Foi no dia 31 de dezembro de 2019 que a Comissão Municipal de Saúde de Wuhan, na província de Hubei, reportou 27 casos de uma pneumonia de causa desconhecida. Todos os casos estavam ligados a um mercado de alimentos e animais vivos (peixe, mariscos e aves) em Wuhan. Podemos afirmar que foi aqui, pelos menos em termos de comunicação dos media, que o vírus chegou até nós.
No último dia do ano a população mundial leu em nota de rodapé aquilo que provavelmente ficará marcado na história como um dos maiores problemas sociais e económicos que o mundo conhecerá.
Um vírus que começou com 27 casos reportados numa província chinesa e que hoje está presente em todas esquinas sem olhar a fronteiras económicas e a classes sociais. Um vírus que já matou mais de um milhão de pessoas. Mulheres, homens e crianças que perderam a vida através de uma contaminação maquiavélica e transparente que não olha a meios para atingir qualquer um de nós.
Penosamente triste e de uma impotência estrondeante este mundo que anda a lutar para salvar o planeta de tudo e de todos e que depois se vê tombado por um microparasita que destrói, sem dó nem piedade, tudo por onde passa. Este mundo, o nosso mundo, repleto de cientistas, de engenheiros e de doutores e que no final tomba com fraqueza perante uma partícula invisível.
Que me desculpem os leitores, por esta entrada desoladora, mas na verdade pegar o touro pelos cornos (desde que não seja numa praça com varas espetadas nos animais prostrados) é sempre melhor do que massajar o nosso ego do dia-a-dia maravilhoso.
Que ousadia a minha, começar este escrito sem primeiro me apresentar. Eu sou o Miguel, residente em Leiria mas natural de Coimbra. No entanto sinto uma orgulhosa sensação de que nasci na beira alta, na cidade da Guarda, por influência com toda a certeza dos meus pais, fiéis beirões. Sou, com toda a convicção e paixão, professor do 1.º ciclo há mais de 10 anos. Passaram pela minha frente quase 300 alunos e alunas diferentes. Permitam-me reforçar a diferença de cada indivíduo para vos explicar a infinita beleza e prazer que sinto em todos os dias que dou aulas aos meus alunos. Aulas e dias sempre irrepetíveis, proporcionados pela exclusividade mental e física de cada ser humano, de cada criança que entra pela escola adentro na esperança de deixar qualquer coisa de si e de regressar a casa com algo mais do que aquilo com que chegou à escola naquele dia.
Convido-vos a fazermos uma viagem ao famoso Diagrama de Bronfenbrenner. A Teoria Ecológica do Desenvolvimento, criada pelo autor, demonstra-nos os diferentes níveis de influência que uma criança recebe dos outros, sejam eles o núcleo familiar, a comunidade imediata, a comunidade institucional e a estrutura política e social. O científico diagrama criado pelo psicólogo americano, nascido na Rússia no ano de 1917, mostra-nos a verdadeira importância que uma família e o grupo de amigos mais próximos da criança têm no seu desenvolvimento.
Um professor, uma mãe ou um pai, se estiverem atentos aos comportamentos diários dos seus alunos e filhos, conseguem compreender na perfeição o estudo apresentado por Bronfenbrenner e qual o seu verdadeiro impacto. O psicólogo afirma que a escola também se apresenta como agente preponderante na construção do ser individual.
O que provavelmente Bronfenbrenner não terá estudado na sua teoria do desenvolvimento foi quais os índices de impacto na evolução do crescimento de uma criança com a presença de um vírus que nos obrigou a ficar fechados em casa desde o dia 12 de março, quando o governo português anunciou que todas as escolas de todos os graus de ensino teriam de suspender as suas atividades presenciais.
Um duro e penoso golpe, principalmente nas crianças e jovens, que tinham a escola como primeiro ponto de contacto social fora de casa e que a partir daquele dia teriam que olhar para o professor e para os colegas através de um pequeno ecrã de computador. Crianças e jovens a comunicar com «o exterior» unicamente através da tecnologia. Aquilo pelo qual a sociedade de hoje em dia andava alarmada, a «droga» social das crianças e jovens, tornava-se desde aquele dia a receita fundamental e única para que os estudantes conseguissem comunicar com a escola, com os seus professores e colegas.
Que profunda tristeza!
Depois daquele dia acabaram os abraços matinais e os olhares cúmplices com que todos dias recebia e era recebido pelos meus alunos e pelas minhas alunas na escola. Acabaram também aquelas conversas entre professor e aluno, de amigo para amigo, como aquela que tive um dia quando uma aluna chegou atrasada às aulas, a soluçar e as lágrimas a caírem-lhe pelo o rosto porque tinha ouvido o pai e mãe a discutirem e a dizerem que já não gostavam um do outro. A minha aluna, que fingiu lá por casa estar a dormir profundamente, encontrava-se verdadeiramente triste e preocupada com o que estava a acontecer com a família. Aconcheguei-a com um apertado abraço e disse-lhe que os adultos às vezes pareciam pequenas crianças e que por vezes também discutiam sem saberem muito bem porquê. Lembro-me que ela olhou para mim, sorriu e revelou o conforto e a paz necessária para voltar a ser criança naquele dia.
Depois do dia 12 de março acabaram as confissões dos amores e desamores que todos os dias recebia sussurradas ao meu ouvido, com os milhões de hormonas a transformarem-se em infinitas «borboletas na barriga» naqueles pequenos seres que estavam a sentir a estranha sensação de paixão pela primeira vez.
Acabaram os trabalhos de grupo, onde se desenvolvia múltiplas competências de entreajuda, e as discussões de opiniões entre todos. O fim dos «disputados» jogos de futebol e das corridas à apanhada onde todos acabavam embrulhados e a rir, uns em cima dos outros.
Depois daquele dia o tema de aulas síncronas e assíncronas banalizou-se e a escola, juntamente com os seus alunos e professores, adaptou-se rapidamente e de forma hercúlea a esta nova forma de ligar todos os atores principais da sua comunidade.
Todos nós, professores, alunos e pais de alunos a recriar-nos para encontrarmos as condições mínimas possíveis para que a escola continuasse a fazer parte do dia-a-dia de todos nós.
Formações online para aprendermos em tempo recorde como trabalhar da melhor forma com as novas plataformas virtuais que existem. Aquisição desenfreada de computadores pelos alunos oriundos de famílias com uma situação economicamente estável e a difícil tarefa de encontrar soluções tecnológicas para aqueles alunos que já sobreviviam apenas com o que a escola lhes oferecia e que naquele momento não poderiam de forma alguma ficar impossibilitados de se ligar virtualmente à sua sala de aula e ao seu professor. Infelizmente, neste campo sensível, surgiram algumas falhas no sistema de apoio social que quebraram o bom trabalho de ligação entre escola-aluno que vinha a ser realizado desde o início do ano letivo com estes alunos que se encontram numa posição mais frágil.
A partir daqui todos os dias fazia uma ligação à distância com os meus alunos. Sorrisos tristes e distantes que chocavam contra mim de frente através de um ecrã de computador. Impossível disfarçar a ausência da presença humana do professor junto daquelas crianças. A ausência do cheiro inconfundível de uma sala de aula que qualquer professor reconhece.
Na verdade, através das minhas aulas síncronas, eu conseguia explicar aos meus alunos a razão pela qual o D. João I decidiu mandar construir o Mosteiro da Batalha depois da histórica vitória na Batalha de Aljubarrota. Matemática, português e ciências e todas as áreas de aprendizagem que o currículo de 1.º ciclo alberga revelaram-se relativamente fáceis de encontrar o melhor veículo para entrar dentro da casa dos meus alunos.
Mas então onde residiu o principal problema?
Se olharmos para a definição de escola, no seu sentido figurado, o dicionário da Porto Editora diz-nos que é um «conjunto de experiências que contribuem para o amadurecimento da personalidade e/ou que desenvolvem os conhecimentos práticos de determinado indivíduo». Uma definição demasiado redutora se analisarmos a verdadeira dimensão do que é a escola na sua interação global com o indivíduo que a frequenta.
Esta ausência física dos atores principais no maior palco educacional que o mundo conheceu até aos dias de hoje revelou-se terrivelmente prejudicial para o crescimento social e humano dos nossos alunos.
A escola, o local onde todos aprendem e se encontram, se conhecem, se abraçam e se beijam, foi proibida de receber fisicamente e também mentalmente os seus alunos de sempre. Um momento marcante e extremamente negativo na vida de todos aqueles que frequentavam a escola diariamente.
Se lermos com atenção o artigo 26º da Carta da Declaração dos Direitos Humanos «a educação deve visar à plena expansão da personalidade humana e ao reforço dos direitos do homem e das liberdades fundamentais e deve favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais ou religiosos, bem como o desenvolvimento das atividades das Nações Unidas para a manutenção da paz.»
Permitam-me ser mais audaz. Sem a escola, e a presença nela dos seus alunos e dos seus professores, o mundo poderá ficar comprometido na sua plena liberdade e paz entre os povos.
Nunca esqueçamos este período de ausência da Escola em toda a comunidade mundial e por isso este é provavelmente o momento ideal para lhe atribuirmos o verdadeiro valor e colocar a escola no topo das prioridades das agendas políticas dos nossos governantes. Só assim poderemos ter um mundo mais justo e mais igualitário para todos.
Se voltarmos à Teoria Ecológica do Desenvolvimento, é fácil compreendermos que estes meses longe da Escola na sua verdadeira essência terão sempre um impacto negativo no crescimento saudável e humano das nossas crianças e jovens.
Façamos por isso um grande viva à escola e à presença da comunidade escolar no seu espaço físico para que cidadania e a promoção da liberdade e do respeito por cada um nunca sejam colocados em causa.