Your fat King and your lean beggar is but variable service — two dishes but to one table. That's the end. Your worm is your only emperor for diet. We fat all creatures else to fat us, and we fat ourselves for maggots.
Shakespeare, Hamlet
LES HOMMES SE AGISSENT POUR ÊTRE.
Bataille, Le labyrinthe
Even a worm will turn…
ditado inglês[1]
§ Uma bicha inquieta
Aristóteles era uma bicha inquieta.
Talvez haja outras formas de o dizer, mas poucas tão adequadas.[2]
A inquietação profunda que move Aristóteles não é, por certo, só sua. De facto, ainda hoje demonstra ser fundamental ao estar do mundo ocidental. Mas em Aristóteles essa formulação encontra-se clara: a sua alma, as formas com que explica e faz o mundo, a construção do etéreo como oposta ao terrestre, o desejo por uma eternidade para lá do corpo finito, o descobrir de uma Ordem que permita a continuação do s’eu-Ser para além de si mesmo. Trata-se de uma inquietação em relação à degeneração, à deficiência e à morte. A inquietação, numa palavra, de se ser material. Por outro lado, é uma inquietação face a ser Homem, a ocupar o centro do mundo, a ser fulcrum da existência e leitor de Deus — numa palavra, ansiedade de se Ser.
Foi Bataille quem melhor e mais sucintamente formulou esta inquietude essencial ao Ser ocidental: «na base da vida humana há um princípio de insuficiência». Este princípio está presente, ao nível de uma dialéctica interpessoal, na forma como, «isoladamente, cada homem julga a maioria dos outros como incapazes ou indignos de “ser”», e como «a suficiência de cada ser é posta em causa, sem relento, por todos os outros» (Bataille 1985, 171-173). O Princípio da Insuficiência estipula este centro vazio que cada indivíduo carrega, e que dirige toda a nossa acção, a acção em si mesma, como tentativa do seu preenchimento, como tentativa de Ser.
Esta insuficiência aparentemente inextinguível — e que Bataille não situou no patriarcado ocidental — não se limita à relação consigo mesmo ou com o outro, mas ao próprio fazer mundo e à impossibilidade da possibilidade de se ser. Dela nascem dramáticas tentativas de dar significado ao mundo; histórias de simbolização, valorização, aversão e abjecção; as tragicomédias do ser e da vida:
Esta inquietude partilhada por todos cresce e reverbera, dado que a cada passo, com uma espécie de náusea, os homens descobrem a sua solidão numa noite vazia. A noite universal na qual tudo se encontra — e de imediato se perde — pareceria ser a existência por nada, sem suporte, equivalente à ausência do ser, se a natureza humana não surgisse para dar a sua importância dramática ao ser e à vida. (Bataille 1985, 172)[3]
Este ensaio tem como objecto a teoria reprodutiva que Aristóteles expõe na sua Geração dos Animais. Procura nela os traços da lógica patriarcal que suporta e é suportada pela construção da divisão essencializada do sexo-género, uma divisão apresentada como natural e como metafísica. Encontra, na sua base, o dualismo entre forma e matéria, estabelecido por Platão e adoptado por Aristóteles. Segue estes traços e encontra uma mulher-fêmea feita secundária e instrumental, veículo para a re-produção do Homem. Prossegue e vê-se em mãos com uma teoria da anormalidade monstruosa que parece justificar o defeito, o excesso, o desvio, e mesmo a própria existência da mulher — a fêmea como a primeira forma de monstruosidade!
Mas este ensaio é acima de tudo sobre este movimento que Bataille identifica quando escreve que «o que exige de mim que haja um “ser” no mundo, um “ser” e não apenas a insuficiência manifesta da natureza não-humana ou humana, projecta (…) a suficiência divina através do espaço, como o reflexo de uma impotência, de uma doença do ser aceite servilmente» (Bataille 1985, 171-173).
Se o contraponto necessário a esta extensão e projecção divinas é uma compartimentalização e abjecção terrestres, então é nesse movimento que se encontra o motivo e coração da obra de Aristóteles. O Rei face ao magro pedinte. Ou, para respeitar os seus termos, digamos antes que é na oposição do baixo ao etéreo, e na própria e derradeira separação entre matéria e forma que se encontra tanto a essência como a finalidade da sua filosofia natural. É contra o Princípio da Insuficiência que Aristóteles estipula o Princípio da Mesmidade. A monstruosa misoginia de Aristóteles é uma das manifestações da sua luta pela eternidade, da sua acção contra a insuficiência.
E por isso este ensaio, por fim, recua. Recua para voltar ao momento em que, antes da representação, classificação e razão agirem para escapar a uma sensação ubíqua de insuficiência, a ansiedade era mais intensa, e o abismo da diferença um tanto ou quanto mais obsclaro. E, aí, face à noite vazia do ser, o que encontra não é um touro fúria. Tudo o que encontra são bichxs de merda.
§ Filosofia natural: ideias e causas de uma ruptura geracional
História dos Animais, Partes dos Animais, Geração dos Animais, Movimento dos Animais, Sobre a Alma: foi vasta a porção da sua obra que Aristóteles dedicou ao estudo da vida, em particular ao estudo da vida animal. Contudo, é hegemónica, nos dias de hoje, a concepção de que a filosofia aristotélica é uma herança digna de ser inquirida e revisitada, enquanto os seus estudos naturais são, no melhor dos casos, dignos de curiosidade, mas, em última análise, não constituem mais que uma colagem de observações e hipóteses ultrapassados pelo conhecimento contemporâneo. Passado o Iluminismo e o seu desencanto, depois do corte veemente entre a ciência e todas as outras formas de saber, o conhecimento natural de Aristóteles é separado da sua filosofia e reduzido a uma curiosidade a ser estudada com a distância e estranhamento a que os objectos da história da scientia estão condenados.
Aristóteles, contudo, é o primeiro a insistir que a sua obra é uma de filosofia natural. Esta formulação não é unidireccional.[4] O conhecimento natural aristotélico encontra a sua profundidade e riqueza na aplicação rigorosa de um entendimento metafísico. Em igual medida, esses mesmos princípios são constantemente revisitados, corrigidos e reformulados pelo estudo empírico do mundo natural que o rodeia.[5]
Exemplo disto, na esfera da vida natural, é como a filosofia de Platão, em particular a separação entre matéria e formas, foi adoptada e adaptada por Aristóteles (e posteriormente classificada hilomorfismo). Também chamadas ideias, as formas são entendidas como as essências não-físicas de todas as coisas, e como o único plano onde o verdadeiro conhecimento é possível. A Metafísica de Aristóteles, mostra as profundas influências destas ideias, e como elas alteram e são alteradas pelo entendimento do mundo vivo.[6] Os predecessores pré-socráticos de Aristóteles debruçavam-se sobre a questão da prima mater: tentavam descobrir a componente fundamental que estava na base de tudo, o elemento (ou elementos) que pudesse mudar de aspecto e qualidade, mas que em última análise se conservaria sempre. A partir deste elemento, procuravam um entendimento composicional de todo o mundo.[7] Como escreve, «dos primeiros filósofos, a maioria pensava que apenas as causas sob forma de matéria eram os princípios de todas as coisas. Pois aquilo de que todas as entidades vêm, de que cada coisa primeiramente emerge e na qual no fim se resolve, substância que permanece mas muda no que toca às suas afeições — isto anunciaram como sendo o elemento e princípio de todas as entidades, e por essa razão pensavam que nada se originava ou era destruído».
Por sua vez, Aristóteles introduz a forma como aquilo que mantém e permite a possibilidade de considerar simultaneamente universais e as suas manifestações particulares. No que toca à análise da vida natural, isto significa a capacidade de construir uma taxonomia e divisão categórica do mundo das espécies apesar ou com as suas diferenças internas e a nível individual ou familiar. Aristóteles estabelece então — pelo menos de acordo com o seu próprio testemunho — uma ruptura com o olhar filosófico que não tomava em séria consideração os particulares empíricos.
É possível identificar ainda outra quebra essencial com os trabalhos anteriores, desentrelaçável da primeira. Para isso, basta olhar para como Aristóteles estipula as quatro causas fundamentais para a compreensão do cosmos, nomeadamente o cuidado que tem com a causa final no olhar do mundo natural. Comparando-se com os naturalistas que o antecederam— e que, com um certo desprezo, ou até mesmo derrisão, intitula de «fisiólogos» — Aristóteles diz introduzir uma análise do mundo natural que não se prende apenas com a causa material de cada coisa, ou seja, com a questão do que é «causa por fornecer a matéria de que é constituída». A esta análise contrapõe um conhecimento do mundo que, a ser completo e verdadeiro, deve ir para lá de entender o que dá matéria às coisas (causa material), ou o que justifica a sua alteração (causa motora) — um inquérito que identifica já em alguns dos seus predecessores. De forma crucial, para entender a natureza das coisas e como vêm a ser, também é necessário saber o que forneceu à coisa a forma que esta vem a concretizar (a causa formal), e o porquê e com que finalidade é que veio a existir, ou seja, a causa final, o seu telos.[8]
As consequências para a análise do mundo natural são tremendas. A procura da causa formal parece permitir, como com Platão, a leitura de um sistema de universais que não descarta, negligencia ou secundariza as particularidades dos seres. A Geração dos Animais constitui uma incrível obra de observação empírica, colecção de factos naturais, de recolha de informação ora directamente ora por via de testemunhos que não escapam a um cepticismo analítico, e mesmo de uma procura de informação não imediata por via da intervenção no mundo animal, nomeadamente pelo uso da dissecação. A multiplicidade, diversidade e por vezes aparente contradição do mundo animal não assustam Aristóteles na sua procura de um conhecimento superior. A matéria é propensa à transformação e de-generação; mas a forma salvaguarda a ordem do universo e do universal. Segundo a sua narrativa, os seus trabalhos não são uma colecção solta de factos naturais, um acervo de testemunhos avulsos, ou lendas e legendas. Saber das coisas é conhecer as suas lógicas até ao nível dos seus motivos, das razões pelas quais são, para as quais são.
Eis então o projecto de uma filosofia natural. Compreender a ordem do mundo pela sua observação exaustiva e explicação das coisas e das suas transformações com base nas suas causas materiais, motoras, finais e formais. Saber de que são feitas as coisas, e como esse fazer se dá, mas também, e de forma crucial, a sua finalidade e a essência que materializam. Entender, da existência das coisas, o seu de quê e o seu pelo quê; assim como o seu para quê e o seu por quê.
§ Espécie: forma de vida da dicotomia
A dicotomia aristotélica presente no duo matéria-forma não é um esquema analítico centrado num binarismo de iguais termos. Ela é estabelecida na base de uma valorização assimétrica e hierárquica de um dualismo de natureza tão afectiva quanto racional, um pré-sentimento de acordo com o qual não é possível ver o mundo senão em termos de superioridade e inferioridade, melhor e pior, elevação e baixeza.
Isto significa também que esta dicotomia não é nem um simples instrumento prático de análise empírica, nem um esquema de entendimento deduzido por um logos desafectado, grau zero do conhecimento, anterior à sua existência aplicada. A divisão entre forma e matéria é, por certo, metafísica, e apresentada como regente da Ordem do mundo e permitindo o seu real entendimento.[9] Mas aquilo que permite esta divisão é meta até a esta metafísica. Trata-se da possibilidade de leitura do, e acção no, mundo. A dicotomia aristotélica é, numa palavra, ontoepistémica.[10]
Por outras palavras, mesmo se Aristóteles apresenta a sua metafísica como primeiro passo da leitura do mundo, o dualismo está-lhe pressuposto, inclusivamente sob a forma de uma ininterrogável imagem do pensamento e das suas simpatias.[11] A metafísica aristotélica é apenas uma das manifestações desta dicotomia assimétrica, hierarquizada. É-o também a sua física, a divisão radical entre o mundo supra-lunar do éter e do movimento constante das esferas celestes e o mundo sublunar onde os elementos estão vulneráveis à transformação e degeneração, onde tudo muda e nada se mantém. E é-o também a separação do corpo e da alma, assim como o ser e não-ser, e a vida e não-vida. Escreve na Geração:
Assim, das coisas existentes, umas são eternas e divinas, outras admitem o ser e o não ser. O belo e o divino são sempre, pela sua natureza, a causa do que é melhor, nas coisas que o admitem. Por seu lado, o que não é eterno admite o ser e o não ser e participa do pior e do melhor. Melhor é a alma do que o corpo, aquilo que tem alma melhor do que o que a não tem, em função da própria alma; ser é melhor do que não ser, viver melhor do que não viver. (Aristóteles 2021, 107)[12]
É precisamente este dualismo que vai justificar, explicar e dar razão à existência da geração animal, e à própria existência do/s sexo/s. Antes de avançar, é preciso olhar para como é aqui parcialmente estipulada a natureza da natureza. Mais uma vez, encontramos aqui a dicotomia ontoepistémica. A natureza aristotélica segue dois princípios, o daquilo que é melhor, e o daquilo que é necessário. A natureza tende para aquilo que é melhor, tem uma propensão — descrita de forma bem agencial — para o lado superior da dicotomia ontoepistémica. O que é melhor, indica a passagem anterior, é então o eterno e o divino, em contraste com o que aceita existência e não-existência (o caduco, o mortal, o corruptível, o que conhece limite material). A alma, melhor que o corpo. O vivo, que o não vivo. O que a natureza tenta emular é esse tipo de eternidade que tão bem caracteriza o mundo das formas — essa projecção de «suficiência divina através do espaço» (Bataille 1985, 172-173).
O necessário, por outro lado, é consequência da concretização material da forma, a maneira como o mundo se constitui como obstáculo à existência das ideias por si só. O reino da necessidade é, na sua formulação mais abstracta, o da impossibilidade das coisas serem diferentes do que são. Esta forma de necessidade, complementar e oposta ao que é melhor, e anulando dessa forma a potência da contingência a que se poderia chamar impossibilidade, é um dos traços centrais da ontoepisteme aristotélica e do princípio de mesmidade que rege este mundo.
No que toca ao animal, o necessário constitui a razão da espécie. Aristóteles continua a passagem anterior:
É por estas causas que a geração dos animais se dá. Porque como é impossível que a natureza deste tipo de seres seja eterna, aquilo que nasce é eterno da única forma que lhe é possível. Assim, é-lhe impossível ser eterno enquanto indivíduo (…). Mas é-lhe possível enquanto espécie. Eis porque existe sempre uma classe de homens, outra de animais e outra de plantas. (Aristóteles 2021, 107-108)
Se, pela sua natureza particular, os animais por si mesmos não podem ser eternos, podem-no ao menos no sentido em que passam algo essencial de si à sua prole, à sua descendência. A espécie transforma-se no locus de semelhança, de continuidade e Mesmidade. Mas também a forma de escapar à morte, poder ter algo do m’eu-Ser que pode subsistir sob a forma, ou na forma, da espécie.
A espécie constitui então a única possibilidade de eternidade do indivíduo. A reprodução, o mecanismo pelo qual essa eternidade se pratica. O binómio interdependente espécie-reprodução estabelece a existência da Ordem viva; sem ele, não haveria plantas, animais ou homens — a concretização possível d’O Homem.
Eis então o que constitui a causa final da constituição da produção de um novo ser: a reprodução do anterior, a eternidade possível de um ser a quem a eternidade individual é por natureza necessariamente negada. É preciso, contudo, dar conta também das causas material e formal desta nova vida. E de facto, dado que a forma, ao contrário da matéria, não muta nem se transforma, entender a causa formal de uma nova vida é perceber exactamente qual é a essência do indivíduo que existe para além deste, ou seja, aquela a que é permitido uma forma de eternidade atemporal e a-espacial. A reprodução, por outras palavras, é a manutenção da forma de vida.
§ Ferramenta de reprodução — a Fêmea
Seguindo o inquérito das quatro causas, Aristóteles determina que, para a criação de um novo ser, de uma nova vida, é necessário que se conjuguem a forma e a matéria. Porque, no reino do necessário, a natureza se rege pelo melhor possível, aquilo que se deve observar nos animais mais elevados — os homens — é um mecanismo pelo qual a forma se mantenha o mais separada possível da baixeza do mundo material. É preferível que a origem da forma que orienta a formação de um novo ser seja diferente da matéria que o constituirá.
Esta é a razão da existência da fêmea. Para Aristóteles, na gestação de um novo ser, o macho contribui com a forma, e a fêmea com a matéria. A razão da existência da fêmea, a sua finalidade, é que o macho possa contribuir com a forma sem que esta venha a ser maculada pela matéria que a fêmea fornece.
E sendo a causa do primeiro movimento por natureza melhor e mais divina do que a matéria – pois nela reside a definição e a forma –, é também melhor que o superior se separe do inferior. É por isso que, sempre que possível e na medida do possível, o macho estará separado da fêmea. Pois para os seres gerados, o primeiro princípio do movimento é do macho, e é melhor e mais divino, enquanto a fêmea é matéria. (Aristóteles 2021, 108)
Uma inversão parece já ter ocorrido: a fêmea é secundária na geração de um novo ser, e existe não porque é necessária, mas porque é vantajosa para o papel activo do macho. Se, face a um corpo gestante e imediatamente reprodutor, se poderia perguntar qual exactamente o papel do macho, a transmissão da forma por este põe em causa a necessidade da existência da fêmea. O papel do macho na reprodução, o seu princípio, é activo; o da fêmea, passivo. A dicotomia não larga a mão.
No primeiro livro da Geração, encontra-se ainda a seguinte passagem:
Macho e fêmea diferem, por definição, por terem funções separadas, mas também pela percepção de certas partes; quanto ao que a razão apura, por o macho dispor da qualidade distintiva de gerar noutro, como acabámos de dizer, e a fêmea em si mesma, é portanto dela que provém o ser engendrado existe no gerador. Mas visto serem diferenciados por uma faculdade e pela sua função, e visto que para toda e qualquer função são precisos instrumentos, e visto que as partes do corpo são os instrumentos que servem as faculdades, certas partes devem então existir para a união e a procriação. E estas devem ser diferentes, de tal forma que o macho difere da fêmea. (Aristóteles 2021, 52-53)
Outra inversão à lógica empírica: a divisão dos sexos, segundo Aristóteles, é consequência da sua metafísica, e o dualismo essencial entre forma e matéria aparece como causa desta divisão, e não como hipótese da sua explicação. Posto de outra forma, a divisão essencializada dos sexos de Aristóteles, ou seja, o seu cis-sexismo, não resulta da observação empírica. Antes, a sua existência no mundo natural é determinada por princípios metafísicos, e só posteriormente verificada por observação. Passo a passo, o que é determinado primeiramente em Aristóteles é a) a divisão metafísica entre forma e matéria, b) que a geração de um novo ser depende do encontro da transmissão de uma forma e do fornecimento da matéria, c) que a melhor forma de este encontro se dar é estes dois elementos virem separadamente, para que a forma se possa manter o mais imaculada possível, d) que, havendo dois elementos diferentes, a sua transmissão requer duas funções diferentes, o que por sua vez requer dois instrumentos diferentes. É agora, e só agora, que a dualidade dos sexos é estabelecida. Porque só agora é que a observação dos sexos, com os seus órgãos sexuais como diferentes instrumentos para diferentes funções — essa diferença dada «pela percepção de certas partes» — é feita binária e correspondente à divisão entre forma e matéria. Segundo o raciocínio de Aristóteles, o cis-sexismo é uma consequência directa da divisão metafísica entre forma e matéria, mas só possível de ser verificada post-hoc. Este ponto é de extrema relevância porque a lógica de Aristóteles se distingue de várias outras formas de formulação e justificação das sociedades patriarcais que tomam a diferença sexual como ponto de partida objectivo. Para Aristóteles, em contraste, a essencialização da divisão sexual é uma consequência metafísica, e não algo que pode ser dado por adquirido por observação empírica. De facto, se esta divisão existe, segundo o filósofo, de forma mais clara e definida no ser humano do que noutros animais, é porque é no ser humano que a natureza melhor aperfeiçoou os seus mecanismos de reprodução.
Se a divisão entre a passagem de matéria e a da forma, pode, então, ser logicamente deduzida a partir dos princípios metafísicos que Aristóteles atribui à natureza, a sua correspondência ao macho e à fêmea é verificada empiricamente, a posteriori. O macho e a fêmea correspondem a uma divisão essencial à ordem do ser, mas não a são. São antes a concretização possível — ou seja, a materialização — dessa divisão fulcral.
§ O Princípio da Mesmidade
A reprodução — e o seu complemento necessário, a espécie — não são então um objecto menor ou secundário da investigação aristotélica, mas um mecanismo fundamental que articula a possibilidade da permanência ou continuidade da forma no mundo da degeneração, corrupção e descontinuidade. Na esfera da vida, a reprodução é para Aristóteles o mecanismo que mantém a Ordem.
Uma formulação possível desta cosmovisão é dizer que opera de forma central, em Aristóteles, o Princípio da Mesmidade: que o mesmo produz o seu igual. É esta a regra fundamental da vida — e de facto, de tudo o que existe — que suporta a possibilidade da sua análise e da sua compreensão. A pressuposição mais profunda de Aristóteles é a da rigidez da Ordem enquanto continuidade possível daquilo que é igual a si mesmo. Não os infinitos princípios de Anaxágoras. Menos ainda o «conflito de opostos» do «fogo perpétuo» de Heráclito; não o seu rio que corre sem nunca ser igual a si mesmo — panta rhei, panta chorei. A Natureza tem por regra e lei a finitude e a finalidade. Crê na extensão e não vive sem propósito. O necessário e o melhor. É este o contorno final da reprodução tal como entendida por Aristóteles, e a tradução possível, para o mundo sublunar, terrestre, da eternidade atemporal e a-espacial das formas.[13]
O que Aristóteles arquitectou não foi só uma teoria da eternidade do Homem, mas a sua possibilidade prática.
§ Mulher: custo da propriedade, da essência, da eternidade
O custo desta eternidade é simples: remeter a mulher à matéria, ao terrestre, ao plano inferior, à baixeza. Fazer da mulher o espaço da maculação material pela qual a alma, a forma, tem, por necessidade, de passar. Condenar a mulher ao papel submisso da gestação das condições para a continuação da essência do homem, ou seja, do corpo. Fazer equivaler a mulher à mulher qua fêmea. Criar um sistema assimétrico e hierárquico em que a mulher ocupa na continuação da essência um lugar suplementar e, apesar de crucial, secundário. E, assim, reservar aos homens uma existência que pode ir para além de si, a possibilidade de ser para lá do seu corpo, de ser completamente, de Ser — não só macho, mas Homem.
Esta é a essência destilada da lógica clássica do patriarcado ocidental: que é pela linhagem paternal que se passa a própria essência. Ou seja, é do Homem a lógica da herança, e seu o direito à forma, ou seja, em ambos os sentidos, é seu o direito à propriedade.
Por um lado, é então possível reconhecer as bases patriarcais do aristotelismo, mesmo que elas sejam apresentadas como deduções de uma metafísica estabelecida a priori. Por outro, é também possível reconhecer algo de Aristóteles essencial ao Patriarcado que ainda hoje nos permeia: o seu desejo pela essência eterna e auto-contida, auto-suficiente. É este, afinal, o sonho molhado do Patriarcado.
A primeira imagem deste sonho é a de um mundo em que o homem não precisa de fêmeas para se reproduzir. Em que as mulheres são desnecessárias. Um mundo da partenogénese da essência. Mas o desejo mais profundo do Homem não é a auto-suficiência na reprodução. É a não necessidade da reprodução. Isso, sim, seria o melhor. Este é o desejo de um Homem de total soberania. O Homem completo, que não precisa de nada ou ninguém. Suficiente em si e Mestre do mundo. O Homem da alma — essa que é «a mais obstinada, a mais poderosa dessas utopias através das quais apagamos a triste topologia do corpo» (Foucault 2006, 230). O Homem da absoluta suficiência. É, portanto, o Homem que não precisaria sequer de se reproduzir, de se fazer de novo, porque seria eterno, infinito, inacabável, imorrível. Que não precisaria de nada para além de Si.
O Patriarcado é a constante batalha pela eternidade do Homem. Por um Homem sem tempo ou extensão. Um Homem sem corpo. Um Homem sem fim.
O Patriarcado é o Homem a tentar ser Deus.
§ Da Existência da Mulher
Na sequência de estabelecer o princípio masculino como o princípio activo e superior da reprodução, uma das questões essenciais colocadas por Aristóteles é a da razão da existência da fêmea. Seguindo a sua lógica causal, o filósofo natural apresenta a questão como dupla:
Mas porque é que um ser se forma e é fêmea ou é macho, como é que os sexos resultam da necessidade e da primeira causa eficiente, isto é, de que primeiro motor e de qual matéria (…). Se é em função do que é melhor e da causa final, então tem origem em algo superior. (Aristóteles 2021, 107; itálicos meus)
A segunda destas formulações prende-se com a causa final, i.e., a finalidade e propósito da fêmea. A resposta a esta pergunta já a encontrámos. A causa final é a passagem da forma, ou seja, é o papel não de somenos importância mas ainda assim inferior que a fêmea tem ao permitir a separação da matéria e da forma prévia à gestação. A fêmea existe porque é melhor que assim o seja (e o princípio da tendência para a perfeição é uma consequência directa de uma natureza marcada pela finalidade, pelo telos).
Resta-nos a primeira questão, saber a razão pela qual é necessário que, no terreno material, a fêmea seja criada. Qual é o funcionamento da gestação natural que torna inevitável que, em vez de um macho, venha uma fêmea ao mundo.
Entendê-lo, contudo, é entender o que, para Aristóteles, significa monstruosidade.
§ De-forma-ção
Parte da literatura grega antiga mostra a natureza como um espaço de desordem e caos. O espaço do selvagem, descontrolado, fora da cidade e do espaço da ordem civil. Havia portanto uma associação directa entre natureza e monstruosidade, servindo os espaços selvagens como incubadoras de monstruosidades.[14] A distância do cívico, do próprio, do Homem, marcava as formas de disrupção de um mundo ao mesmo tempo estranho, curioso, e abjecto. O término monstruoso é então pertinente para referir não só singularidades ou anomalias esporádicas — orgânicas ou inorgânicas —, mas também espécies monstruosas e, de forma marcante, raças monstruosas, um epíteto e entendimento da diferença racial e corporal que sobreviverá pelo menos um milénio e meio, até as estruturas económicas dos séculos XVII e XVIII precisarem de reajustar as suas taxonomias humanas para o desenvolvimento do capitalismo racial.[15]
Além disso, esta concepção da monstruosidade como materialização e incarnação da desordem, o monstro como a desordem feita carne, era com frequência aplicável não só ao espaço selvagem, mas ao selvagem dentro do cívico. O corpo da criança ou do feto monstruosos era ele próprio lido como um momento dessa disrupção que era simultaneamente natural e moral. Segundo aquela que se transformou também numa tradição milenar, o nascimento ou aparição monstruosos era o nódulo de uma quebra da lei natural e da lei moral.[16] O corpo monstruoso vinha ao mundo investido de textualidade. Compreendê-lo era descobrir que forma de coito impróprio, imaginação perversa, ou acto infame tinha resultado em tal anormalidade. O corpo monstruoso passou a ser, por mais de um milénio, o objecto de uma tradição específica de exegese.[17] Investido do poder da disrupção, da revelação e do presságio, o termo monstro vem ele mesmo do latim moneō, o verbo para mostrar, avisar, admoestar.
Nada disto parece confirmar-se no caso de Aristóteles. No seu mundo, a natureza é uma força em si mesma ordeira, uma força que não só respeita uma ordem, mas inclusive faz respeitar uma ordem. E o espaço da vida, como já vimos, é o espaço onde essa ordem existe, e é mantida, sob as formas das espécies. O projecto aristotélico para a monstruosidade é, então, retirar completamente ao corpo monstruoso este locus de caos que é ao mesmo tempo o seu fado e a sua potência.
Segundo Aristóteles, a monstruosidade é uma mera questão de mal-formação. Ainda assim, e apesar deste re-enquadramento, não deixa de ser também uma de má formação.
O Livro IV da Geração é dedicado à monstruosidade e aos nascimentos anormais. A questão é, logo à partida, enquadrada como parte de um espectro de desvios causados por falhas materiais na concepção e gestação do ser, na materialização da forma. Para Aristóteles, a monstruosidade é um desvio da forma. A monstruosidade reconhecível qua monstruosidade é um grau intenso desse desvio, mas não diferente em natureza de qualquer outra variação.
Há então, logo à partida, uma relação fundamental entre a fêmea e a monstruosidade. Qualquer materialização da forma, dada a sua própria natureza, tem de resultar num seu desvio. A mulher, ao fornecer a matéria, aliás, ao ser por definição o fornecimento da matéria, é o espaço, se não mesmo a causa, de tal desvio. Isto é o que ocorre na maioria dos casos monstruosos, em que o desvio ocorre no ventre da mulher e pelo seu desenvolvimento material da forma. Há outros casos, em que Aristóteles justifica o desvio com a deficiência da semente masculina. Mas mesmo nos casos em que o defeito se encontra no macho, a falha pertence por essência à esfera da fêmea, porque é do reino do material. Eis a primeira relação da mulher face à monstruosidade: é sua razão.
Mas a relação é dupla, e mais funda. O macho dá a forma. A forma dada é a forma do macho. Isto quer dizer, de acordo com o Princípio da Mesmidade, que qualquer dessemelhança com o progenitor masculino, o pai, é já em si um desvio. De uma forma geral, tudo o que é diferença da semelhança paterna é uma denúncia de como o mundo material, necessário, coíbe a forma.
E isto quer ainda dizer que é preciso uma razão para que uma fêmea, dessemelhante do macho, nasça. Um ser nasce, por defeito, macho — a fruição da forma passada pela semente. Pelo contrário, é necessário algo que explique porque é que um ser nasceu fêmea.
Escreve Aristóteles dos nascimentos que erram:
De facto, quem não se parece com os seus progenitores já é, de certa forma, uma monstruosidade, porque a natureza, nesse caso, se desviou até um certo ponto do tipo. O primeiro desvio, de facto, é o progénito ser uma fêmea e não um macho. (Aristóteles 2021, 221)
A mulher é desde logo uma quebra do ideal, um desvio da forma.
A mulher é uma de-forma-ção; a primeira monstruosidade.
§ Monstruosidade necessária
A mulher faz então parte desse longo espectro do errar da forma. Deste «primeiro desvio» resulta, contudo, um tipo muito específico de monstruosidade: trata-se de uma monstruosidade necessária. Das monstruosidades do mundo, esta não é anti-natural, não vai contra os caminhos do mundo. A monstruosidade necessária distingue-se, singularmente, de todas as monstruosidades desnecessárias, contingentes, não pelo seu processo, causa material ou causa motora, mas pela sua finalidade, o seu telos.
Alguma da literatura feminista que se debruçou sobre a Geração como obra primordial do pensamento patriarcal ocidental parece não ter dado atenção suficiente a este factor.[18] E a crítica a esta literatura tem insistido precisamente nele para defender a posição (a roçar o absurdo) de que o pensamento clássico não é fundamentalmente patriarcal. Um certo apego tradicionalista — e, para todos os efeitos, conservador — à figura de um dos Pais da Filosofia, tem episodicamente tentado resguardar a teoria aristotélica de uma crítica anti-patriarcal com base na ideia de que, «apesar de ser um homem do seu tempo, e do sexismo que o marca», Aristóteles «dava à mulher um papel fundamental na reprodução».[19] A ideia de que conceber a mulher como necessária à gestação animal demonstra uma posição não-patriarcal é em igual medida absurda e hilariante, tão trágica quanto cómica. Seria, aliás, de questionar o que é um patriarcado que não reconhece esse mesmo papel. Que patriarcado estrutural conhecemos que é incapaz de reconhecer a importância e necessidade da mulher qua fêmea para a continuação patrilinear e a re-produção da lei fálica? Que o reconheça, note-se, não significa que não o deseje, ou seja, que não inveje esse papel, ou não deseje a obsolescência das mulheres, a sua inutilidade e, em última análise, a sua extinção. Tudo isto, aliás, encontramos em Aristóteles.
O que é importante reiterar, face a estas análises, é precisamente essa natureza da necessidade da mulher: a mulher necessária é a mulher qua fêmea. Convém não negligenciar a questão, visto que os seus termos não são inócuos, e a relação entre mulher, fêmea, e feminilidade continua presente como uma das questões centrais dos vários feminismos. É antes necessário inverter os seus termos e perguntar se a associação da mulher com a sua função necessária para a reprodução não é, precisamente, uma das articulações cruciais à lógica patriarcal ocidental.
A marca patriarcal e cissexista na obra de Aristóteles, e o seu cunho, que se estende até hoje, nas teorias das vidas natural e social, não se prende com a inutilidade da mulher mas, pelo contrário, com a sua utilidade, com a sua necessidade. Mulher qua fêmea. Mulher, encarnação da imperfeição inevitável. Mulher, sinédoque da matéria. Mulher, custo da eternidade da forma.
§ De-monstração
Monstro, esse nome da contingência para lá de si própria — da diferença —, carrega em si o peso abominável do augúrio, mas também o seu poder e a sua potência. A monstruosidade, entre tantas outras coisas, é a expressão possível da diferença impossível. A força que trespassa e transborda o corpo monstruoso é a ameaça e o arauto da quebra da Ordem que Aristóteles tanto estima. A monstruosidade é a diferença que corta a corpo para libertar a carne. E é uma força antagonística ao Princípio da Mesmidade, ao Princípio da Identidade, e precisamente aquilo que este tenta manter à distância.
Derrida disse uma vez que «Os monstros não podem ser anunciados. Não se pode dizer: “Aqui estão os nossos monstros,” sem imediatamente fazer deles animais domésticos» (Derrida 1990, 80).
Há porém algo mais violento para a monstruosidade que o anúncio: a demonstração. Demonstração partilha a sua raiz etimológica com monstro. Por um lado, moneō como mostrar mas também como augúrio e prenúncio. Por outro, o prefixo de- pode significar acerca de, a respeito de ou sobre — como, por exemplo, em delimitar, definir ou mesmo De Generatione Animalium. Mas o mesmo prefixo pode significar um aparente oposto: remoção, reversão, ou simplesmente extracção.
Monstro, contudo, é precisamente o lugar onde esta distinção, como tantas outras, deixa de fazer sentido. Porque a monstruosidade é precisamente o lugar onde falar sobre ou acerca de é destruir, desfazer, remover e extrair. No que toca aos monstros, demonstrar significa produzir uma transparência explicativa que se desfaz da opacidade potenciante do que não se pode agarrar, ler ou dominar. Demonstrar é remover a monstruosidade. De-monstração.
A teoria da vida de Aristóteles não exclui monstros. Pelo contrário, expulsa a sua monstruosidade pela sua inclusão. Na sua intenta ubiquidade, ou mesmo universalidade, os princípios demonstrativos de Aristóteles articulam uma e outra vez a ausência de um espaço epistemológico que escape à razão proto-ocidental, assim como a impossibilidade ontológica da diferença em si mesma. Tudo é igual a si mesmo; toda a geração é re-produção; e onde a matéria falha o ideal, a Ordem do cosmos, da vida, da natureza, suplementa aquilo que diz constituir. Até a própria curiosidade aristotélica, essa que aparece inicialmente como uma relação amorosa com a multiplicidade do mundo, reemerge, perversa, como o esforço colonial e englobante do domínio da diversidade. Ler Aristóteles é encontrar o familiar esforço desencantado da maestria.
A Geração é uma teoria dócil, uma que domestica monstros pela sua explicação de acordo com uma filosofia natural e um entendimento do mundo marcados pela Ordem — enquanto organização e enquanto imperativo — da mesmidade. Esta é uma teoria de monstros sem monstruosidade.
§ Bichos de merda
Mas a monstruosidade volta sempre. Está lá sempre.
Porque a monstruosidade é o excesso e a falha, o demais e o insuficiente, aquilo que qualquer de-monstração necessariamente re-inaugura sob novas formas (e matérias). A monstruosidade é a constante ameaça e promessa do caosmos.
Dizer que a sua teoria da vida é uma de monstros sem monstruosidade não é o mesmo que dizer que não há monstruosidade em Aristóteles. Antes, o momento no qual a monstruosidade surge mais intensamente, mais æfectivamente, não é aquele em que os monstros são anunciados. Toda a Geração é dedicada às diferentes maneiras pelas quais os princípios masculinos e femininos interagem e à sua consagração como premissa de toda a geração animal. Mas logo no início da obra, no seu primeiro parágrafo substancial, Aristóteles vê-se na necessidade de lidar com — e de compartimentar — aquilo que é uma excepção óbvia a esta premissa, uma excepção que é no seu tempo bem conhecida e bem estabelecida: que há certas criaturas que «se geram não por acasalamento», mas antes «a partir de solos putrefactos e excrementos» (Aristóteles 2021, 48).
O que Aristóteles escreve sobre a reprodução e geração destes seres não é simples, e a sua complexidade denuncia também a sua impotência e ansiedade:
(…) aqueles que nascem da cópula de seres da mesma espécie geram, eles mesmos, outros da mesma espécie. Mas os que nascem não de animais, mas de matéria putrefacta, esses geram também, mas seres de outro tipo, que não são nem fêmea nem macho. É o que acontece com alguns insectos. E tem lógica que assim seja; porque, se seres que não nascem de animais gerassem por cópula, a sua progenitura teria de ser ou semelhante a si ou diferente. Se estes lhes fossem semelhantes em espécie, então também a geração dos seus progenitores desde o princípio teria de lhes ser semelhante (é isso o que consideramos lógico, porque é evidente que o mesmo se passa com os outros animais). Em contrapartida, se o produto gerado, mesmo sendo diferente, fosse capaz de realizar a cópula, dele havia de gerar-se outro de uma natureza diferente, e deste um de uma outra natureza, e assim sucessivamente até ao infinito. Ora a natureza foge do infinito, porque o que é infinito não tem fim e a natureza sempre procura uma finalidade. (Aristóteles 2021, 49).
O que perturba Aristóteles não é que estes seres não sejam o produto de reprodução sexuada. A sua existência, em si mesma, não é inquietante. O que aflige o filósofo natural é a possibilidade de estas criaturas escatogénicas se reproduzirem sexualmente. A certeza que Aristóteles precisa de estabelecer é a de que estas criaturas não fazem parte da economia sexual, não têm sexos ou sexo. Permitir-lhes geração e multiplicação é dar espaço no mundo a seres que diferem dos seus progenitores em natureza — porque diferem em causa-origem, na maneira como vieram a ser. Permitir esta geração sexuada — a geração geracional — é permitir quebrar a regra da espécie na medida em que um novo ser surgiria do anterior. E nada proíbe que isso aconteça de novo com a terceira geração. E por aí em diante. Infinitamente. Diferencialmente.
Se as criaturas nascidas do excremento fossem sexuadas, e pudessem portanto ter progenitura diferente em origem, isto significaria que seriam também diferentes em essência. O que Aristóteles se dedica a de-monstrar é então que estes seres tem de ser completamente «de outro tipo». Porque o que não pode permitir, o que deve pré-excluir, é a existência não de seres deformados, mas de seres deformantes. Aristóteles não pode permitir que a de-generação, e não apenas a reprodução, sejam uma forma de geração animal.
Nestas criaturas que emergem do excremento, nestxs bichxs escatogénicxs, desdobra-se a inquietude central à estrutura analítica aristotélica, e ao correspondente entendimento cissexual do mundo. Por um lado, a consequência da possibilidade desta geração não re-produtiva, desta de-generação, é uma essência que difere e erra. Nas suas múltiplas de-gerações, a forma dxs bichxs muta e metamorfoseia-se. Xs bichxs trans*-formam-se.
Mas o que é isto se não a quebra total com a dicotomia ontoepistémica aristotélica? A impossibilidade — ou mesmo só a dificuldade! — do eterno da forma é a dissolução da sua separação absoluta da matéria. A forma maculada não é mais forma. Não se verifica mais um dos pressupostos essenciais do entendimento aristotélico do mundo.
Por outro lado, não é só o binómio assimétrico que é posto em causa. As monstruosidades necessárias e contingentes abordadas no Livro IV são domesticáveis por Aristóteles por serem finitas. As contingentes são finitas porque, mesmo no seu desvio material, a forma dos seus progenitores se mantém, e como tal a sua progenitura retorna, por obra dessa cuidadosa natureza, à linha da espécie, à linhagem específica.[20] Por seu lado, as necessárias são finitas porque têm uma finalidade — existem, aliás, à conta dessa finalidade. E ambas são finitas no sentido em que não transbordam descontroladamente a ordem natural.
O mesmo não é verdade com os merdáceos. Se a sua progenitura lhes fosse dessemelhante, diferente, «dele havia de gerar-se outro de uma natureza diferente, e deste um de uma outra natureza, e assim sucessivamente até ao infinito. Ora a natureza foge do infinito, porque o que é infinito não tem fim e a natureza sempre procura uma finalidade» (ibid.; itálicos meus). Uma natureza infinita: sem fim e sem finalidade. No momento em que a causa formal é posta em causa, o mesmo ocorre com a causa final.
Com os seus princípios metafísicos, cai por terra o patriarcado. (E veja-se onde!) O papel do macho já não é essencial. A Ordem não se sustem mais. A Mesmidade não se reencontra. A espécie deixa de funcionar como unidade de semelhança. A linhagem, a propriedade da similitude, a propriedade tida e herdada, a continuidade familiar, até mesmo a soberania — tudo isto deixa de pertencer ao homem por defeito.
O momento em que se permite a possibilidade destas criaturas, de criaturas que geram sem se re-produzir, que trespassam e transbordam as essências do mundo, é o momento em que se encontra a diferença na extensão do mundo. Ou, como escreveu Fanon, é «o verdadeiro salto [que] consiste em introduzir a invenção na existência» (Fanon 2017, 227).
§ analidade
A Geração dos Animais traduz os princípios metafísicos de Aristóteles para uma filosofia natural que simultaneamente justifica e é justificada por um essencialismo patriarcal. Nesta obra, a dicotomia ontoepistémica aristotélica, nomeadamente a fundamental divisão entre forma e matéria, é reencontrada e reiterada sob a forma de sexo. O sexo, por sua vez, toma o papel de uma articulação e identificação fundamental de elementos aparentemente distintos: a divisão dos princípios reprodutivos é tomada como sinónimo da dualização dos órgãos genitais; daí, estes são feitos corresponder a órgãos sexuais, que, por sua vez, passam a equivaler à prática do acto sexual; por fim, o acto sexual passa a ser homólogo à reprodução sexuada. Por outras palavras, em Aristóteles, o sexo é articulado de tal forma que passam a ser indistintos o dualismo genital, a correspondência do genital ao sexual (uma indistinção ainda hoje vigente[21]), a prática sexual e o acto reprodutivo. Não é possível, de acordo com a natureza aristotélica, que a genitália não desempenhe um papel sexual, e que o sexo não desempenhe um papel reprodutivo. Como nos é familiar, a equivalência destas funções, juntamente com a sua sinonimização ao género, fundamenta os propósitos da estrutura patriarcal.
A lógica ansiosa da preclusão dos bichos escatogénicos da economia sexual torna isto bem claro. A possibilidade de estas criaturas serem marcadas genitalmente é, sem mediação, a possibilidade do seu encontro sexual e a possibilidade da sua re-produção. Mas os bichos parecem perturbar a economia sexual aristotélica de uma forma ainda mais radical: para o foro da geração, os bichos escatogénicos trazem a analidade.
Numa obra marcada pela dualização genital, criaturas que nascem do excremento forçam a consideração do ânus como órgão genital, ou seja, como órgão generativo, que gera. Dito de outra forma, os bichos escatogénicos, essa forma de monstruosidade que Aristóteles se sente na necessidade de excluir antes sequer de expor e explicar os princípios da sua obra, essxs bichxs que Aristóteles tem de empurrar para as margens do conhecimento fálico que se propõe a produzir, são precisamente as criaturas que apresentam a possibilidade de uma geração não reprodutiva.
Fazem-no, ademais, por uma associação histórica e conceitualmente herética: o encontrar de uma energia vital, desejante, onde o prazer pode ser encontrado junto ao, ou mesmo no, inútil e abjecto. O excremento que já não serve de nada, que não serve merda nenhuma, o excesso sem propósito, o nojento a ser expelido, a defecação como expulsão e acto canónico de abjecção.[22]
Anterior ao pecado cristão, é comum uma imagem da Grécia Antiga como excepção ao preconceito face à homossexualidade entre homens.[23] No contexto das escolas filosóficas e de uma cultura homossocial, a pederastia era uma prática comum, não estigmatizada. A homossociabilidade, neste contexto da extensão póstuma do mestre-filósofo e, portanto, da reprodução e continuidade da linhagem epistemológica, faz também parte de uma lógica de mesmidade. A homossociabilidade grega é um instrumento central da continuação e contenção de um círculo hermenêutico.
O mesmo não pode ser dito, contudo, daquele que tira prazer de ser penetrado analmente. Não se trata simplesmente do que desempenha o papel de penetrado, mas do que deseja a penetração. Este, sob a figura do kinaidos, é com frequência caracterizado como «assustadoramente vergonhoso e miserável», não sabendo distinguir entre «os bons e os maus prazeres» (Plato 1999, 30-31) — como o caracteriza Sócrates. Os maus prazeres, claro, são também os maus conhecimentos — conhecer é sempre conhecer no sentido bíblico, e é sempre um acto moral.
Se a história do anal é, uma e outra vez, a da exclusão ou constituição patológica em relação ao escopo da sexualidade, da política moral e do conhecimento, não é de surpreender que criaturas que emergem do excremento constituam a visão distópica de uma geração degenerativa.
O cunho da ansiedade não é o pederasta. Não é o homossexual homossocial — ou homonormativo, dir-se-ia hoje. A ansiedade é a do ânus desejante e gerador, da bicha, do bicho.
§ A carne dxs bichxs de merda
O dualismo matéria-forma é indissociável do dualismo macho-fêmea, homem-mulher. A mesma assimetria hierárquica opera em ambos. Não por analogia, nem mesmo por atribuição à análise empírica de deduções a partir de princípios. Mas porque fazem parte dessa mesma matriz — para Aristóteles inevitável — de entendimento e formação do mundo. Um não antecede o outro: o conhecimento cissexual do mundo está na base do dualismo metafísico tanto quanto o segundo baseia o primeiro.
Também o patriarcado é indistinguível do cis-sexismo. Esta não é uma declaração menor, e muito menos tautológica: a existência dual de macho e fêmea, homem e mulher, é em Aristóteles equivalente à sua assimetria hierárquica. A divisão cissexual do mundo é, em essência, patriarcal.
Por fim, o princípio central organizador e regente desta dinâmica é o da mesmidade. Cis-sexismo, patriarcado e a própria metafísica aristotélica são fundamentalmente mecanismos pelos quais se tornam impossíveis diferenças que possam pôr em risco a Ordem do mundo.
Face ao Princípio da Mesmidade, toda a diferença é assimilada, explicada, de-monstrada. E quando a diferença sobrevive — e porque a diferença sobrevive sempre, porque a monstruosidade não só sobrevive à impossibilidade mas se alimenta e cresce dela — o espaço que lhe é destinado não é apenas o da excepção e da pré-exclusão. Não, a impossibilidade possível da diferença monstruosa tem de ser feita abjecta ao Homem, excluída do corpo orgão-nizado, literalmente expelida como excesso e defeito, como merda.
É difícil, insuportável, inevitável, lidar com essa «inquietude partilhada por todos [que] cresce e reverbera, dado que a cada passo, com uma espécie de náusea, os homens descobrem a sua solidão numa noite vazia». É compreensível que essa «noite universal na qual tudo se encontra» apareça como uma «ausência do ser». E é igualmente compreensível que diante a este vazio sem fim ou finalidade, uma filosofia natural surja «para dar a sua importância dramática ao ser e à vida». O etéreo face ao terreno, o superior face ao baixo, a alma face ao corpo, a vida face à não-vida. O que é a filosofia aristotélica se não a projecção dessa «suficiência divina através do espaço», como resultado da exigência de «que haja um “ser” no mundo, um “ser” e não apenas a insuficiência manifesta da natureza não-humana ou humana» e «como o reflexo de uma impotência, de uma doença do ser aceite servilmente» (Bataille 1985, 171-173).
Se a obra de Aristóteles se encontrou milenariamente como fundamental à scientia, filosofia e outras formas de conhecimento europeias é porque teve o mérito e a capacidade de codificar no seu centro excluído uma incapacidade que vive ainda hoje no coração do ocidente. É a inquietude de uma insuficiência profunda e inevitável. A inquietude não só de não ser homem suficiente, mas a impossibilidade de se Ser Homem. É a inquietude patriarcal de se ser “fêmea,” a inquietude branca de se ser animal, a inquietude capacitista de se ser deficiente, insuficiente.[24] É, por fim, a inquietude face ao cu como locus de desejo, como locus de vida, e da abjecção como movimento de-generativo.
Por mais dualismo ou Ordem,
Aristóteles era uma bicha inquieta.
a diferença monstruosa
sobre-vive na carne
bichxs de merda
[1] Quero agradecer ao Nasser Zakariya, pelo seu apoio constante, e por uma confiança que não conhece nem fim nem finalidade. Estou sempre e para sempre grata ao Simão Cortês e à Lake Elrod, sem as vozes e ouvidos das quais a escrita não seria possível. Quero também agradecer ao João Esteves da Silva, cujo cuidado, compromisso e sinceridade fizeram com que os processos de tradução e editorial fossem muito mais fáceis de navegar. Se é preciso reconhecer trabalho bem feito, é-o a dobrar quando se toma em conta a miséria das condições financeiras para o trabalho académico em portugal, e a quantidade de trabalho não-pago que é exigido a quem não tem cátedra.
But even a worm will turn.
[2] Bicha não tem tradução. Há palavras assim. A sua constelação semântica e a situacionalidade e particularidade do seu uso são inseparáveis. Mais, são-no porque foram entrelaçadas e cosidas pela intensidade dos afectos mobilizada a cada uso da palavra — a intensidade da violência e do júbilo, o uso entre nós ou contra nós. Entre a ofensa ouvida desde a infância e o vocativo terno e vulnerável das intimidades não-herdadas, bicha faz parte das ardilosas margens de uma gramática de resto feita para a tradução.
Talvez seja uma partida que a gramática binária pregou a si mesma, mas nunca ouvi bicha sem ouvir bicho. Faz parte do seu universo este sentido de criatura esquisita, entre o desconforto e a abjecção. A bicha tampouco encaixa na taxonomia animal. Eppur si muove.
Há ainda o x, essa intervenção cuir na linguagem que ao mesmo tempo exige uma consideração não determinada pelo género, pede que essa consideração vá para lá da assumida dicotomia (x não precisa de ser não-binário, mas não é binário), insiste na fricção necessária entre o excesso cuir e o (in)dizível, e marca a presença de todas estas difíceis condições por via de uma ausência que carregamos (o x que apaga, o x que corta).
Este ensaio faz uso do termo bichx num encontro destes elementos cuja silenciosa articulação nunca deixou de estar presente.
[3] Nem sempre sigo a tradução verbum ad verba. Onde fiz pequenas alterações, segui-me pelo original (Bataille 1970, 433-435).
[4] Comparar esta análise com Kullmann 1991.
[5] Ver «Introduction: Aristotle’s Philosophy and the Generation of Animals» in Falcon & Lefebvre 2018, pp. 1-11.
[6] Ver Aristotle 1998, 12-13.
[7] Aristóteles menciona, como referentes contra os quais se situa, que Tales entendia que a água estava na base de tudo, «que tudo dela vinha, enquanto ela própria se conservava»; que Anaxímenes e Diógenes consideravam antes «que o ar antecedia a água, e era especificamente o princípio dos corpos simples»; que Hipaso de Metaponto e Heráclito de Éfeso, por sua vez, pensavam que esta substância era o fogo; e que se Empédocles pôs ao lado destes a terra e considerou quatro elementos, Anaxágoras de Clazómenas «disse que o número de princípios era infinito» (Aristotle 1998, 12-14).
É crucial entender que a narrativa que justapõe estas teorias e equivalência é ela mesma marcadamente aristotélica. É parte do seu programa filosófico a compreensão de todos estes inquéritos como fazendo parte da esfera, por oposição ao mundo das ideias introduzido por Platão. Mesmo na sua descrição destas teorias é possível compreender que estes filósofos não entendiam estar simplesmente a substituir um elemento por outro(s), mas antes a propôr cosmologias e concepções do mundo radicalmente diferentes. O enquadramento de todos estes inquéritos materiais como sendo da mesma natureza é uma consequência da auto-demarcação aristotélica e um importante dispositivo discursivo que permite a radicalidade da sua reconceptualização. A concepção da forma só pode aparecer como inovação revolucionária pela contrastante homogeneização do pensamento pré-socrático (como aliás o faz, ainda hoje, o termo «pré-socrático») (Ver Aristotle 1998, 12-14).
[8] Ver Aristóteles 2021, 251-252. «No passado, os fisiólogos (…) não percebiam que existem várias causas, e consideravam apenas a causa material e a motora, e mesmo estas sem as distinguirem claramente. À causa formal e à final, porém, não prestavam atenção» (Aristóteles, 2021, 252).
[9] Ver Aristotle 1998, 3-39.
[10] Componho o termo a partir do conceito de Foucault de episteme como matriz das possibilidades de conhecimento de uma certa época e regime (ver Foucault 1982 e 2012), e da necessária relação entre epistemologia e a constituição do mundo que Denise Ferreira da Silva releva quando fala de ontoepistemologia (ou quando escreve que é preciso acabar com «o mundo como o conhecemos» (Silva 2014).
[11] Ver Deleuze 2001.
[12] Todas citações da Geração são da tradução de Sousa da Silva e Paiva (Aristóteles 2021). Em algumas citações a tradução foi alterada com base na tradução de Arthur Platt (Aristotle 2014).
[13] Vale a pena notar que este Princípio da Mesmidade, explícito no que toca à geração dos animais, encontra a sua formulação mais geral no Princípio da Identidade — ou seja, que 1=1. A diferença entre os dois é uma questão de possibilidade material. O ser que não pode ser apenas formal e portanto eterno, que tem de encontrar a continuidade por outro meio e se vê em mãos com a caducidade, precisa de se produzir a si mesmo de novo, de se re-produzir. No reino da vida natural, o Princípio da Mesmidade é o Princípio da Identidade possível.
[14] Ver Felton 2017.
[15] Sobre capitalismo racial ver Robinson 2000 e Silva 2007. Sobre a forma como a «raça monstruosa» sobrevive hoje sob novas metamorfoses, ver Davies 2016 e Seth 2010.
[16] Ver Huet 1993 e Canguilhem 2009
[17] Para casos em Portugal, ver Costa 2005.
[18] Ver Thomson 1996 e Freeland 1998.
[19] Ver a introdução de Sousa e Silva e Paiva à edição portuguesa da Geração (Aristóteles 2021, 18-26) e Connell 2016.
[20] A outra possibilidade explanada por Aristóteles, que não abordei aqui, é a da produção de monstruosidades contingentes que não têm a capacidade de se reproduzir. Este é o caso de nascimentos monstruosos que apresentam desvios intensos da forma. É também o caso dos seres híbridos que, pela ausência de forma própria, se podem unir mas nunca constituir espécie — Aristóteles usa o clássico exemplo da união de uma égua e um burro, a mula.
[21] Ver Preciado 2019.
[22] Veja-se a história do sexo anal, desde o acto herético que quebra a lei moral-natural, passando pelo desviante do onanismo que faz uso inútil (não-reprodutivo) do corpo, ao tipo social patológico marcado por uma falha no seu desenvolvimento — uma formulação semelhante à da teratologia do século XIX. (Ver Foucault 1999, Preciado 2019 e Halperin 2002.) Para uma abordagem inicial ao conceito de abjecção, ver Kristeva 2010.
[23] Antecipo aqui uma crítica de contextualização histórica a este argumento. Em relação a isto ver Richlin 1993, Boyarin 2009 e Halperin 2002.
[24] Ver Thomson 1996, Boisseron 2018 e Jackson 2020.
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