Quando se tenta fazer uma descrição o mais correcta e abrangente possível do que é o projecto «A música portuguesa a gostar dela própria», chegamos a algo mais ou menos assim: imaginemos um youtube focado na música portuguesa do século XXI, onde todos os filmes têm a mesma estética e onde se procura aquilo que é mais raro e tem tendência a desaparecer, onde se grava as pessoas reais tal como são, sem artifícios ou maquilhagem, e ainda se pode ver a paisagem como algo em contínua transformação. Tudo isto está certo, mas é absolutamente redutor: é apenas uma descrição concisa destinada a quem quer saber o que é uma coisa no seu todo sem entender as partes. 

Nas várias definições que fui dando daquilo que fiz ao longo do tempo há incoerências e contradições, mas acredito que em todas elas subsiste uma essência que perdura.

Em 1996, a minha avó estava num lar e eu estudava cinema. Comecei a fazer um documentário: ia para lá com uma MiniDV e com um MiniDisc e gravava, gravava como cinema verdade. Queria fazer um filme que se chamasse A minha Avó, Godard e o Lar. Havia lá uma velhinha muito velhinha, chamava-se Consuelo; decidiu a minha vida sem o saber, era cega. Um dia disse em voz alta: «Todas as aldeias têm a sua igreja e têm o seu sino; o sino serve para avisar as pessoas de quando são horas de almoçar e de jantar e de rezar; aqui não se ouve um sino que seja.» De repente, ela explicava-me a importância de dar atenção ao som e às paisagens sonoras e fez todo o sentido para mim. E parte ficou decidido. Num outro dia filmava na sala e a mesma velhinha, Consuelo, falava ao telefone; de repente desligou e muito pausadamente, como se fosse teatro, disse: «Esta é a sobrinha mais querida que tenho, era com ela que contava para me fechar os olhos», e passou a mão pelas pálpebras, «mas afinal é ela que está sozinha». Aquela dimensão humana que de súbito tinha gravado marcou-me, marcou-me muito provavelmente para sempre — nunca esqueci aquele momento. O filme nunca chegou a ser feito e mais tarde eu desistia da escola de Cinema, pois nada me dava. De alguma forma sabia que queria era filmar pessoas, documentar ambientes, sabia que era urgente documentar. Dois anos depois estava em Odeceixe e a passear ouvi um cantar, parecia mais uma lamúria; era estranho, era quase árabe no meio das casinhas brancas de cal, fazia sentido mas não tinha nexo, nem palavras. O som vinha de uma casa com a porta aberta; era um trautear, um imitar de instrumentos não definidos. Gravei tudo com um MiniDisc. A minha vida estava decidida: eu ia gravar, ia documentar os momentos em que as pessoas cantam para si, em que usam a música como escape, «como um aliviar das penas e das mágoas do coração»; o meu trabalho não é sobre música — nunca foi.

O meu trabalho é contar histórias, divulgar uma cultura, criar ambientes sonoros, desconstruir preconceitos e purismos, cruzar públicos, mas antes de tudo é documentar, ouvir as pessoas e filmar planos bonitos; porém, não se limita a isso, porque chego à conclusão de que sou dos melhores assistentes sociais que pode haver. Aumento a auto-estima, estimulo a memória e as capacidades cognitivas, crio espaços de encontro e partilha, gravo postais-vídeo que unem famílias separadas pela emigração. Alimento que o cantar é importante mesmo que não se cante afinado ou que se guinche, defendo que todos devemos cantar porque sim. 

É preciso documentar, gravar muito, ter mau feitio mas um coração enorme, para conhecer velhinhas e tocadores, para conviver com eles e ao mesmo tempo criar polémicas nas redes sociais. Validar que se produz conhecimento porque se é um mensageiro. É preciso mostrar a música do país sempre com um espírito pop, sempre com vontade de chegar às pessoas. É preciso criar mais projectos: o sotaque português a gostar dele próprio, o brinquedo também e o conto. É preciso não parar e ter uma vontade enorme, tão grande como o amor para continuar sempre.

Se não conhecermos esta cultura, esta música única, se não a apreciarmos e a divulgarmos, se não lhe dermos o devido valor, brevemente seremos um povo cinzento cheio de importações culturais e de massa e sem qualquer ponto identitário. Seremos um McDonald’s de canções gigante. Por isso a luta é todos os dias, porque é urgente documentar, identificar e estudar esta música. Este sim é um acto político e muito sério. Ou a imagem final é um baile só de mazurcas num centro comercial cheio de lojas iguais.

Acredito que há um Portugal que não é ouvido, acredito que há uma memória do futuro, que há muita música por documentar que não tem hipóteses, não se ouve nos Bons Sons nem na Festa do Avante, da qual não há recolhas e não está à  venda na FNAC — essa é a cultura musical que me interessa resgatar e dar a conhecer. A alfabetização da memória é isso mesmo: construir uma memória colectiva de uma música que podia ser um cartão de visita e um atractivo turístico. Não me interessa discutir se se pode dizer tradicional ou não, ou se a música é popular ou outra coisa, o que me interessa é que essas sonoridades de alguma forma já fazem parte de uma memória que é preciso continuar; as pessoas têm de conhecer o que se produz longe das cidades e da vista das auto-estradas. Há uma responsabilidade cívica nisto. Sinto todos os dias que sou um grande chato e que estou sempre a insistir, mas é mesmo preciso: quando olho para as minhas recolhas e vejo quantas pessoas já morreram e levaram com elas o seu saber, as suas práticas, vejo mesmo a urgência de tudo isto.

 

Acompanhe o trabalho de Tiago Pereira no site da Música Portuguesa a Gostar dela Própria.

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