Parece-me discutível considerar que os poetas são necessariamente os melhores intérpretes das suas intenções e dos seus livros, sem, por outro lado, concluir que aquilo que dizem e fazem, também fora da sua obra, seja necessariamente negligenciável. Mas isso não é exclusivo dos poetas: por hipótese canalizadores ou engenheiros podem nem sempre ser eficazes a explicar aquilo que fazem. A particularidade decisiva de alguém que escreve poemas reside então, não em ter ou lidar com emoções, motivos e interesses que quem não escreve poemas não tem, mas na circunstância de estar mais habituado a reflectir sobre emoções, motivos e interesses.
As entrevistas concedidas por Alexandre O’Neill reunidas em “Diz-lhe que estás ocupado” (O’Neill 2021) costumam assumir a cadência de uma troca informal de ideias, de conversas que não tomam as proporções de um manifesto. Há, porém, uma excepção: a noção de poesia aí defendida. O meu objectivo será comentar essa noção, que vejo como questionável já que esconde um lado doutrinário duvidoso.
Na entrevista intitulada «Conversando com Alexandre O’Neill», à pergunta «Por que é poeta?», O’Neill responde «Por tendência própria e por educação. Desde cedo que leio bons poetas» (p. 23). Encontramos nessa resposta o enunciar de um princípio de ordem prática que marcará o livro: O’Neill está empenhado em atenuar abordagens críticas que encarem a poesia e os poetas como especiais ao ponto de extravasarem um lado empírico forte ou, se quisermos, especiais por criarem algo epistemologicamente longínquo das outras pessoas. Assim sendo, «tendência própria e educação», juntamente com «ler bons poetas», são observações que acentuam, se quisermos, um lado intuitivo ou próximo ao reclamarem que certos comportamentos são relevantes quando se escreve poesia. A visão de acordo com a qual um poeta não é fruto de uma escolha providencial é reforçada quando se declara a centralidade de «disciplina e lucidez» (p. 24), e nessa medida O’Neill esvazia um lado demasiado misterioso, porque potencialmente inacessível, que possamos associar a poemas.
Em «O público volta as costas à poesia quando as coisas começam a complicar-se» explicita-se a qualificação de poesia em causa. Importa a O’Neill «até o poema estar objecto» (p. 27), sendo que o que presidiu à escrita corresponde a uma manifestação exígua de «inspiração»:
Na inspiração guedelha-ao-vento e soltura não acredito (...). A disposição irresistível para escrever, o rumor anterior ao ritmo, podem chamar-se momentos de inspiração, mas só a atenção contínua ao rumor (...) leva pouco a pouco ao ritmo e do ritmo ao verso. (p. 30)
As reservas colocadas a atributos insondáveis são indiciadoras do argumento de que um poeta não segue nem proclamações nem dimensões criativas puramente abstractas.
Nestas entrevistas a noção de poeta depende da noção de poesia. O’Neill começa por declarar que «as palavras são de tal modo mundos e materiais [que] o meu ideal era morrer rodeado de dicionários» (p. 79). Trata-se de uma primeira alusão à importância de algo como as propriedades dos poemas, mecanismos que determinam o que podemos fazer-lhe. É daí que partem os elogios ao «concretismo» (p. 80) e a sugestão de que «o prosaico não elimina o poético» (p. 130), que por sua vez levam O’Neill a reclamar para si «uma tendência realista» (ibid.). É também nesse sentido que se compreende a afirmação «escrever bem é escrever de tal forma que o que fica escrito se torna independente da biografia do autor» (p. 98).
Se prestarmos atenção às formulações acabadas de referir, pode entender-se que está a ser subscrita uma definição de poema enquanto artefacto linguístico. Nesta concepção, no fundo um poema existe enquanto poema, fruto de características intrínsecas perenes o suficiente para não dependerem da dimensão institucional de qualquer leitura. Tudo indica que a autonomia de um poema, por exemplo em relação à biografia do autor, se deve aqui à ideia de que consiste num objecto autotélico. A menção ao dicionário enfatiza a condição autotélica em causa, uma vez que promove uma espécie de tipificação interpretativa: um índice de significados dá-nos os recursos descritivos suficientes para compreendermos poemas.
A definição de poesia em questão significa em larga medida uma reacção «ao público». O’Neill entende que «o público tem péssimos hábitos, pede muito à poesia — riso, lágrimas, contracções intestinais e bonitos da imaginação» e assim a poesia seria «embalo, anedota ou achado» (p. 29). Ou seja, a contrario sensu, podemos dizer que para O’Neill a poesia não é uma distracção ou uma fuga existencial. Ora, a relação de O’Neill com «o público» revela-se ambivalente. O poema-objecto colide com muitas das expectativas de quem o lê. «Escreve-se e publica-se para se ser lido, mas não para se ser inevitavelmente aceite e adoptado» (ibid.), ou seja, a posição de O’Neill não equivale a um desapreço irrestrito pelo «público», se bem que apresente um lado correctivo considerável. Trata-se da seguinte tensão crucial: «a poesia vive da contradição que há entre a ânsia de comunicar e a impossibilidade de o poder fazer» (p. 134). Dito de outro modo, O’Neill hesita entre uma vontade de «comunicar» e uma vontade de controlar aquilo que é dito, se bem que essa hesitação conduza à vitória da segunda, e então O’Neill quer escrever de modo a impedir interpretações que considera exageradas porque desvirtuadoras do conceito de poema pretendido, a saber, o poema como objecto autónomo. Para O’Neill, na relação entre indivíduo e público é o primeiro a definir essa relação. Vejam-se mais casos de entrevistas que revelam prudência face a uma entidade vista como vaga e perniciosa: «Mas isso de antecipar comportamentos colectivos... Penso que não» (p. 51); ou «A descoberta da poesia é sempre uma coisa extremamente solitária» (p. 131). Estas alegações visam erodir um desígnio moralizador genérico atribuível à poesia.
Com efeito, a noção de poesia acolhida radica no instinto de preservação que O’Neill demonstra pela sua obra. Em «O surrealismo está gloriosamente empalhado», de 1982, o autor declara: «deixei de ser o tema da minha própria poesia». Numa entrevista dada o ano seguinte, acrescenta-se que «o amor está completamente ausente da minha poesia. Se esteve presente, foi há muitos anos e de uma maneira muito adolescente» (ibid.). Insistindo no tom de desaprovação, O’Neill afirma ainda que «os [meus] poemas iniciais acho-os sujamente quotidianos, demasiado comprometidos com uma poesia que não é autobiográfica mas finge sê-lo» (p. 161). Em causa está uma mudança de pontos de vistas, em concreto a desvalorização de algo que havia sido feito e na qual já não nos revemos por completo, mas que de resto não é exclusivo dos poetas: os gostos ou as motivações de qualquer pessoa são susceptíveis de mudar ao longo do tempo. Essa circunstância é, sim, passível de estar vinculada a uma alteração de interesses válida, comum e muitas vezes fruto do acaso. No caso de O’Neill, a auto-crítica radica fortemente na obediência à sua noção de poesia. Dir-se-ia que as admoestações feitas a si próprio — àquilo que escrevera até dado momento — são exigência do tal realismo, ou seja, consequência das condições necessárias de depuração da ideia de poesia em questão, as quais se foram tornando mais preponderantes.
Em O’Neill, o poema enquanto ferramenta daquela vontade difusa de comunicação serve para dar conta «dos ridículos sociais» ou «para registar o que é fugaz. Para deter as coisas. Para registar certos factos» (p. 36). Esta versão de poesia delimitada por uma escala que numa primeira leitura parece circunscrita corresponde, reforce-se, à maneira de O’Neill proteger o que escreve. Se o público exibe frequentemente a tendência para capturar o que lê, O’Neill interpõe-lhe poemas cujo propósito é impedir isso mesmo, ou seja, prevenir leituras desautorizadas: o que um poema diz está lá e para o sabermos precisamos de lhe descobrir o sentido. Precisamos sobretudo de prestar atenção ao poema, de o decifrar. Os poemas, para O’Neill, são por isso tudo menos inefáveis.
Evitar olhar, e O’Neill tem razão nesse aspecto, para a poesia como evasão auto-indulgente, não significa, no entanto, escudarmo-nos forçosamente numa noção substancial de poesia. O’Neill acerta então mais no diagnóstico do que na resposta. De facto, muitas vezes, «o público pede muito à poesia»: nenhum poema salva seja quem for e, por maioria de razão, não salva a humanidade. Considerar que poemas mudam pessoas é um excesso de linguagem pouco esclarecedor. Segundo O’Neill, um poema, esse objecto coeso, evita que os leitores se apropriem dele como bem quiserem. Reacções subjectivas como «riso» e «lágrimas» são consideradas deslocadas, demasiado previsíveis ou confessionais numa acepção censurável do termo. A dimensão de «mundo» dos poemas, essa feição prosaica que «está longe de eliminar o poético» — na verdade, neste caso o poético depende disso — colide com a grandiloquência de respostas que desvirtuam um poema ao subjugarem a sua condição material.[1]
O problema é que a maneira de O’Neill contrariar certos modos de interpretação implica uma definição de poesia que sob a capa de uma ideia familiar e prática de poema — o poema concreto e realista daqueles «ridículos sociais» — esconde uma outra forma de grandiloquência, mais melíflua porque disfarçada de boas intenções. Em rigor, de acordo com O’Neill os poemas dão-nos indicações metodológicas, i.e., um poema diz-nos exactamente como o devemos ler. O meu ponto é que não se afigura consistente criticar algumas opiniões sobre poesia, e.g., opiniões que exageram nas vantagens de ler poemas, se com isso partirmos do pressuposto de que os poemas têm um lado normativo. Nestas entrevistas, O’Neill apresenta o seguinte arquétipo: a coesão interna de um poema sobrepõe-se às emoções, motivos e interesses em jogo quando descrevemos poemas. Dito de outro modo, O’Neill recorre a princípios gerais para dar conta da sua noção de poesia.
Reafirme-se, contudo, que das reservas que levanto à concepção de poesia que O’Neill adopta não decorre que aquilo que acontece quando lemos poemas seja revolucionário o suficiente para prescindirmos de pensar numa relação entre um poema e uma descrição. O ponto é que o que mais se aproxima de um momento decisivo definidor dessa relação, a saber, as referidas emoções, motivos e interesses, prejudica a mais-valia de uma teoria especial sobre poesia, por mais prática e intuitiva que se considere. À sua maneira, O’Neill não deixa por isso também de exigir demasiado à poesia, nomeadamente que esta nos prescreva o que lhe devemos fazer.
Em «The difference between an author’s writings and his conversation», Samuel Johnson entende que um escritor fica frequentemente a perder se compararmos os seus livros com aquilo que ele diz ou faz noutras ocasiões, uma vez que o segundo caso costuma equivaler a uma sombra da qualidade criativa atingida na sua obra. Para Johnson, esse contraste deve-se à capacidade de certas coisas não se deixarem reduzir a uma dimensão elementar e imediata: por exemplo, um poema não é exactamente um decalque fiel e exaustivo da experiência de quem o escreveu. Uma declinação possível da posição de Johnson é que os poemas são susceptíveis de contrariar as opiniões sobre poesia de quem os escreveu, sem estar com isso a confundir biografia com intenções ou convicções — não reduzo as últimas à primeira, nem O’Neill o faz. O meu ponto é que da análise à concepção de poesia defendida por O’Neill à luz da perspectiva de Johnson, a melhor poesia do primeiro é aquela curiosamente reputada de «muito adolescente» e então vista pelo próprio como inferior, ou seja, a poesia escrita antes de 1982. É em «Em pleno azul», «Se...», «O tempo sujo», «A meu favor», «Um adeus português», «A pluma caprichosa», «Portugal», «A história da moral» e «Rua do Ouro», poemas pouco preocupados em dizer o que um poema deve ser, que a qualidade de Alexandre O’Neill se dá a conhecer.
Desta forma, o melhor O’Neill põe em causa o O’Neill empenhado em decretar o que um poema é. Até por isso “Diz-lhe que estás ocupado” merece ser lido: o mérito do livro passa por assistirmos a uma tensão interessante entre a poesia de um autor e aquilo que ele diz sobre isso. Se se quiser, há poemas de O’Neill que desautorizam o O’Neill destes textos. O espanto que sentirá quem compare a poesia do autor com estas entrevistas não tem, porém, de traduzir uma dissociação interior profunda em Alexandre O’Neill, ficando a dever-se porventura à circunstância de ele ter escrito poemas que nem sempre cabem na definição explícita de poesia a que foi aludindo noutros registos. Assim, estamos sobretudo perante uma divergência particular que para algumas pessoas pode valer a pena ser comentada. Isso porque a alternativa à ideia de poesia de O’Neill não consiste em pedir muito à poesia, mas precisamente em não esperar muito de poemas e de poetas.
[1] Nos estudos literários, uma desconfiança semelhante à de O’Neill relativamente a interpretações expressivas, ou vistas como puramente especulativas, de literatura deu pelo nome, cunhado por William Wimsatt e Monroe Beardsley, de «falácia afectiva».
Bibliografia
O’Neill, Alexandre, “Diz-lhe que estás ocupado”: conversas com Alexandre O’Neill., ed., org. e intr. Joana Meirim, Lisboa: Tinta-da-China, 2021.