De Valência a Saint-Germain-des-Prés: percursos do relato hagiográfico de São Vicente
Vicente, o diácono de Saragoça que a tradição diz ter sido martirizado em Valência em Janeiro do ano 304 e que é o santo padroeiro de Lisboa deste 1173, sempre teve um culto amplamente difundido. Poetas como Paulino de Nola e Prudêncio cantaram os seus feitos martiriais. Por volta de 410/412, Agostinho afirmava em Cartago num sermão para a missa da sua festa (sermo 276, PL 38, 1257):
Qual é hoje a região, qual a província, até onde quer que se estenda tanto o império romano como o nome de Cristo, que não rejubile por celebrar o dia consagrado a Vicente?
O chamado Martirológio de Jerónimo, compilado no século V na região de Aquileia, que chegou até nós numa versão composta nos finais do século VI ou inícios do século VII em algum centro da Borgonha, regista Vicente na data habitual, o dia 22 de Janeiro. Também os calendários de Polémio Sílvio, elaborado na Gália em 449, e de Cartago, composto em África entre 505 e 535, o apresentam na mesma data. Na Gália, surgem igrejas dedicadas a Vicente já desde meados do século V. No programa iconográfico dos mosaicos de meados do século VI de Sant’Apollinare Nuovo em Ravena (estava então a igreja dedicada a São Martinho), Vicente surge no cortejo dos mártires. Na mesma altura, já existia em Constantinopla uma igreja sob a sua invocação.
O relato do seu martírio teve uma fortuna enorme. Pertence a um grupo de passiones concernentes à Hispânia da Antiguidade Tardia a que convencionalmente chamamos o «ciclo de Daciano»: Félix, martirizado em Gerona, Cucufate em Barcelona, Eulália também em Barcelona, Engrácia e os Dezoito Mártires em Saragoça, Justo e Pastor em Alcalá de Henares, a que se juntam as curiosas passiones de Leocádia em Toledo e dos três irmãos Vicente, Sabina e Cristeta em Ávila. Hoje gostaria de revisitar algumas das mais antigas versões do relato hagiográfico de São Vicente, produzidas na Hispânia visigótica e, mais tarde, nos círculos carolíngios.
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Que por finais do século IV circulavam versões de uma passio, que tomava a forma de «paixão épica», para usar a clássica distinção de Hippolyte Delehaye, é um dado seguro.[1] Testemunhos disto são Prudêncio, que em dois hinos do seu Peristephanon (4 e 5), compostos por volta do ano 400, relata as circunstâncias do martírio, e Agostinho de Hipona, de quem nos chegou uma série de sermões para o dia do santo, compostos entre os anos 410 e 419. O acordo entre os dois autores permite identificar os principais contornos deste texto. Vicente é diácono em Saragoça, quando surge a perseguição de Diocleciano e Maximiano. Nos termos do Segundo É dicto, promulgado no Verão de 303, que ordenava, entre outras disposições, a prisão dos clérigos, Vicente e o seu bispo, Valério, terão sido presos. Levados para Valência no início de 304, Vicente é torturado, supostamente ao abrigo do Terceiro Edicto, emitido no Outono anterior, que preconizava a tortura dos renitentes e a libertação dos apóstatas. Vicente morre na sequência do interrogatório sob tortura. Dois milagres sobrevêm: o corpo exposto a céu aberto é protegido por um corvo contra as investidas das feras, designadamente de um lobo, episódio que cedo passou a remeter para o corvo de Elias (I Reis 17, 2-6), como já Agostinho invoca; o seu cadáver, lançado em alto mar, regressa à praia, onde a areia forma a sua primeira sepultura. Agostinho comprova que, pelo menos no seu tempo em Cartago, a passio era lida na missa do dia do santo, 22 de Janeiro.
As mais antigas versões do seu martírio revelam um processo progressivo de monumentalização das relíquias. Traduzo o passo na versão 8631 da Bibliotheca Hagiográfica Latina, a forma textual que Victor Saxer (1918-2004) designa como «comum»[2]:
Acreditavam eles que Vicente ainda estava submerso nas profundezas do mar alto, já ele chegara ao porto para repousar, buscando as honras devidas da sepultura, antes mesmo de se saber que estava ali exposto à vista de todos. Pois a um certo indivíduo, cuja fé pusera à prova, creio eu, o seu santo espírito avisa para ir ter com ele, indicando que fora trazido de volta à costa e mostrando o sítio do litoral onde jazia. Quando este chegou, assustado e cauteloso, já uma certa viúva, de avançada idade e cheia de santidade, avisada num sonho, recebera a indicação exacta onde o corpo, arrastado de volta suavemente pela ondulação, repousava, corpo que a areia macia sepultara. Deslizando e amontoando-se, a areia prestara a pouco e pouco o serviço de lhe conceder as honras de um túmulo.
Por conseguinte, nada há de insólito que a solicitude dos homens tenha completado o que já antes os próprios elementos haviam feito. Estava sepultado no litoral, no limite entre as águas e a terra, ele que tinha sido posto à prova, em testemunho da sua fé e para seu triunfo, tanto em terra como no mar. Como se lendo com os olhos indicações seguras, a anciã dirige-se pressurosa até junto dele pelo trajecto sinuoso da costa e revela a muitos o local. Vicente, bem merecedor de ser achado para ter as honras de um monumento sepulcral, foi então descoberto. Dali, o corpo, venerável a todos e já bem-aventurado pelas honras sepulcrais, foi levado para uma igreja. Desta igreja, levaram Vicente para a catedral, onde é consagrado sob o santo altar. O local, dedicado pela devoção a Deus e venerável pelas relíquias, ao ser por ele glorificado, glorificou-o.
Num primeiro momento, o corpo, coberto de areia, um simples tumulus, é descoberto por uma anciã e trasladado pelos fiéis para um sarcófago ornamentado. Depois levam o corpo para uma igreja. Esta fase é atestada por Prudêncio, e tem lugar após a promulgação do edicto de Constantino, em Junho de 313, que outorgou a liberdade de culto em todo o império. Não é claro se esta igreja é de identificar com aquela que a actual San Vicente de la Roqueta veio substituir, ou se é uma anterior. De qualquer forma, escavações na área parecem comprovar a existência de sepulturas paleocristãs, cuja datação vai da Antiguidade Tardia até ao período da ocupação muçulmana.
Num momento posterior, constrói-se uma basílica para albergar as relíquias de São Vicente. A arqueologia parece apontar para que este complexo paleocristão, de época visigótica, se situasse na actual Plaza de Almoina. Esta transferência terá ocorrido no segundo quartel do século VI, durante o bispado de Justiniano. Do bispo e da sua obra de polémica teológica, Isidoro traça um retrato no seu De uiris illustribus.[3] Sendo irmão de Justo de Urgel e dos bispos Elpídio (Huesca) e Nebrídio (Égara, actual Tarrasa, na Catalunha), parece ter tido um papel importante no plano de obras públicas em Valência. Um poema de cariz epigráfico transmitido numa antologia poética hispânica em Paris, BnF, lat. 8093, parte I, copiada nos inícios do século IX em Lyon, após referir o seu programa de grandes empreendimentos, designadamente de edifícios religiosos, assinala a sua devoção a São Vicente (10-12)[4]:
Ao morrer, cheio de devoção, nomeou seu herdeiro
Vicente, o glorioso mártir de Cristo, que ele,
em vida, muito venerou na sua piedosa liderança.
Uma inscrição, da qual sobrevivem fragmentos encontrados na Plaza de Almoina, que estudos recentes situaram no tempo do bispo Anésio (646-652), comemora a restauração em 648 de uma catedral com um telhado dourado, ornamentos reluzentes, suportado por belas colunas.[5]
A primeira aparição desta terceira fase, ou seja, a que corresponde à construção da catedral em Valência, encontra-se já na passio BHL 8628-8631, ou seja, a que Saxer designou como «passio comum».[6] É este o texto que se encontrará mais tarde nos passionários hispânicos dos séculos X e XI. É difícil estabelecer quando terá sido composto. Era seguramente conhecido em meados do século VI na Hispânia, quando foi utilizado na redacção de dois textos vicentinos de período visigótico. Um é o sermão «Gloriosissimi Vincenti martiris», publicado pela primeira vez em 1807 por Jaime de Villanueva e recentemente objecto de uma rigorosa edição crítica. Os manuscritos atribuem o texto a Justo, bispo de Urgell na primeira metade do século VI, irmão do citado Justiniano.[7] O segundo é o sermão «Cunctorum licet», composto antes de finais do século VII. Desconhecemos o seu autor, e vários nomes têm sido sugeridos — Leandro de Sevilha, Justiniano de Valência, Bráulio de Saragoça — sem que haja argumentos decisivos.[8] Excertos foram utilizados na missa composta no século VII visigótico, presente nos sacramentários hispânicos dos séculos X e XI.
O mais antigo testemunho da redacção BHL 8631 é um manuscrito copiado em meados do século VIII. É ele hoje Munique, Bayerische Staatsbibliothek, Clm 3514. Outros manuscritos antigos, já do século IX, são Paris, Bibliothèque nationale de France, lat. 10861, da primeira metade do século, produzido em Christ Church, Canterbury, mais tarde na posse de Saint-Pierre de Beauvais; Città del Vaticano, Biblioteca Apostolica Vaticana, Vat. lat. 516, de meados do século, composto no eixo Fleury–Reims; Stuttgart, Württembergische Landesbibliothek, HB XIV 13, copiado em St. Gallen na segunda metade do século; enfim, Montpellier, Bibliothèque interuniversitaire, Bibliothèque universitaire historique de médecine, H 135, de finais do mesmo século, proveniente de Saint-Étienne de Dijon. Foi enorme a fortuna medieval desta redacção. Para a edição do texto, Victor Saxer estudou vinte e dois manuscritos compostos até finais do século XII. Em estudo recente, utilizámos cinquenta e sete manuscritos do mesmo período.[9] Será, na verdade, de largas centenas o número de testemunhos medievais.
Desta versão dependerá a redacção abreviada BHL 8638. O mais antigo manuscrito desta está hoje em Milão: Biblioteca Ambrosiana, B 168 sup. Foi copiado no Norte de Itália na segunda metade do século VIII. É um texto relativamente breve, que Victor Saxer considerou ser a redacção mais antiga.[10] Porém, os argumentos são frágeis e deverá antes ser um epítome da versão BHL 8631, como Sofia Meyer demonstrou.[11]
Também a versão numerada BHL 8632 consiste numa reelaboração abreviada da «versão comum» (BHL 8361).[12] A cópia mais antiga que chegou até nós encontra-se no primeiro caderno de Paris, Bibliothèque nationale de France, latin 1764, um manuscrito que pertenceu, a certa altura, a Saint-Martial de Limoges. O caderno é datável do segundo quartel do século IX e parece ter sido produzido na área que corresponde hoje ao norte da França, Bélgica e parte da Alemanha.
No terceiro quartel do século IX dá-se na abadia parisiense de Saint-Germain-des-Prés um reavivar do culto e a redacção de textos de devoção vicentina. Recordemos que esta abadia foi mandada construir por Childeberto I (511–558) justamente para albergar uma relíquia de São Vicente, uma estola que o rei trouxera no regresso de uma expedição frustrada a Saragoça em 541, como indica Gregório de Tours (Historia Francorum, 3, 29). A igreja foi dedicada em 558 por Germano, bispo de Paris. Em 1163 foi rededicada ao próprio Germano.
A redacção do relato hagiográfico de Vicente escrita em Saint-Germain-des-Prés foi classificada BHL 8630.[13] O mais antigo testemunho é Paris, BnF, lat. 13760, copiado nesta abadia na segunda metade do século IX, depois de 864. Contém um dossier sobre São Vicente:
Passio s. Vincentii martyris (BHL 8628-8630)
Agostinho, sermo 276 (para o dia de S. Vicente)
Agostinho, sermo 277A (para o dia de S. Vicente)
«Tantam autem gratiam» (BHL 8634-8636)
Aimoíno de Saint-Germain, Translatio s. Vincentii (BHL 8644-8645; 8646)
«Cunctorum licet» (Ps.-Agostinho, sermo 188)
Recorde-se que, pouco antes, precisamente em Outubro de 858, dá-se o regresso da Hispânia de Usuardo, monge de Saint-Germain-des-Prés, cuja missão fora resgatar as relíquias de São Vicente e trazê-las para Paris. Não tendo tal sido possível, trouxe as de Jorge, Aurélio e Natália, recentemente mortos de Córdova.
Esta nova redacção é uma versão retrabalhada e ampliada da BHL 8631. Por exemplo, acrescenta-se a família de Vicente (agora neto de cônsul, sendo a sua mãe de Huesca) e a sua formação literária:
O seu pai foi Eutício, filho do nobilíssimo cônsul Agréscio. Quanto à sua mãe, sabe-se que era Énola, originária da cidade de Huesca. Vicente entregou-se ao estudo das letras desde tenra infância sob a clemente providência divina, que previa que ele haveria de ser instrumento da sua escolha (Actos dos Apóstolos, 9, 15).
Um outro é o facto de Valério, o bispo de Saragoça que comparece diante de Daciano juntamente com Vicente, ser gago:
Ele era dotado de uma simplicidade e inocência admiráveis, e era homem de grande saber, mas, como já dissemos, tinha dificuldades na fala...
A adição visa esclarecer um problema que os relatos hagiográficos até então apresentavam. De facto, são chamados à presença do governador romano o bispo de Valência Valério e o seu diácono Vicente. São ambos interrogados pela ordem do respectivo estatuto. O surpreendente é que a Valério nada terá acontecido — o seu nome surge, aliás, a subscrever as actas do concílio de Ilíberis, na área da actual Granada, que teve lugar poucos anos depois. Caberá ao seu diácono enfrentar o interrogatório do governador, ser torturado e martirizado. O episódio era, pois, problemático. Assim, o autor desta versão toma como modelo um passo da Vida de Santo Agostinho da autoria de Possídio, que conta que o predecessor de Agostinho em Hipona, que também se chamava Valério, era incapaz de falar publicamente por saber fraco latim («homem de origem grega, pouco instruído na língua e literatura latinas»). Isto leva o bispo a encarregar Agostinho de tarefas que excediam o estatuto que à altura tinha, o de presbítero. Assim se explicaria a proeminência do diácono Vicente, que sofre o martírio, em detrimento do bispo, que é apenas preso por ter desprezado o é dicto imperial.
Do mesmo ambiente e época datam o relato da trasladação das relíquias de São Vicente para Castres (BHL 8644-8645 e 8646), que ocorreu em 863/864.[14] Saint-Benoît de Castres era uma fundação antiga, remontando porventura ao século VII. Ficando no sul de França, no caminho de Santiago de Compostela, não longe de Albi e Toulouse, a abadia obteve protecção de Luís, o Piedoso, e de Carlos, o Calvo. A Carlos, o Calvo, tinha-se aliado o abade de Castres, Gisleberto, que é quem acolhe o monge Audaldo em 855.
A translatio foi composta por Aimoíno, monge de Saint-Germain-des-Prés. A ele são atribuídas também outras obras, entre as quais a translatio das relíquias dos mártires cordobenses Jorge, Aurélio e Natália, trazidas para Saint-Germain-des-Prés por Usuardo em 858. O relato é composto por uma primeira parte em prosa, dividida em dois livros, precedida por uma carta prefacial endereçada a Bernon, o abade de Castres, e uma segunda parte em verso, resumindo o conteúdo da primeira, precedida por uma carta a Teotger, monge da mesma abadia. Pretende ser um relato das circunstâncias que rodearam a vinda das relíquias do santo de Valência para Castres. Narra o episódio do sonho que o monge Hildeberto teve em Conques, que lhe indicou o sítio do túmulo de Vicente em Valência, o papel de Audaldo, o protagonista da trasladação do corpo, e a sua tentativa falhada de trazer as relíquias para Conques, e as diferentes peripécias até estas finalmente chegarem a Castres.
O texto está repleto de episódios pitorescos. Recorde-se que esta translatio decorre em dois momentos. Em 855, Audaldo, membro da comunidade monástica em Conques fundada no século VIII (dedicada a Sainte Foy a partir de 883), apenas logra trazer o corpo de São Vicente de Valência até Saragoça. Ao regressar a Conques sem ter cumprido a sua missão, é acusado de má conduta e é expulso, refugiando-se em Castres. Só em 863 ou 864, desta vez indo Audaldo a acompanhar Salomão, conde da Cerdanha, o corpo chega a Castres. Um aspecto a destacar neste relato é que também se cita a família do mártir, tal como na versão composta por estes mesmos anos em Saint-Germain. Aimoíno relata que Audaldo leu a informação numa inscrição junto do seu sepulcro (Translatio s. Vincentii, I, 2):
Encontram o local do sepulcro ao abandono, assinalado por uma epígrafe. Nela estava inscrito que ali repousava o santo diácono e mártir Vicente. Os nomes do seu pai Eutício e da sua mãe Énola, ambos ilustríssimos, dos quais viera ao mundo um tão grande atleta [de Cristo], refulgiam gravados naquele epitáfio, entre outras coisas.
O manuscrito mais antigo é o já citado Paris lat. 13760, copiado na segunda metade do século IX em Saint-Germain-des-Prés.
A chamada «versão romana», que leva o número BHL 8639, é possivelmente uma reelaboração da versão de Saint-Germain-des-Prés (BHL 8630).[15] Pelo menos, revela um conhecimento dessa redacção, o que é particularmente visível no prólogo. Deverá ter sido composta também no século IX. As cópias mais antigas conhecidas encontram-se na primeira parte de Paris, BnF, lat. 5571, e em Milão, Biblioteca Ambrosiana, P 113 sup., ambos da segunda metade do século IX, o primeiro produzido no norte de França, tendo pertencido mais tarde a Saint-Bégnine de Dijon, o segundo do norte de Itália. Teve uma fortuna manuscrita significativa. Também em Paris lat. 13760, acima citado, vem uma notícia de interesse, geralmente identificada pelas primeiras palavras, «Tantam autem gratiam» (BHL 8636).[16]
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Vimos assim o percurso das mais antigas versões do dossier hagiográfico de São Vicente. Já desde finais do século IV circulava uma passio de que dão testemunho Prudêncio e Agostinho. A mais antiga versão que chegou até nós (BHL 8631) foi porventura composta no século V ou VI. O mais antigo manuscrito data de meados do século VIII. Desta redacção derivam o epítome BHL 8638, cujo testemunho mais antigo foi copiado na segunda metade do século VIII e o epítome BHL 8632, do século IX. Na segunda metade do século IX, em Saint-Germain-des-Prés, o culto ganha uma certa proeminência. Aqui se compuseram diversos textos do dossier vicentino, designadamente uma nova versão da passio (BHL 8630), bem como as duas redacções da translatio das relíquias para Castres (BHL 8644-8645 e 8646). Aqui também se juntou a notícia BHL 8636 ao corpus textual ali formado. E assim termina a produção carolíngia referente ao relato hagiográfico de São Vicente.[17]
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Paixão do bem-aventurado diácono e mártir Vicente
Versão presente em Milão, Biblioteca Ambrosiana, B 168 sup., da segunda metade do século VIII, publicada por Victor Saxer em «La version brève BHL 8638 de la Passion de S. Vincent», Hispania Sacra, 43 (1991), p. 679-713.
1. Naqueles dias, no tempo dos imperadores Diocleciano e Maximiano, uma terrível perseguição aos cristãos estava em plena ebulição na cidade de Valência, na província Augustana. Daciano, o iniquíssimo governador, assumiu esta missão de pura crueldade contra os santos homens de Deus. Mal entrou na cidade, ordenou aos soldados que trouxessem àquela cidade de Valência o bispo Valério e o diácono Vicente, bem como os restantes membros da hierarquia eclesiástica, acorrentados com grilhões bem apertados e debilitados pela inanição. Depois de conduzidos e fechados num cárcere bem guardado, quando calculou que eles estariam já quebrados de espírito pelos tormentos, Daciano ordenou que fossem levados à sua presença. Ao vê-los sãos e de semblante alegre, encolerizou-se e irrompeu com estas palavras: «O que tens a dizer, Valério, tu que actuas contra os decretos imperiais com a desculpa da religião?» Perante isto, Vicente diz: «Não queiras, pai venerável, falar em murmúrio, com um tom tímido, mas exclama, a alta voz, para que esmigalhes a raiva do tirano, que ladra contra o ministério de Deus».
2. Perante isto, cheio de fúria, diz Daciano: «Levai daqui este bispo e pendurai no cavalete aquele rebelde, Vicente. Torturai-o, para que aprenda pelos suplícios a obedecer às ordens imperiais». Após ele ter sido suspenso e longamente torturado, perguntou-lhe Daciano: «Diz-me, Vicente, em que situação vês o teu pobre corpo?» Mas ele, sorrindo, respondeu: «Isto é aquilo por que sempre ansiei. O servo de Deus está preparado para tudo suportar em nome do Senhor». Então, cego de cólera, Daciano põe-se a gritar aos carrascos: «Desgraçados, porque razão as vossas mãos desfalecem a ponto de não serem capazes de vencer Vincente com as vossas torturas? Lograstes sempre vencer adúlteros e bruxos e parricidas, a ponto de não poderem ocultar mais, no meio das torturas infligidas, a sua culpa, quando os torturáveis mais duramente. E agora, Vicente, só ele, conseguiu superar os vossos suplícios? E não o conseguis despedaçar a tal ponto que seja forçado a renegar o nome de Cristo?» Então, de novo sorrindo, o bem-aventurado Vicente diz: «Confesso que Cristo é filho de Deus, do Pai altíssimo, e único, e proclamo que, com o Pai e o Espírito Santo, é um só Deus. E tu forças-me a negá-lo, a mim que enuncio estas coisas que são verdadeiras? Deves, sem dúvida, torturar-me, se o que digo é mentira». Tomado de fúria, o governador ordenou que o flagelassem, e que lâminas de ferro em brasa fossem postas sobre o peito do mártir, e que derramassem gotas escaldantes de chumbo liquefeito. Mandou ainda que sobre as feridas recentes derramassem grãos de sal a crepitar do fogo.
3. Passado algum tempo, Daciano perguntou aos soldados o que fazia o diácono Vicente. Os soldados responderam-lhe que proclamava que Cristo é o Senhor, de rosto risonho, de espírito fortíssimo, com uma declaração mais inabalável do que quando começara. Então, o governador ordenou que fosse enclausurado numa masmorra, no meio das trevas, e que espalhassem por todo o lado cacos de vasilhas, para que, quando o santo homem quisesse entregar o corpo ao repouso, os afiados fragmentos de vasilhas se lhe espetassem nas feridas. Mas quando os guardas despertaram do sono, uma luz súbita refulgiu no cárcere e ficou ali à vista um leito macio, sobre o qual, deitado, o diácono do Senhor entoava um salmo ao Senhor e cantava em júbilo um hino. Apavorados, os soldados temiam que Vicente, o ministro de Deus, fugisse da prisão. A eles, o bem-aventurado Vicente disse em voz alta: «Não tenhais medo. Pelo contrário, se sois capazes, aproximai-vos e absorvei com o olhar esta luz celeste. Ide contar ao iniquíssimo Daciano esta luz de que desfruto». Quando Daciano ouviu tal coisa, pôs-se a gemer e disse: «Que mais podemos fazer? Já estamos vencidos. Levai-o até a um leito e colocai-o sobre uma cama macia. Se ele morrer durante as torturas, tornamo-lo ainda mais glorioso». E quando foi levado para o leito, de imediato entregou a alma a Deus.
4. Quando Daciano tomou conhecimento, ordenou que o corpo fosse lançado num descampado, para que os cães e as feras devorassem o cadáver de Vicente. Então um corvo pousou junto do cadáver e pôs-se a afastar as aves que acorriam. Logo veio um lobo que o corvo atacou com audácia: expulsando-o, afugentou-o para bem longe. Ao ouvir isto, não suportando a glória de tão grande homem, Daciano ordenou aos marinheiros que lançassem o corpo ao mar, bem longe da costa. Cumprindo as ordens do seu chefe, afundaram o corpo preso a uma pedra no mar profundo. Porém, guiado pela mão do Senhor, foi, de imediato, arrastado para o litoral. Mal isto foi sabido, uma certa anciã, de nome Ionice, sepultou-o com todas as honras devidas. Quando a multidão dos fiéis ouviu tal coisa, eles tiraram o santo corpo do sepulcro e levaram-no em júbilo para uma igreja, sepultando-o com a máxima veneração.
5. O diácono Vicente padeceu o martírio na cidade de Valência, ao décimo primeiro dia antes das calendas de Fevereiro, sendo governador Daciano.
6. Reinando nosso Senhor Jesus Cristo, a ele a honra e a glória pelos séculos dos séculos. Ámen.