A teoria mais vulgar acerca de ensino e aprendizagem, aquela que vigora ainda hoje na maioria das cabecinhas dos que frequentam aulas e, sobretudo, dos que ali os deixam de manhã para as frequentar, pressupõe uma assimetria fundamental entre o doutor que fala e a pequenada que diante dele com atenção o escuta. Como o primeiro sabe muito acerca do assunto que se propõe a ensinar, acredita-se que a actividade de escutá-lo em silêncio permite a quem o escuta aprender aquilo que sabe. De acordo com esta teoria da educação, os professores são no fundo baldes de conhecimento onde os alunos mergulham a esponja da curiosidade para absorver aquilo que os primeiros conhecem e que presumem que lhes possa vir a ser útil no futuro. À teoria tradicional da esponja absorvente opõe-se uma outra, menos vulgar, talvez, mas igualmente assimétrica, à luz da qual cada aluno é um pequeno principezinho caprichoso a quem os professores, meros lacaios das suas vontades incontidas, prestam o serviço de aturá-los. Neste segundo modelo de educação, pouco interessa aquilo que o professor sabe ou se propõe a ensinar e pouco interessa que o aluno demonstre ter ficado a saber aquilo que supostamente havia para ser ensinado. A inteligência individual, de que todos na verdade têm o seu quinhão, é como o florir primaveril de uma ervinha delicada; em todos reside em botão, em todos com o tempo viceja e em todos há-de vir a desabrochar. Perante este fenómeno adiado, cumpre ao professor acima de tudo assegurar que essa inteligência por vir não seca nem estiola. Não deve por isso apressar-lhe a chegada ou impacientar-se com a demora.

O problema destas duas teorias reside em larga medida naquilo que se imagina ser a inteligência. Para os adeptos da primeira, é a qualidade que sobressai dos que fazem bom uso da memória, e comprova-se quando aquele em quem ela é testada, depois de muitos anos de ginástica mental, puxa da cabeça e de lá extrai muitos saberes distintos. De acordo com esta definição, o inteligente é o erudito; conhece a segunda lei da termodinâmica, aprendeu a tocar oboé e a falar francês, sabe dizer para que servia a rocha Tarpeia. Os educadores de segundo tipo, por sua vez, estão convencidos de que a inteligência é uma espécie de barba: surge quando tiver de surgir, quando a maturidade lhe reclamar a presença no queixo, e tentar antecipar-lhe o surgimento apenas fará com que não surja toda por igual, que se mostre forte aqui mas fraca ali. À luz desta hipótese, todos somos inteligentes de nascença. Talvez uns precisem de mais tempo do que outros para perceber quais os solos mais apropriados ao cultivo da sua inteligência, a que climas deve sujeitá-la, quantas vezes por dia é preciso regá-la, mas em todos, mais tarde ou mais cedo, dependendo dos percalços, ela acaba necessariamente por eclodir.

Diferentes noções de inteligência implicam, pois, diferentes teorias da educação. Não obstante, há uma coisa que parece unir estas duas filosofias antagónicas: ambas parecem pressupor a boa vontade do educando para descobrir, no outro que lha pode transmitir ou dentro de si mesmo, a inteligência que venha a ter por sua. Quer de um lado, quer do outro, não parece considerar-se a possibilidade de haver quem se contente em saber pouco ou quem se recreie a vida toda na indolência. Tanto aqueles que acham que a inteligência é o resultado de um esforço intenso de memorização como aqueles para quem ela decorre naturalmente do amadurecimento do indivíduo acreditam que nascemos predispostos a aprender, que todos somos curiosos incorrigíveis, que as ferramentas intelectuais à nossa disposição implicam um impulso inato para as usarmos. Apesar de tão diferentes, os promotores de cada uma destas duas teorias partilham portanto o mesmo optimismo antropológico.

Ora, tal optimismo radica num erro. É possível que o sucesso da espécie seja indissociável do exercício continuado da curiosidade, que o salto evolutivo decisivo que nos alçou ao lugar de destaque que hoje ocupamos esteja de algum modo relacionado com um determinado empenho em conhecer mais, fazer melhor, sonhar mais alto. Mas a tal empenho não subjaz necessariamente um atributo especial qualquer que predispusesse ancestralmente cada um de nós a explorar os seus limites. A desenvoltura intelectual que hoje nos distingue, e qualquer uso que lhe possamos hodiernamente dar, é tão-somente uma consequência do estilo de vida a que os nossos antepassados estiveram sujeitos: foi a luta pela sobrevivência que os conduziu ao bipedismo e foi essa circunstância que, libertando-lhes as mãos para fins que não os de locomoção, lhes conferiu a vantagem de poderem desossar carcaças e transportar a carne para outros lugares, onde pudesse ser consumida não apenas por aqueles que participavam na caçada; foi essa mesma luta pela sobrevivência que os forçou a inventar meios de comunicação cada vez mais eficazes e métodos de consumo energético e nutrição cada vez mais eficientes; e foi ainda a luta pela sobrevivência que, obrigando-os a formas cada vez mais sofisticadas de cooperação, acabou por tornar possível a existência de comunidades cada vez mais autossuficientes, onde fosse possível às crianças usufruir de uma infância cada vez mais longa e de uma alimentação cada vez mais calórica, no fundo as duas condições sine qua non para o aumento progressivo da capacidade encefálica. A curiosidade, ou o que quer que seja que achemos que nos leva a desenvolver a inteligência, não existe a priori, embutida algures no nosso código genético. Ainda que os nossos antepassados tenham feito uso dela, não o teriam feito se não tivesse havido necessidade de fazê-lo. Darwin é muito claro a esse respeito: sem uma determinada pressão selectiva que favoreça um certo conjunto de características, não há evolução. A curiosidade talvez seja o estímulo fundamental ao desenvolvimento do intelecto, mas não se constitui naturalmente como estímulo a menos que haja o que por sua vez a estimule. Ninguém nasce curioso.

Ao contrário do pressuposto pelas duas noções de professor atrás caricaturadas (a do mero balde de conhecimento à disposição dos futuros inteligentes e a do pacato jardineiro diante do qual as inteligências por si mesmas medram), creio por isso que aquilo que verdadeiramente compete a um professor é a educação da curiosidade. Assim creio não só porque não possuo o optimismo de acreditar que o ser humano seja por definição um bicho curioso, como acabo de sugerir, como também porque não acredito na tutoria da inteligência. Como sugerido atrás, a diferentes teorias da educação subjazem diferentes noções de inteligência. E é esse o problema: não me parece que a inteligência coincida nem com um elevado grau de erudição nem com um elevado grau de originalidade. Há gente erudita que não é particularmente inteligente e todos conhecemos um ou outro chanfrado muitíssimo original. Chamo inteligência, na verdade, a um conjunto vasto de capacidades, entre as quais colocaria, por exemplo, a de pensar pela própria cabeça, não tomando por suas as ideias dos outros e resistindo aos dogmas, preconceitos e persuasões alheias, a de compreender e formular raciocínios complexos, a de emitir juízos críticos, a de aplicar conhecimentos pré-adquiridos a novas tarefas ou a circunstâncias inesperadas, para as quais não se está treinado, a de estabelecer analogias pouco evidentes ou capturar distinções subtis entre dois ou mais objectos, a de colocar hipóteses contraintuitivas e a de testá-las e justificá-las, a de interpretar acções ou acontecimentos cuja interpretação não seja óbvia, etc. Nada disto parece fácil de obter, e é aliás duvidoso que seja passível de ser ensinado.

Claro que há fases no desenvolvimento do intelecto em que a memorização pura e dura, tutelada por terceiros, é útil, e claro que há certos tipos de aprendizagens (aprender a desenhar, a tocar um instrumento ou a falar uma língua estrangeira) em que a imitação de um modelo é decisiva. De igual modo, é natural que haja períodos nesse desenvolvimento em que a libertação dos deveres e o ócio sejam produtivos, ou que certas aptidões se trabalhem melhor no exercício da procrastinação ou no abandono das distracções. Mas é essa a função de um professor? É esse desenvolvimento, e a gestão das suas diferentes etapas, que verdadeiramente lhe compete? Será educar equivalente a preparar aquele que é educado, impondo um caminho ou deixando que esse caminho se imponha por si mesmo, para um determinado grau de inteligência? Cada vez mais me parece inútil tudo ou quase tudo aquilo que aprendemos na escola e cada vez mais me parece evidente que não há qualquer relação entre a inteligência de uma pessoa e o grau de escolaridade dela. Quer a atulhemos de informação, quer deixemos que ela escolha com que se atulhar, não lhe proporcionamos nada de que se possa valer para continuar esse desenvolvimento depois por si própria.

A inteligência, ou pelo menos o conjunto de competências aqui invocadas para defini-la, depende em larga medida da relação que o indivíduo no qual ela inere vai estabelecendo ao longo da vida com o próprio grau de inteligência, ou com o grau de aperfeiçoamento de cada uma destas competências, que a cada momento possui. Não se pode esperar, por exemplo, que um historiador de arte, só por conhecer a História da Arte como a palma da mão, seja imediatamente capaz de intuir relações pouco óbvias entre dois pintores e de identificar na obra de cada um deles características pictóricas que nunca antes tivessem sido identificadas, ou que seja aliás capaz de argumentar a esse respeito. De igual modo, não basta a alguém escapar a esse tipo de formação mais clássica para desenvolver naturalmente tais capacidades. Como diz o provérbio, o saber não ocupa lugar. Possuir um saber de tipo enciclopédico não impede ninguém de desenvolver outro tipo de capacidades, pelo que rejeitá-lo como força opressora da verdadeira inteligência também não é um método particularmente eficaz. A inteligência, tal como a entendo, não decorre nem do treino da erudição, nem naturalmente da mera desopressão dele; procede da exercitação reiterada da própria inteligência, da exploração incessante de cada uma daquelas competências acima aludidas, de manobras de natureza abstracta, como a analogia e a distinção ou a percepção de causas e efeitos, que incidam sobre os mais variados objectos, etc.

Se o desenvolvimento intelectual da pessoa depende muito mais da própria inteligência que vai sendo desenvolvida do que daquilo que quer que exteriormente lhe seja facultado, o objecto da acção de educar alguém não pode ser a futura inteligência que se espera que essa pessoa venha a adquirir. O trabalho do professor não consiste em estimular a inteligência, seja qual for o método escolhido para o efeito, porque ela não é susceptível senão de autoestimulação. Aquilo que pode fazer, isso sim, é estimular a curiosidade do aluno. E, com isso, ajudar a formar o temperamento que conduza à descoberta da inteligência. Não é uma actividade que garanta resultados, mas é o melhor a que pode aspirar. Aquilo que acima de tudo lhe compete, portanto, é dar-lhe a provar aqueles sabores exóticos, as tonalidades menos conhecidas, os perfumes mais delicados, tudo aquilo que, no fundo, melhor sirva para lhe excitar a curiosidade. Cabe-lhe providenciar experiências que alarguem os horizontes ao aluno, desafios que o surpreendam e lhe sobressaltem o espírito, libertando-o para a descoberta dos seus próprios interesses; habituá-lo à observação constante e ávida, forçando-o a reparar a sério nas coisas e a ver nelas tudo o que há para ser visto, a seleccionar aquelas que mais o comovem e a comprazer-se naquilo que têm para oferecer; impressioná-lo sempre, mostrando-lhe cada vez mais coisas, de todos os ângulos possíveis e mais alguns; encorajá-lo a ver e a tocar em tudo, a testar e a contrapor novas hipóteses a toda a hora, nunca se conformando com os resultados obtidos; incutir-lhe a autocrítica e a dúvida sistemática, a necessidade de justificação permanente e a observância do bom senso; rebater-lhe as certezas e exercitá-lo na prática argumentativa; etc. Nada disto é tão simples quanto abrir um livro e ler o que lá se encontra, escrever no quadro e mandar copiar a lição, desatar nós e pedir que os desatem da mesma forma. E também não é tão simples quanto ficar à espera que as leituras, as lições e os nós se encontrem, copiem e desatem sozinhos. Mas também ninguém disse que era simples.

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