Na proposta de Díaz-León, os esquemas conceptuais que garantem lugar às categorias sociais numa metafísica, e em especial às categorias género e mulher numa metafísica feminista, surgem como entidades de natureza mental. Ora, esta proposta está em conflito tanto com a filosofia da linguagem como com a metafísica feminista. Mas mais relevantemente, parece estar em choque com a própria proposta de Díaz-León.
Em 1884, Frege afirma:
Há quem pense (…) que os conceitos rebentam na nossa alma como as folhas nas árvores e julgue poder apreender a sua essência através da investigação do seu modo de formação, ao mesmo tempo que (…) os procura elucidar de um ponto de vista psicológico. Mas esta conceção torna tudo subjetivo e suprime (…) a verdade. (Frege 1992 [1884]: 33)
Para Frege, que inaugurou a filosofia da linguagem contemporânea, não pode levantar-se a questão da verdade onde há apenas representações mentais. Um portador de verdade é um pensamento, que é expresso numa frase enquanto o seu sentido. O objetivo de Frege nos seus Fundamentos da Aritmética é demonstrar o logicismo.[19] Para concluir que os princípios da aritmética são, em última instância, princípios lógicos, Frege começa por afastar a psicologia de uma investigação (metafísica) acerca do que é um número, e em particular, do que é o número um. Retirar de um conceito toda a carga psicológica que carrega quando se apresenta nas suas «roupagens» das linguagens naturais é um passo essencial para prosseguir o programa logicista. A «ganga» que cobre os nossos conceitos é um emaranhado de representações mentais associadas ao uso de linguagem, no qual são expressos os conceitos. Uma representação (Vorstellung) é por definição uma entidade mental, a que só o seu portador tem acesso. Assim, impressões sensoriais, sensações, imagens interiores, imagens retinianas e outras formações mentais (para usar os seus próprios exemplos) são representações. Uma vez que todos os que dominam uma linguagem podem apreender conceitos, e, por isso, vários falantes de uma mesma língua podem compreender o mesmo conceito numa interação linguística, conceitos não podem ser representações. Na filosofia da linguagem contemporânea herdeira de Frege nem conceitos nem pensamentos são representações mentais.
Mas, mais ainda, Frege defende que conceitos não são constituintes de pensamentos como Díaz-León pensa. Para Frege, uma análise conceptual começa com a decomposição de um pensamento. Conceitos não são conceptualizações que se adquire em experiências; são antes descobertos na análise (lógica) de um pensamento. A relação de pensamentos com a linguagem não é uma relação de estruturação. Não há nada de linguístico num pensamento. A única ligação de um pensamento a uma frase é que é o seu sentido, e é por isso que frases podem ser feitas corresponder a valores de verdade. Os pensamentos expressos em frases são os portadores de verdade. A relação de pensamentos ou frases com a realidade não é de correspondência direta. Díaz-León quer adotar o construcionismo parcial como base da sua proposta de acordo com a qual género será uma parte da realidade que é socialmente construída. O construcionismo parcial distingue-se do antirrealismo ou construcionismo global porque preserva o realismo global ou mínimo. Mas, se conceitos e pensamentos são entendidos como representações mentais, o realismo global ou mínimo que Díaz-León quer preservar na sua proposta construtivista parcial fica em risco. Díaz-León não tem como evitar o antirrealismo ou construcionismo global contra o qual monta a sua posição.
6. Conclusão
O objetivo primeiro da metafísica feminista iniciada por Haslanger é integrar, no inquérito acerca do que há, as categorias sociais de que precisa o feminismo para identificar e eliminar a opressão sobre as mulheres e as injustiças sociais a que estão sujeitas. Haslanger defende uma forma de realismo que atribui uma natureza independente de mentes não apenas à realidade, mas também aos conceitos (os tipos objetivos) com que distribuímos entidades e acontecimentos em categorias. Para Haslanger, a dependência de mentes, enquanto dependência do que é social e político, está restrita à interligação dos conceitos que usamos para descrever a realidade, como «mulher», e das nossas teorias e práticas. Na sua perspetiva, os conceitos que usamos estão entrelaçados nas nossas vidas teóricas e práticas, e é nesse sentido que determinam as nossas descrições metafísicas. O que estamos dispostos a aceitar como o que há depende assim de uma rede complexa de interligações entre esquemas conceptuais e formas de vida. Ao aceitar o construcionismo parcial, para acomodar a sua extensão do contextualismo aos próprios conceitos enquanto os encerra no mundo mental, Díaz-León parece impedir o percurso da metafísica feminista. Se o conceito de género é uma representação mental, não há como determinar que realidade social ou política descreve numa descrição metafísica. As mulheres cuja existência Simone de Beauvoir gostaria de afirmar como reais tornam-se meras ideias sociais.
[1] O Segundo Sexo foi escrito entre 1948 e 1949, como aliás é salientado pela própria autora.
[2] Haslanger (2000a) fala aqui também de racismo e racialização. Por questões de relevância no contexto deste artigo, aqui considera-se apenas o sexismo e as mulheres.
[3] O termo de Hornsby é malestream. Aplicando a mesma técnica, agregamos as palavras «masculina» e «dominante», em tradução de male e mainstream, respetivamente, para formar esta expressão. Cf. Hornsby 2000. Optamos por esta tradução também para distinguir a expressão de «masculinizante», já existente na língua portuguesa mas com outro sentido.
[4] Antony (2012) está preocupada em refutar a proposta feminista de Jennifer Hornsby (2000), segundo a qual a filosofia da linguagem (clássica, tradicional) é machista ou masculinizante por, ao não contemplar uma noção de atos comunicacionais numa teoria dos atos de fala, afastar a possibilidade de análise do discurso das mulheres.
[5] Cf. Quine 1953.
[6] Cf. Russell 1905.
[7] Cf. Frege 2019 [1892].
[8] O termo original é «carving it by its joints» (cf. Sider 2011). Esta é uma expressão muito usada nos atuais debates em metafísica, mas é retirada do Fedro (265e) de Platão, onde se lê: «[A outra maneira de proceder para responder ao que são as coisas é] dividir a ideia geral nas ideias particulares suas constituintes, observando-as nas suas articulações naturais, evitando, todavia, mutilar essas partes constituintes, tal como um mau cortador» (Platão 2000: 101). Em inglês lê-se, por exemplo: «The second principle [for considering what something is] is that of division into species according to the natural formation, where the joint is, not breaking any part as a bad carver might» (Plato 2008).
[9] Cf. Barnes (2014) e Mikkola (2016).
[10] Pensemos novamente em Simone de Beauvoir ou em Virginia Woolf.
[11] Cf. Mikkola 2021; Hall e Ásta 2021; Ásta 2018; Haslanger 2005, 2000b, 2000a; Haslanger e Ásta 2011.
[12] Haslanger apresenta Judith Butler como uma proponente do antirrealismo por defender que tanto o sexo como o género são construções sociais e, por isso, não há factos objetivos acerca de qualquer um deles.
[13] Tal como, sugere Haslanger, não podemos concluir da mediação dos sentidos na perceção que o que vemos são impressões sensoriais.
[14] Díaz-León distingue duas maneiras de se considerar que algo é socialmente construído: causal ou constitutivamente. Algo é socialmente construído de modo causal quando a sua existência depende causalmente de estruturas e práticas sociais, e de modo constitutivo se a sua existência depende necessariamente das crenças e atitudes de determinados agentes.
[15] Lê-se em Haslanger (2005: 23-24, Nota 1) que «melhorativo» capta melhor o tipo de projeto que Quine (1951) tem em mente quando distingue a forma «explicativa» de definição como a mais filosófica, no sentido em que uma definição explicativa tem como propósito incrementar — melhorar — a compreensão do que está a ser definido, fornecendo refinamentos ou suplementações do significado do termo que o refere.
[16] Mais uma vez, Haslanger aborda esta questão em conjunto com a questão de saber o que é uma raça. Uma vez que o nosso objetivo é tratar da noção de género, omitimos todas as referências de Haslanger à noção de raça.
[17] A partir dos próprios exemplos de Díaz-León, podemos pensar em bela/feia, correta/incorreta, corajosa/cobarde.
[18] Cf. Díaz-León 2017: 252-254.
[19] Cf. Frege 1992 [1884].
Referências
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