I - Ser Português

O digníssimo fenómeno da ornamentação dos espaços urbanos com a bandeira verde-rubra da República Portuguesa teve início em 2004, por ocasião do campeonato europeu de futebol organizado no nosso país. Luiz Filipe Scolari (também carinhosamente conhecido por Felipão) convenceu os portugueses de que, depois das boas mercês de Nossa Senhora de Caravaggio, nada contribuiria mais para o sucesso da selecção nacional do que forrar as janelas dos nossos apartamentos com bandeiras portuguesas. O povo luso, conhecido pelo bom gosto, achou a ideia bonita. E tão bonita a achou que logo lhe ampliou o âmbito. Dos vidros passou às varandas, das varandas aos telhados, dos telhados aos beirais e algerozes, e por aí fora. Aqueles a quem o sentimento pátrio mais apertava o coração acharam ainda que, além da paisagem urbana, era importante colorir com essas duas cores tão unicamente nossas os veículos em que se deslocavam. E ei-las nos assentos das motoretas, nas antenas dos carros, nos encostos de cabeça do assento do condutor de um táxi, onde aliás, em muitos casos, já ruças, ainda resistem. Durante aquele verão, Portugal teve apenas duas cores. O esforço decorativo em que colectivamente nos empenhámos valeu, como se sabe, um apuramento inédito para a final do certame. Não foi suficiente, contudo, para ganhar a prova. Era com certeza preciso empreender esforços maiores.

Estava assim criado um costume muito particular, que só não se repetiria se os portugueses não quisessem. Ao contrário do fenómeno das vuvuzelas, que se originou no início do campeonato do mundo da África do Sul em 2010 e praticamente se extinguiu no final desse torneio, a prática de enfeitar o betão armado das cidades lusitanas com bandeiras nacionais regressa de dois em dois anos, sempre que a selecção de futebol participa num europeu ou num mundial. Antes de 2004, essa prática não existia, ou era apenas residual. Foi experimentada nesse ano, fruto do incentivo de um seleccionador originário de um país onde de facto o costume já existia. Como, nesse ano, quase ganhámos o que havia para ganhar, e como quase o ganhámos, até prova em contrário, por obra e graça dessas duas cores espalhadas um pouco por todo o lado, foi pintando de vermelho e verde as nossas cidades que, a partir de então, passámos a acompanhar os campeonatos de futebol que a nossa selecção ia disputando. O ritual tem, portanto, a força de um talismã. Num povo aliás habituado a resolver os seus problemas ajoelhando-se diante do santo milagreiro que os resolva e indo depois em peregrinação a um santuário agradecer o milagre, a relação entre o quase sucesso desportivo da selecção em 2004 e o ritual das bandeirinhas hasteadas em marquises que o acompanhou ao longo dessa campanha formidável era tão natural quanto inquestionável. Estava assim criado, como disse, um costume muito particular. E ai de nós que, nos campeonatos seguintes, não o cumpríssemos!

Não é o ritual em si, na verdade, que me incomoda. As frases que se seguem são menos sobre a estética dos nossos hábitos colectivos do que sobre a força com que eles se nos impõem. Não tenho grande coisa a dizer sobre a maior ou menor parolice dos gostos alheios, mas tenho algumas ideias acerca da necessidade de aplicarmos às paredes exteriores das nossas casas a mesma estética dos moradores de um prédio de nove andares na Rinchoa.

O que temos em comum com o vizinho do terceiro esquerdo – dirão muito depressa alguns – é sermos todos portugueses. É natural que, por partilharmos a nacionalidade, tenhamos hábitos parecidos e que, por isso, as inclinações de uns contagiem os outros, que então se apropriam delas. É verdade. Mas também é verdade que há portugueses que não tomam banho, portugueses que cospem para o chão e portugueses que batem nas mulheres. Nem todos os hábitos dos portugueses nos parecem igualmente atractivos, e há inclinações, aliás bem portuguesas, a que recusamos aderir. Dirão os mesmos apressados que, evidentemente, há bons hábitos e maus hábitos, e que é natural que acolhamos como nossos os bons hábitos, ou pelos menos os hábitos mais inócuos, dos nossos vizinhos. Pode ser. Mas o que é que distingue um bom hábito de um mau hábito? Basta ver um jogo de futebol para saber que uma quantidade significativa de praticantes da modalidade não evita o mau hábito de cuspir para o chão.

A fronteira entre bons e maus hábitos não é determinada por decreto nem consabida de antemão. E a boa ou má índole dos hábitos, em abstracto, nunca determinou o comportamento das pessoas em sociedade. Pouquíssima gente se dá ao trabalho de avaliar os seus hábitos. Se à nossa volta as pessoas se comportam de uma determinada maneira, é assumido que é dessa maneira que é suposto comportarmo-nos. A ideia dos maus-tratos animais, por exemplo, é recentíssima. Não é preciso recuar talvez mais do que um par de décadas para nos encontrarmos perante uma maioria da população que considerava normal e aceitável tratar um cão ao pontapé. O que é que mudou, entretanto? Será que, com o virar do milénio, cada um de nós, individualmente, colocou a mão na consciência e se tornou uma pessoa melhor? É óbvio que não. A mudança não foi individual; foi social. O que mudou foi o ambiente à nossa volta. Com o aumento do número de pessoas que recusam esses maus-tratos, aumentou também a pressão sobre os restantes. Se, hoje em dia, a maioria de nós o evita é porque, aos poucos, se foi tornando socialmente inaceitável. É assim que funcionamos, quer o assunto seja do foro moral, quer não. A bombazine saiu de moda pelas mesmas razões. Vestimo-nos de acordo com um padrão de gosto que se vai alterando e que, por vezes, condena ao fundo do armário aquilo que outrora era vestido por toda a gente. À semelhança dos códigos de vestuário, o código de conduta em sociedade pelo qual nos regemos é, muito frequentemente, determinado pela vizinhança mais próxima. São os outros, em regra, que nos definem os comportamentos sociais. Quantas mais pessoas partilharem o mesmo hábito, maior é a tendência para que o acolhamos como nosso. E será possível, ou até desejável, fugir a essa pressão social? Depende. Quanto mais inaceitável for um determinado hábito, mais difícil será fugir a ele. As pessoas podem continuar a usar as velhas calças de bombazine que usavam nos anos 70 e 80 do século passado, assim como podem continuar a tratar os animais como era aceitável tratá-los nessa época, mas sofrerão decerto consequências diferentes, e porventura menos desejáveis, das que sofreriam na altura. Na maior parte dos casos, os nossos hábitos sociais alteram-se não por iniciativa própria, mas em função das alterações no ambiente que nos rodeia. É claro que podemos resistir a essas alterações, da mesma maneira que podemos definir um hábito antes de os outros o definirem por nós. Mas o mais comum é que esses hábitos se definam à nossa revelia, muitas vezes sem que nos apercebamos, sequer. Uma pessoa, ao entrar numa biblioteca, não precisa de perceber como é que as outras pessoas ali se comportam para intuir qual o comportamento mais adequado àquele lugar. Basta que use as faculdades que tem ao seu dispor para avaliar a função e a finalidade de uma biblioteca, bem como o tipo de condições que as pessoas que frequentam bibliotecas esperam encontrar em lugares como aquele, para concluir que ali é recomendável permanecer em silêncio. Não é assim, contudo, que a maioria das pessoas que entra pela primeira vez numa biblioteca se comporta. Até identificar o padrão de comportamento adequado ao lugar, o que por vezes pode demorar, age inconvenientemente como se estivesse noutro lugar público qualquer. O hábito de permanecer em silêncio numa biblioteca, que eventualmente acaba por adquirir, não se forma por intuição, mas por imitação. Assim é com praticamente todos os hábitos sociais.

O que vai dito acima é válido para qualquer sociedade, podendo, no entanto, verificar-se em graus diferentes em sociedades diferentes. E talvez haja uma relação entre esse grau e o índice de desenvolvimento da sociedade em que se verifica. Era assim que pensava John Stuart Mill, quando em meados do século XIX olhava com alguma apreensão para o modo como a sociedade inglesa parecia estar a sacrificar a liberdade individual, e a diversidade de carácter e cultura que essa liberdade naturalmente origina, e que em seu entender fora essencial ao desenvolvimento da Europa. Do outro lado do espectro, servindo de exemplo a evitar, Mill colocava a China, em cuja sociedade observava “um povo todo igual, em que todas as pessoas regem os seus pensamentos e conduta pelas mesmas máximas e regras”[1]. Para Mill, o despotismo dos costumes a que a sociedade inglesa lhe parecia então estar a ceder conduziria fatalmente a uma sociedade desprovida de individualidades dignas de nota, como a sociedade chinesa. A consequência previsível, como na China, seria a estagnação do progresso e do desenvolvimento. A tese de Mill parece poder resumir-se do seguinte modo: quanto mais homogéneo um povo for, quanto mais os indivíduos de que esse povo se compõe definirem os seus comportamentos em função uns dos outros e tiverem como desejável apenas o que a sociedade em redor deles validar como desejável, mais a vitalidade desse povo atrofiará. A velha máxima de que um grupo tem mais hipóteses de sucesso se todos os elementos do grupo remarem para o mesmo lado é verdadeira apenas em cenários de circunstâncias invariáveis. Um barco a remos que não precise de definir uma rota chegará tão depressa ao seu destino quanto melhores forem os remadores. Mas, a um barco a remos que, depois de uma borrasca, se perca em alto-mar, não fará falta quem se saiba guiar pelas estrelas? O sucesso de um grupo, como aliás Darwin mostrou, depende essencialmente do quão apto o grupo estiver às circunstâncias que enfrenta. Se as virtudes e os defeitos daqueles que compõem esse grupo forem idênticas, o grupo estará próximo do sucesso se, e só se, as circunstâncias definirem como úteis as virtudes que partilham, e ficará longe dele em caso contrário. Sendo as circunstâncias passíveis de afectar um povo potencialmente infinitas e impossíveis de antever, as probabilidades de êxito de qualquer povo são, portanto, maiores quanto maior for a diversidade dele. É por isso que a liberdade individual defendida por Mill é a melhor garantia possível de qualquer sociedade. Onde quer que ela seja mais apreciada e protegida, e onde portanto o despotismo dos costumes em menor grau se verifique, eis a sociedade mais bem preparada para aquilo que o futuro desconhecido lhe vier desconhecidamente a exigir.

Voltemos às bandeiras nacionais. O que me parece despropositado, no hábito de pendurar bandeiras um pouco por todo o lado, não é propriamente o pendurá-las mas a necessidade que sentimos de o fazer enquanto portugueses, o facto de se nos impor, com a força de uma lei moral, a exibição orgulhosa da nacionalidade com que por acidente nascemos. Penduramos bandeiras nacionais porque outros portugueses por essa altura também as penduram e porque é isso que se espera de um português por essa altura. Essa pulsão para o patriotismo, que tomamos por exibição de virtude, é o melhor testemunho da pouca importância que damos à nossa individualidade. Sempre que a selecção nacional entra em campo, deixamos de ser quem somos para passarmos fervorosamente a ser os portugueses que não podemos deixar de ser, esvaziamos o indivíduo que afinal não éramos, constituído por valores que afinal nos não definem, para nos unirmos em espírito a todos os outros portugueses que há e, todos juntos, celebrarmos essa bela pátria que é só nossa e de mais ninguém, cantando em uníssono, como se a nossa vida disso dependesse, esse hino nacional que a todos nos representa e engrandece.

É verdade que esse fervor não dura para sempre, que depois de um mês de euforia, pinturas faciais, vitupérios e boçalidade, logo regressamos à pacatez do quotidiano, logo readquirimos a postura direita e as maneiras à mesa e logo nos reabilitamos, refeitos do entrudo, enquanto cidadãos dignos e plenamente autónomos. Ainda que abdiquemos da nossa individualidade durante algum tempo, depressa voltamos a ser quem éramos. Qual é mesmo, portanto, o problema? Qualquer adepto de futebol a sério, por mais contido e racional que seja no seu dia-a-dia, suspende o exercício das faculdades mais elementares enquanto assiste a uma partida do clube de que é adepto. Qual é o problema de nos comportarmos assim, não a respeito de um clube, mas a respeito da selecção que representa o país a que pertencemos? A objecção é legítima, e merece uma resposta.

O fervor e a inebriação, em si, são normalíssimos. Fazem parte do espectáculo a que chamamos futebol. Os comportamentos que normalmente daí advêm são, portanto, normalíssimos também. O que contesto é a ideia de pertença, que é aquilo que justifica, no caso de uma selecção, mas não no caso de um clube, o comportamento inebriado a que nos prestamos. Embora não pareça, há uma diferença grande entre torcer por um clube e torcer por uma nação. Nenhum sportinguista pertence, ou acredita pertencer, ao Sporting. Pode nutrir sentimentos fortes pelos Sporting e estar disposto a tudo pelo Sporting (a hipotecar a casa, por exemplo), pode até sentir que deve a sua vida ao Sporting, mas não se sente pertença do Sporting. Embora haja laços sentimentais a unir os sportinguistas ao Sporting, nalguns casos muito fortes, não há laços de sangue. Ser sportinguista não é bem como ser português. Entre os portugueses e o país Portugal há uma relação umbilical. A maioria dos portugueses nasce português, mas nenhum sportinguista nasce sportinguista. Um clube, então, é como um pai adoptivo extremoso a quem sentimos dever, não por motivos de sanguinidade mas por retribuição do afecto que nos devota, o nosso amor de filhos. A relação com uma nação, por sua vez, é como a relação com um pai biológico. E já se sabe que, nesses casos, nem sempre o amor filial se justifica. Ora, ninguém pertence a um país, da mesma maneira que ninguém pertence a um pai biológico. Somos portugueses como somos filhos dos nossos pais. Dessa contingência não se segue qualquer dever. Cabe a cada um, de acordo com a experiência de vida que tiver, avaliar se a sua pátria requer o seu amor e a sua dedicação. Há decerto quem ache que sim e há decerto quem ache que não.

A nacionalidade de uma pessoa não é mais do que um rótulo social, como a morada fiscal ou o número da segurança social. Embora, para fins de cidadania, tenhamos de ter cada uma destas coisas, não precisamos de ter sentimentos especiais por elas. Desse ponto de vista, a nacionalidade de uma pessoa pertence àquela categoria de coisas que dizem respeito à vida pública dessa pessoa. O clube de uma pessoa, pelo contrário, pertence ao domínio da vida privada. Não é como a morada fiscal, nem como o número da segurança social; é como a orientação sexual ou a religião dessa pessoa. Não é algo que identifique essa pessoa enquanto cidadão, nem é algo que ela seja obrigada a apresentar para assinar um contrato de trabalho, mas é algo que provavelmente a define. Há evidentemente quem considere que a sua nacionalidade é definidora da pessoa que é. Embora seja mais difícil encontrar quem pense o mesmo acerca do número da segurança social, é legítimo que assim seja. O que quero salientar, porém, é que também é legítimo o contrário. Haver quem se relacione com a nacionalidade, com a qual nasceu e a qual é forçado a reconhecer como sua (tal e qual um pai biológico), à semelhança da relação que estabelece com o clube de que escolheu ser adepto, conscientemente ou influenciado por terceiros, não implica que não possa haver quem se relacione com a nacionalidade à semelhança do que faz com qualquer outro dado do cartão de cidadão. É tão legítimo transferirmos a nacionalidade da vida pública para a vida privada, e agarrarmo-nos a ela como nos agarramos a tudo o que gostamos de ter perto de nós, como não o fazer. Aquilo que estou a sugerir, caso não se tenha ainda percebido, é que o patriotismo é uma questão de escolha.

É precisamente por ser uma questão de escolha e não um dever (um dever de pertença, como muitos o entendem) que não faz sentido esperar de uma pessoa de uma determinada nacionalidade comportamentos iguais aos praticados por outras pessoas dessa nacionalidade. De um sportinguista é natural esperarem-se comportamentos parecidos com os de outros sportinguistas. Dado que escolheu ser sportinguista, e que não há modo de ser sportinguista sem que isso o defina em maior ou menor grau, é natural que se comporte como sportinguista. Mas será razoável esperar o mesmo de um português? Não só ninguém escolhe ser português como é possível ser português sem que o sê-lo seja definidor do que quer que seja. De um português, por conseguinte, não se devem esperar comportamentos portugueses. Se o patriotismo é uma questão de escolha, e não um dever, um português pode escolher gostar ou não gostar de Portugal, cultivar sentimentos fortes pela nação ou manter a frieza e o desapego, venerar os símbolos nacionais ou desprezá-los. Cada um é livre de sentir a pátria como bem quiser. É livre de senti-la, por exemplo, como aquilo que o aproxima de outras pessoas que a queiram sentir da mesma maneira. Mas também é livre de escolher não a sentir, ou de a sentir numas coisas e não noutras. A nacionalidade portuguesa com que somos prendados sem que sejamos tidos nem achados não obriga a que nos comportemos à semelhança dos outros portugueses com quem partilhamos essa nacionalidade.

É possível que haja portugueses que penduram bandeiras portuguesas nas suas varandas apenas porque sim, porque gostam das cores, por exemplo, mas a maior parte fá-lo porque outros portugueses também o fazem na mesma altura, porque é isso que julgam que se espera de um português nessa altura, porque entendem o patriotismo como uma obrigação e não como uma escolha. É a esses que é preciso dizer, como o disse Oscar Wilde, que o patriotismo é a virtude dos infames. Sempre entendi esta observação como um sinal de repúdio a respeito da sujeição que o exercício dessa virtude requer. A infâmia, de acordo com o modo como entendo a frase, está na abdicação da individualidade; é o que resulta de deixarmos de ser o indivíduo que somos, sacrificando o que nos constitui, para nos transformarmos, por um dever de pertença que admitimos como superior a nós, em súbditos de um colectivo amorfo, sem outro préstimo que não a falsa sensação de coesão que nos promete em troca. Se, para John Stuart Mill, cada bandeira numa varanda representa um indivíduo a menos com que a sociedade pode contar, para Oscar Wilde representa as trinta moedas em função das quais prostituímos a nossa individualidade.

O argumento que tenho estado a ensaiar não serve de modo algum, como possa talvez pensar-se, para justificar um eventual desapreço por Portugal. Pelo contrário, gosto bastante de Portugal. Não serve, de igual modo, para justificar um eventual desapreço por portugueses. Pelo contrário, gosto razoavelmente de portugueses. E também não serve para justificar um eventual desapreço pela selecção portuguesa. Não gosto particularmente da selecção portuguesa, de facto, mas não creio que precisasse de o justificar, desta ou de qualquer outra forma, até porque sempre ouvi dizer que gostos não se discutem. O argumento serve para justificar, isso sim, o apreço que sinto pela selecção argentina; é a minha forma de tornar inteligível a legitimidade, para muitos incompreensível e para outros tantos ultrajante, de me sentir, a respeito de futebol, menos português do que argentino.

 

II – Ser Argentino

Talvez por ter crescido numa altura em que a selecção portuguesa não disputava as fases finais das principais competições (nem mundiais nem europeus), desenvolvi desde cedo laços sentimentais com outras selecções. Ainda hoje, quando a selecção sueca entra em campo, há qualquer coisa que intimamente me predispõe a torcer a favor dela. Não tenho dúvidas de que a origem desse carinho é a Suécia de Tomas Brolin e Martin Dahlin, que em 1994 chegou às meias-finais do campeonato do mundo dos Estados Unidos. Em 1994, o primeiro Mundial de que me lembro quase na totalidade, foram aliás várias as selecções que me ficaram no coração. Embora os laços não se tenham definido com tanta intensidade como no caso da Suécia, ainda hoje simpatizo bastante com romenos por causa daquela selecção comandada por Hagi (o Maradona dos Cárpatos) e com búlgaros por causa da selecção que, além dos mais bem conhecidos Balakov, Kostadinov, Iordanov e Stoichkov, ainda contava com o careca Lechkov e o hirsuto Ivanov. Não é preciso ser um saudosista do país dos sovietes, como se vê, para ter carinho pela Europa de Leste.

Não há, no entanto, outra selecção da qual tenha aprendido a gostar tanto ao longo da vida quanto a selecção argentina. Como era demasiado novo em 1986 para ter visto o mundial do México, e como não tinha ainda a consciência futebolística suficientemente formada em 1990, a minha relação com a Argentina de Maradona estabeleceu-se, quase toda ela, em retrospectiva. Em 1994, essa Argentina caiu por terra nos oitavos de final, eliminada precisamente pela surpreendente Roménia. Mas, por essa altura, já Maradona tinha ido para casa, excluído da prova ainda na fase de grupos, após um exame anti-doping positivo cuja validade o jogador sempre recusou. A participação da Argentina em prova não deixou por isso tantas marcas quanto a forma icónica como Maradona festejou o seu golo contra a Grécia, no jogo inaugural. Aquele golo, ainda por cima na sequência de uma formidável jogada colectiva, perfumada por uma sucessão de tabelas que só muitos anos mais tarde se tornaria a imagem de marca das melhores equipas, mas sobretudo o modo como depois se dirigiu à câmara de televisão, visivelmente enfurecido, e gritou a plenos pulmões contra todos os seus detractores, que antes do mundial o davam como acabado para o futebol e que não acreditavam que pudesse voltar à forma desportiva de antes, sintetiza aquilo que mais aprecio na Argentina, e que só bem mais tarde consegui compreender na totalidade. Naquele golo e no grande plano de Maradona com a boca escancarada e os olhos a chisparem, encapsula-se a criatividade, a frontalidade, a bravura, a irreverência e o atrevimento característicos dos argentinos. O espírito argentino, ali concretizado na figura maior do seu futebol, haveria mais tarde, consubstanciando-se de outros modos, de se me tornar evidente. Mas, naquele momento, alguma coisa se definiu em mim. Ainda que apenas na forma de uma semente, ainda que só muito mais tarde, germinada a semente, esse sentimento indefinido tenha crescido e ganhado raízes, foi naquele momento que a minha paixão pela Argentina se originou.

A expressão desse sentimento demorou alguns anos a concretizar-se. Em 1998, a Argentina caiu nos quartos de final, depois de um golo assombroso de Dennis Bergkamp. Se na altura me perguntassem por que motivo essa derrota constituiu uma profunda desilusão, provavelmente não saberia responder. Até porque não tinha gostado do modo como os argentinos tinham eliminado os ingleses nos oitavos de final, depois de Diego Simeone, valendo-se da manha e da torpeza (características bem diferentes das que mais admirava nos homens das pampas), ter provocado a expulsão de David Beckham. Em parte, creio que torcia pelos argentinos por causa de Ariel Ortega, a figura maior dessa selecção e sucessor natural de Don Diego. Verdade seja dita que Ortega nunca chegou a justificar esse estatuto. Maradona era demasiado grande para ter sucessores. Essa grandeza, que nos anos seguintes dificultou a afirmação a tantos jovens talentosos, foi também aquilo que me manteve particularmente atento ao futebol argentino. Foi por essa altura que me inteirei do que Maradona tinha sido antes de 1994, daquele espírito indomável que revolucionou o futebol mundial com as suas fintas, o único jogador do qual se pode quase dizer que ganhou um campeonato do mundo sozinho, que criou o mito de ter transformado, também sozinho, um clube periférico em Itália, o Nápoles, em campeão italiano e em potência europeia. Ninguém antes de Maradona (nem Pelé, nem Eusébio, nem Cruyff) conseguia condicionar, sem a ajuda de mais ninguém, uma equipa adversária inteira. Foi o primeiro a mostrar ao mundo, de modo consistente, que um jogador sozinho, recorrendo apenas à sua técnica individual, à destreza com que serpenteava por entre vários defesas com a bola colada ao pé esquerdo, à agilidade com que se esquivava às pernas adversárias, podia devastar defesas inteiras. Era o exemplo acabado do génio individual.

O melhor jogador do mundo, no final do século XX, era em parte um herdeiro desse modo de jogar futebol, dessa individualidade fenomenal que, contra tudo e contra todos, faz valer a sua genialidade: Ronaldo Nazário, justamente apelidado de “Fenómeno”. Mas não era só Ronaldo que era herdeiro de Maradona. Todos os grandes jogadores de futebol que então despontavam tinham em Maradona a referência óbvia. Depois de Maradona, só se podia ser o melhor do mundo imitando Maradona. E era na Argentina, por defeito geográfico, que mais e melhor o imitavam. Sim, os brasileiros eram tecnicistas e muito individualistas também. Na Europa latina, sobretudo, também iam aparecendo jogadores dessa estirpe. Mas nenhum povo além dos argentinos compreendia aquilo que Maradona tinha sido, a totalidade do seu génio. Mais do que a competência motora para se desenvencilhar de múltiplos opositores, do que a técnica, a velocidade e a agilidade, estava em causa o espírito livre. Maradona não representava, portanto, apenas a força da individualidade, por oposição à força dos números; representava a liberdade individual. O que Maradona exprimia sempre que deixava por terra um adversário que lhe saía ao caminho era exactamente o que tinha exprimido aquando daquele grito de revolta em 1994 em frente às câmaras; o seu talento em campo, como no fundo tudo o que fazia, era a expressão gritada da liberdade enquanto indivíduo. Há quem aprenda a ter pelo valor da liberdade a mais alta das estimas com a leitura de John Locke, Immanuel Kant e John Stuart Mill, entre outros. Há quem o aprenda, por sua vez, comovendo-se com os valores de Abril, entre outras revoluções igualmente comoventes. Quanto a mim, estou convencido de que aprendi a identificar o valor da liberdade como o mais fundamental dos princípios democráticos por causa do futebol e, mais concretamente, por causa de Maradona.

Ora, era precisamente essa equivalência entre talento futebolístico e expressão de liberdade que, manifestada primeiro em Maradona, eu começava por esta altura a reconhecer noutros jogadores argentinos. E era isso, especificamente isso, que, sem o saber ao certo, me fascinava na criatividade desses jogadores, e que a distinguia de outras manifestações de criatividade. Não era simplesmente a irreverência. Para isso havia Cantona, di Canio e tantos outros. Não era simplesmente a classe. Para isso havia Zidane, Del Piero. Não era simplesmente a competência técnica, a velocidade, a agilidade. Para isso havia Ronaldo, Ronaldinho. Era a conjugação de todos esses factores, claro, mas sobretudo quando postos ao serviço da imaginação. É pela imaginação, pelo exercício desse espaço sem amarras e potencialmente ilimitado, que a liberdade individual se autoproclama. Se tivesse que definir em poucas palavras o espírito argentino cuja genealogia estou a tentar descrever, diria que aquilo que melhor o caracteriza, aquilo que o distingue, é o seu pendor imaginativo. Os jogadores argentinos – creio que era disto que me começava a aperceber – apresentavam-se-me como mais imaginativos do que quaisquer outros. Alguns dos jogadores que mais admirei nos anos seguintes podiam não ser, de um modo geral, os melhores jogadores do mundo, mas a relação entre o futebol que praticavam e a imaginação com que interpretavam esse futebol era inigualável. Foi isso que alimentou a minha paixão pela Argentina.

Quando Portugal, no virar do século, começou a frequentar as grandes competições de selecções, já os jogadores argentinos me tinham seduzido em pleno. Idolatrei, como todos os adolescentes da minha idade, os principais jogadores portugueses da chamada “geração de ouro”: João Vieira Pinto, Rui Costa e Luís Figo, principalmente. Mas os meus maiores ídolos, aqueles que me fizeram querer emulá-los, eram argentinos: Maradona, inevitavelmente, mas depois também Juan Román Riquelme, para muitos o último jogador romântico, e sobretudo Pablo Aimar. Estes dois faziam ambos parte, juntamente aliás com Ortega, da selecção argentina que em 2002, sob a orientação de Marcelo Bielsa, El Loco, se quedou pela fase de grupos do campeonato do mundo do Japão e da Coreia. Foi nesse ano, creio, que comecei a perceber que me incomodavam menos os fracassos da selecção portuguesa do que os da selecção argentina. Tal como os argentinos, Portugal também ficou pelo caminho na fase de grupos, nessa competição. Apesar da notável campanha no Euro 2000, e sobretudo da qualidade de jogo apresentada nesse certame, a eliminação precoce da selecção nacional dois anos depois não me afectou minimamente. Já a eliminação dos argentinos sentia-a como o murro no estômago dado por João Vieira Pinto ao árbitro do fatídico jogo contra a Coreia do Sul.

Essa perda de sentimento pátrio confirmou-se em 2004, aquando do campeonato da Europa disputado em terras lusitanas. A irracionalidade que se gerou em torno da selecção nacional, as bandeirinhas a colorir a cidade, todo o carnaval colectivo a que esse torneio e essa selecção ficarão para sempre associados – tudo isso se contrapunha, de modo flagrante, à livre expressão da minha individualidade, por essa altura já fatalmente desavinda da portugalidade que assim se me tentava impor. O Euro 2004 foi o meu Rubicão. O profundo apreço pela faculdade da imaginação e pelo direito inegociável à liberdade de pensamento (à liberdade individual, portanto), predispunha-me agora contra a vozearia e os aglomerados. A derrota na final com a Grécia, para muitos um momento traumático, foi por isso, para mim, um acontecimento como qualquer outro. Esse desencanto com o futebol português intensificou-se nos anos seguintes, em proporção inversa ao sucesso desportivo da selecção nacional, e acabou por degenerar. A insipidez do futebol apresentado pela selecção das quinas sob o comando de Fernando Santos no campeonato europeu de 2016 foi notada por muitos portugueses. Mas a quantos desses portugueses, bem cientes da fraca qualidade desse futebol, é que aquele golo histórico de Éder, que valeu a conquista daquele troféu inédito, não fez saltar de imediato da cadeira e não motivou a solene incivilidade do mais desbragado dos festejos? Mesmo os mais empedernidos dos críticos de Fernando Santos celebraram a proeza nesse dia alcançada. Não aconteceu comigo. Depois de tantos anos de Scolari, Paulo Bento, Carlos Queiroz e, por fim, Fernando Santos, não era só já não sentir qualquer afinidade com o futebol praticado por aqueles jogadores, que aliás se transformara radicalmente; era senti-lo como uma afronta. Vencer uma grande competição, daquela maneira, com aquele tipo de futebol, com um perfil de jogador que, não obstante a qualidade, era o exacto oposto do perfil do jogador português que me tinha habituado a admirar, era afrontoso. O golo de Éder foi para mim um autogolo.

Em 2016, quando para gáudio nacional Portugal se sagrou campeão europeu, já há muito que a selecção de todos nós não era a minha. No que toca a futebol, sentia-me apátrida já há largos anos. Os meus ídolos, praticamente desde o virar do século, eram outros. Pablo Aimar, talvez o maior de todos eles, nunca chegou ao patamar de excelência a que prometia alçar-se. Em seu lugar, poucos anos depois, apareceria todavia outro argentino, para quem aliás Aimar fora a principal referência. E este, ao contrário do seu ídolo, viera de facto fadado para melhor do mundo. Lionel Messi não é só o melhor jogador de futebol de todos os tempos. Esse estatuto, que só não é consensual na medida em que nada é consensual, não deve fazer esquecer que Messi é também o último grande talento de uma linhagem singular. Foi nele que o espírito argentino que animava Diego Maradona, depois de tentativas sucessivas, encontrou a grandeza necessária aos seus desígnios. Durante anos, o legado de Maradona revelara-se demasiado pesado para todos aqueles que esse espírito escolhera encarnar. Ortega, Riquelme, Aimar – todos eles acabaram por ficar aquém dessa responsabilidade. Em Messi, substanciou-se de vez.

Foi com Messi, portanto, que a minha paixão pela Argentina se consolidou. A livre imaginação, aquilo que atrás estipulei como definidor desse espírito argentino, não a vira nunca, tão perspícua e latejante, como a vira em Maradona, primeiro, e como a via agora em Messi. O génio criativo, tão indomado como absolutamente lógico e coerente, era o mesmo em ambos. E era a esse génio, evidentemente, que devia prestar o meu tributo. Na era de Messi, o absurdo era não ser argentino.

Em 2022, no mundial do Qatar, estava em jogo a última possibilidade de Messi se sagrar campeão do mundo. Essa consagração, que não escapara a Maradona, não era só um prémio mais do que merecido, a coroar o final de uma carreira notável. Era também o prego final no caixão daqueles que, por isto ou por aquilo, condescendem com a calúnia de haver outro jogador na História do jogo que possa com ele ombrear. Tudo aquilo que Messi fez ao longo da sua carreira, tudo aquilo que conquistou, todos os golos que marcou, as fintas inacreditáveis que protagonizava, os passes, as combinações com os colegas, mas também tudo aquilo a que muitas vezes se dá menos importância, as ideias que apresentava em cada lance, os problemas que resolvia, a consistência do seu jogo – tudo isso é mais do que suficiente para que nos envergonhemos de sequer citar o nome de alguém que eventualmente possa medir-se com ele. Para muitos, contudo, acabar a carreira sem ter conseguido sagrar-se campeão do mundo ficaria para sempre como uma mancha no currículo. E serviria sempre de arma de arremesso àqueles a quem as dores de cotovelo ditam a missa. Só havia boas razões, portanto, para torcer pela Argentina neste último campeonato do mundo. E, enquanto adepto, nunca me senti tão satisfeito com a conquista de uma taça. A primeira coisa que fiz, depois de me recompor, horas mais tarde, das emoções provocadas pelo jogo da final contra a França, foi tentar perceber quanto custava uma viagem para Buenos Aires para o dia seguinte. Ainda que não pudesse ir a correr para a Argentina para celebrar com aquela gente toda aquela conquista, era lá que me apetecia estar. Naquela noite, fui mais argentino do que algum dia fui português.

É preciso lembrar, sobretudo àqueles que consideram esta atitude incompreensível e ultrajante, que em Nápoles se festejou muitíssimo a vitória dos argentinos no Qatar. Ainda que por motivos menos complexos, a ligação afectiva entre os napolitanos e a Argentina é semelhante àquela que estive a tentar descrever. Os napolitanos não esqueceram Maradona e a cidade ainda preserva uma costela argentina. É aliás conhecida a história da meia-final do Itália 90, quando a selecção anfitriã defrontou a Argentina no estádio San Paolo, em Nápoles. Antes do confronto, Maradona apelou ao orgulho napolitano e conseguiu pelo menos dividir os adeptos na bancada: ainda que muitos tivessem decidido apoiar a selecção do seu país, certos sectores do estádio (possivelmente preenchidos por napolitanos) torceram de facto pela Argentina. Claro que em Itália este tipo de comportamento parece menos ultrajante. As diferenças culturais entre os povos do norte e os povos do sul são muito acentuadas, sendo por isso natural que nem todos se sintam igualmente representados pela selecção de futebol do seu país. A ideia, porém, é a mesma. Da mesma maneira que um napolitano encontra razões napolitanas para sentir maior afinidade com argentinos do que com italianos, um português pode perfeitamente encontrar razões, sejam de que espécie forem, para gostar mais de argentinos do que de portugueses. No meu caso, essas razões foram estritamente futebolísticas. Explicam-se pelo modo como entendo o jogo e por aquilo que mais valorizo num jogador de futebol. Tal como um napolitano, não precisei de nascer na Argentina, de adquirir nacionalidade argentina, de ter qualquer espécie de relação familiar com a Argentina, de viver na Argentina ou rodeado de argentinos, para aprender a gostar da Argentina. A afeição por um país não é determinada por certidões de nascimento nem por laços de sangue. Nunca estive na Argentina, sei pouco sobre a História e a cultura do país, mas, quando a bola começa a rolar, sou muito mais argentino do que português.

 

[1] Mill, John Stuart, Sobre a Liberdade (trad. Pedro Madeira), Lisboa: Edições 70, 2006. p.128.

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