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Pavorosamente eu


Juvenília

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Pavorosamente eu


Juvenília

Outra vez encontrei um trecho meu, escrito em francês, sobre o qual haviam passado já quinze anos. Nunca estive em França, nunca lidei de perto com franceses, nunca tive exercício, portanto, daquela língua, de que me houvesse desabituado. Leio hoje tanto francês como sempre li. Sou mais velho, sou mais prático de pensamento: deverei ter progredido. E esse trecho do meu passado longínquo tem uma segurança no uso do francês que eu hoje não possuo; o estilo é fluido, como hoje o não poderei ter naquele idioma; há trechos inteiros, frases completas, formas e modos de expressão que acentuam um domínio daquela língua de que me extraviei sem que me lembrasse que o tinha. Como se explica isto? A quem me substituí dentro de mim?

Bem sei que é fácil formar uma teoria da fluidez das coisas e das almas, compreender que somos um decurso interior de vida, imaginar, que o que somos é uma quantidade grande, que passamos por nós, que fomos muitos... Mas aqui há outra coisa que não o mero decurso da personalidade entre as próprias margens: há o outro absoluto, um ser alheio que foi meu. Que perdesse, com o acréscimo da idade, a imaginação, a emoção, um tipo de inteligência, um modo de sentimento tudo isso, fazendo-me pena, me não faria pasmo. Mas a que assisto quando me leio como a um estranho? A que beira estou se me vejo no fundo?

Outras vezes encontro trechos que me não lembro de ter escrito — o que é pouco para pasmar —, mas que nem me lembro de poder ter escrito — o que me apavora. Certas frases são de outra mentalidade. É como se encontrasse um retrato antigo, sem dúvida meu, com uma estatura diferente, com umas feições incógnitas — mas indiscutivelmente meu, pavorosamente eu.
BERNARDO SOARES
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Velhos de poucos ou muitos anos, mais ou menos pavorosos, publicamos neste número da Forma de Vida uma pequena antologia de textos de juventude de: Bruno Vieira Amaral, Alexandre Andrade, Alberto Arruda, Sebastião Belfort Cerqueira, Luísa Costa Gomes, Nunes da Rocha e Júlia de Carvalho Hansen.

 
 

 
Aos dezanove anos, julgava-me poeta. Guardo essas tentativas juvenis como planos de crimes que não cheguei a cometer. A maioria envergonha-me, mas orgulho-me dessa vergonha e só por modesta vaidade não as destruo. Em poucas — duas ou três — encontro vestígios do futuro, uma voz que se assemelha à que tenho hoje. É como se, após percorrer um caminho, encontrasse finalmente o mapa com as indicações exactas do percurso. Isto leva-me a pensar que terei sido mesmo eu o autor daqueles poemas. Apesar disso, não os subscrevo por inteiro. Não pelo que têm da sublime ignorância da adolescência — esse também era eu — mas por sentir que a vida que tentava irromper através daquelas palavras não conseguiu vingar. Escrevi este poema na tarde de uma terça-feira de Junho. E é triste conseguir vê-la com tanta clareza na memória e saber que tudo o que resta, tudo o que posso dizer sobre aquela tarde, são estas palavras. Se alguma aprendizagem devo fazer desta releitura é a de que a derrota daqueles que escrevem cedo se anuncia. Aos dezanove anos, eu, que me julgava poeta, deveria ter percebido que, para quem escreve, de um lado há uma terça-feira nítida de Junho e, do outro, palavras que a obscurecem.
BRUNO VIEIRA AMARAL
 
 
 
Não sou dos grandes espaços
Dos desertos ou oceanos que se estendem até à linha do horizonte

O meu olhar percorre apenas paredes
E as vidas íntimas que as habitam

Não sou do mundo, sou da minha casa
O que vejo são pessoas e crises,
Nunca vi as cores do mundo,
Não sei descrever nada,
Sou das paredes cinzentas e humanas,
Vivo do lado de cá da austeridade
Não sou escritor de viagens
E por mais expressos e transatlânticos
Que atravessem a minha escrita
Só eu me interesso
E à volta de mim mesmo giro.

Esquecem-me as vastas planícies e estepes,
As vulcânicas montanhas,
Os vales profundos,
A imensidão dos mares em fúria,
Os desertos abrasadores,
A inquietação húmida das florestas

Não sou descobridor branco, extasiado de trópicos e de novas gentes
Menos serei repórter da National Geographic
Fotografando índios insólitos, pequenos e assustados
(fotografem-lhes as crises conjugais
Antes de lhes saberem as hierarquias)

Não quero o humano absoluto
      (raças, cores, costumes)
Não quero o divino absoluto
Quero a absoluta relatividade do humano
      (os desempregados, os doentes, os divorciados)
Parem com as análises brancas, ocidentais e néscias

A esmagadora poesia do quotidiano
A minha cama e eu, pangeia, nela deitado
O meu corpo, esta planície de magma solidificado,
Pensamentos rebentam em mim como ondas
      Morrendo na praia dos meus lábios
      Na areia do meu silêncio
Transpiro interiormente

Calcifico-me, quinto elemento,
Um universo finito de paredes e uma família
Ah, a verdade
Na fila para o subsídio de desemprego
Na grande cidade.

 

24 de Junho de 1997

 

 
Rebuscar nos juvenília é um exercício agridoce mas de baixo risco. A distância tudo desculpa. Ingenuidades e excessos de zelo parecem tão perdoáveis como as diabruras de um irmão mais novo, obviamente inimputável mas que já revela potencial e um certo “jeito para a coisa”. Procura-se aquela frase, fragmento ou excerto que propicia um sorriso condescendente mas também o breve arrepio de reconhecimento. Realizada esta falsa quadratura do círculo, estendemos a mão com o nosso achado. Vêem? Vêem? Eu era assim. Julguem à vontade: quem oferece o peito às balas é o meu avatar tristonho que habitou esses anos remotos. (Segue-se o reatar da conversa com o futuro.)
ALEXANDRE ANDRADE
Bem te avisou Dédalo…
Rosto trigueiro de barba e bonomia,
No silêncio difuso de quem conhece
Os eixos e o passo da máquina do mundo.

Afunda a nave, escorre a cera,
Tomba o carro do sol;
O desejo transmuta-se em vaca;
Foge a deusa; a Górgona é forte de mais.

Cada pesadelo traz consigo o seu fim.

E o seu longo corpo.
 

26 de Julho de 1994

 

 
Este foi o primeiro poema que escrevi de que me lembro de gostar. Sei que não devo ter propriamente escarrado em cima de tudo o que escrevi antes, mas este é o primeiro a que me lembro de voltar durante uns tempos, como referência. O regresso da ideia do título no fim, tipo punchline motivada narrativamente, rima interna e tudo, ainda hoje me agrada, mesmo sabendo que, entre a primeira menção do vapor e a última, aquilo é quase tudo parvoíce mística e mesmo com aquele “sem tirar nem pôr” a preparar tão pouco subtilmente o remate final. As reticências, vírgulas e apóstrofos metem-se-me pelos olhos a dentro da mesma maneira. Lembram-me de achar que tinha de controlar completamente o ritmo a que as coisas iam ser lidas, porque tinha medo de que alguém não percebesse, e de achar que tinha de mostrar muito bem a toda a gente que sabia ortografia. Era uma altura em que eu tinha muito público. Não percebo porque é que não pus pontos finais. Quando fui ler os meus cadernos velhos à procura de um poema para aqui, percebi que atravessei uma fase de grande amor por contradições. Estão em todos os poemas. A essa luz, “tentativas repetidas do pecado original” deve ter-me parecido um comentário brilhante sobre inovação e espontaneidade. Hoje, claro, parece só que não me andava a amanhar. Vocês não têm nada a ver com isso.
SEBASTIÃO BELFORT CERQUEIRA
Building Steam With a Grain of Salt

Barulho…
É tudo aquilo a que tenho acesso
Farto de ‘tar trancado
Cercado p’lo universo
Tentativas repetidas do pecado original
Tentativas de construir vapor
Partindo de um grão de sal
A vontade é de vingança
E de voltar à aventura
Sonho e sigo desperto numa tontura
Não esperem nem desesperem
Já estive mais perto da loucura
Já estive perto,
Muito perto…
Vi-lhe a cor dos olhos, cheirei-a
Minha mente é maré cheia
E eu rebento na areia.
Depois fica só sal…
Sozinho, sem tirar nem pôr,
E eu aí já nem rebento
Mas tento construir vapor…
 

17 de Setembro de 2003

 
 

 
‘Uma dúzia deles’ é a minha primeira (e única, graças a Deus!) recolha de poemas. A iniciar uma série de títulos que dizem exactamente o que querem dizer ( dos ‘Treze Contos’ à ‘Pirata’), esta é realmente uma dúzia de poemas que eu policopiei à mão e cosi um a um (era a ideia do anti-inconsútil o´neilliano, de que O´Neill o próprio me falou quando lho dei). Fiz cem exemplares. Na altura eu queria comprar uma tipografia que havia à venda em Setúbal para a ter no quintal e fazer nela os meus livros como a Virginia Woolf. Felizmente venceu o bom senso. Tenho por estas folhas uma ternura particular, acho que deve ter sido por esta altura que comecei a pensar em tornar a vida corrente em escrevente.
LUÍSA COSTA GOMES
 
 

 
Este poema não será propriamente um exemplo da juvenília pois datará de 83/84, andaria eu pelos vinte e seis anos. Mas é para mim (hoje com 58 anos) o poema paredes-meias entre as boas intenções anteriores e a percepção de que talvez fosse possível escrever com consciência poética. De resto tornou-se arte poética de trazer por casa e arredores, até à recomposição da paisagem que mantém, ainda assim, aquela estrutura.
NUNES DA ROCHA

Supõe uma árvore caindo
aérea avalanche
Supõe o machado em estilhaços
e as mãos que o sustêm sangrando

O que pode acontecer é o corpo
fender-se
Um raio de loucura dividir
a árvore exposta
metade devolvida à terra
a outra perfeito lume

 

 
Eu era uma pequena livre pensadora cuja segurança oscilava pela presença de E.T.s. Tinha 11 anos de idade em 1995, a data do texto digitado, e 12 quando escrevi o texto a mão. Ao girar da primeira década, a maturidade morava no pensamento e este tinha a ver com incredulidade, resultado de uma educação espiritual cartesiana. Um argumento só estava terminado quando devastado. Hoje? Mudei. Lanço sementes, finco raízes. Sei cada vez menos e não me pergunto coisas que não queira responder. Eu tinha medo de errar, hoje tenho prazer na ingenuidade. Se ainda cultivo o amplo, me espanto com o repertório da menina que fui e como as coisas que me preocupavam ainda me interessam. Continuo abrindo meus caminhos nos entendimentos e sigo mirando com a escrita os assuntos fundamentais: as vitalidades, os deuses, os mortos, o amor, os tempos passado, presente, futuro e etc. Como sei que tudo isso está reunido na nossa imaginação, dou (com ternura) as mãos para a menina que fui, pois dizemos: eu.
JÚLIA DE CARVALHO HANSEN
 
 

Quando escrevi este texto não sabia ainda que tanto boas intuições como erros fundamentais são igualmente recorrentes. Não é o texto que eu queria escrever, foi simplesmente o texto que fui capaz de escrever (a muito custo). Na altura, não imaginava que iria voltar a algumas daquelas ideias, vezes sem conta, e muito menos que repetiria alguns dos seus erros. O texto parece-me, agora, não muito mais do que uma tentativa de repetir algo de muito importante que eu tinha aprendido recentemente; mas num tom inadequado, isto simplesmente porque a influência é sempre, inicialmente, completamente opaca àquele que é influenciado. Ainda assim, as aspirações que eu tinha quando escrevi este texto permanecem as mesmas.
ALBERTO ARRUDA
 

Leia o ensaio

«Deterioração»