…a Man’s no Vase.
Samuel Butler, «The Metaphysical Sectarian»
Podemos, se quisermos, aplicar o conceito de restauro a objectos tão diferentes quanto quadros, edifícios, vasos e reputações. A possibilidade de restaurar a reputação de alguém, ou de usar o verbo ‘restaurar’ para descrever qualquer coisa que se faz à reputação de alguém, depende, contudo, de uma extensão do campo de aplicação do conceito de restauro por meio de uma analogia entre restaurar qualquer coisa, como um vaso, e corrigir qualquer coisa, como as opiniões que um determinado conjunto de pessoas tem a respeito de alguém em particular.
Dito de outra maneira, se é verdade que uma descrição da diferença entre restaurar quadros e restaurar vasos depende de uma descrição das diferenças que há entre quadros e vasos, mas não implica uma distinção entre dois tipos de actividade, isto é, entre dois sentidos do verbo ‘restaurar’, as diferenças que há entre quadros e vasos, por um lado, e reputações, por outro, implicam uma tal diferença.
O sucesso de uma analogia depende, evidentemente, de existirem semelhanças entre os objectos comparados, mas, porque o conjunto das semelhanças que existem entre dois objectos é limitado, depende também do reconhecimento de um limite ultrapassado o qual a analogia deixa de ser verdadeira. Interessa, por isso, saber em que é que a analogia entre restaurar e corrigir é útil e a partir de que ponto deixa de o ser, quais são os aspectos que justificam que possamos, se quisermos, falar de restauro quer a respeito de quadros, edifícios e vasos, quer a respeito de reputações, e quais os aspectos em que a analogia falha.
A expressão ‘uma reputação manchada’, que usamos para descrever uma má reputação, ajuda a perceber aquele que me parece ser o aspecto central da analogia. Podemos dizer que, se a relação que existe entre um vaso manchado e a mancha do vaso é semelhante à relação que existe entre uma reputação manchada e aquilo que mancha a reputação, ou a pessoa cuja reputação está em causa, então, se restaurar um vaso manchado significa remover as manchas que o vaso tem, restaurar a reputação de uma pessoa significa remover o que quer que seja que possa ser descrito como uma mancha na sua reputação.
A diferença entre vasos e reputações, neste caso, é equivalente à diferença que existe entre descrever e descrever como, isto é, entre uma descrição literal e uma descrição metafórica de qualquer coisa, neste caso de uma actividade ou processo, entendendo por ‘descrição metafórica’ um uso particular de uma descrição de uma actividade ou processo que, quando aplicada ao tipo de objectos habituais da actividade ou processo em causa, é literal: porque existe realmente uma mancha no vaso, a descrição ‘vaso manchado’ é uma descrição literal do vaso; a descrição ‘remover a mancha’ é uma descrição literal do que pretendemos fazer ao vaso quando o restaurarmos; e, porque nestas circunstâncias ‘remover a mancha’ e ‘restaurar’ são descrições equivalentes do que pretendemos fazer ao vaso, ‘restaurar o vaso’ é uma descrição literal do que lhe pretendemos fazer, mas o mesmo não pode ser dito a respeito de ‘remover a mancha’ e ‘restaurar’ quando o objecto das nossas acções é a reputação de alguém.
O que isto quer dizer é que os meios através dos quais removemos manchas a, e restauramos, vasos, e os meios através dos quais “removemos” “manchas” a, e “restauramos”, reputações são de natureza diferente, mas que existe qualquer coisa que permite uma identificação dos dois processos e dos meios empregues para a sua realização, e a descrição de um deles nos termos do outro. O que torna possível, e de resto natural, um tal procedimento é o facto de ambos os processos partilharem um só fim: podemos descrever o que fazemos a reputações como o que fazemos a vasos porque o fim que temos intenção de obter, através, mais uma vez, de meios de natureza diferente, é o mesmo, a saber, o de revelar a verdade. A verdade sobre o vaso é que a mancha que tem não faz parte da sua constituição original, pelo que removê-la, e restaurar o vaso, significa recuperar o vaso verdadeiro. De modo semelhante, “remover” o que quer que seja que “mancha” a reputação de uma pessoa, e “restaurar” a sua reputação, significa recuperar a reputação, e por extensão a pessoa, verdadeira.
Num certo sentido, a verdade sobre o vaso não é mais do que, como disse, uma descrição da constituição original do vaso, e remover a mancha significa revelar a verdade sobre o vaso porque significa eliminar um elemento que não pertence ao vaso tal como foi originalmente elaborado. Num segundo sentido, contudo, podemos dizer que a mancha pertence à verdade sobre o vaso, porque investigar a origem da mancha implica investigar a história do vaso. Neste sentido, e dependendo da importância da verdade que a investigação sobre a mancha revelar, a decisão razoável poderá ser a de preservar a mancha, como aliás fizeram, para usar um exemplo próximo, os responsáveis pelo restauro da Igreja de São Domingos, que preserva traços do incêndio que sofreu em 1954.
O mesmo não parece poder dizer-se a respeito do que se decide fazer com reputações manchadas: neste caso, preservar manchas que constituem falsidades sobre a reputação de uma pessoa parece uma decisão tão culposa quanto a de remover uma mancha que revela a verdade. É, de resto, verdade que, se o restauro de um vaso muda, quando não corre mal, o vaso para melhor, restaurar uma reputação pode significar mudá-la para pior, e aliás um restauro pode correr tanto melhor quanto pior for o resultado.
Parece, além disso, poder resultar da analogia entre restaurar vasos e restaurar reputações que devemos admitir que, tal como existem especialistas em restaurar vasos, isto é, pessoas com competências técnicas de grau de especialização variável a quem deve ser deixada exclusivamente a responsabilidade de restaurar vasos, existem também especialistas, e competências técnicas de grau de especialização variável, no restauro de reputações.
Dependendo do âmbito com que é usado o conceito de reputação, aceitar esta consequência pode dar lugar a uma posição razoável e a uma posição absurda e perigosa. A posição razoável resulta de se restringir o conceito de reputação ao conjunto de opiniões que existem a respeito de uma pessoa enquanto representante de uma actividade qualquer, ao passo que a posição absurda, e potencialmente perigosa, resulta de se tomar a reputação de uma pessoa como o conjunto das opiniões que sobre ela existem enquanto pessoa.
Assim, dado que as reputações, por exemplo, de Max Lorenz enquanto tenor e de Wilhelm Furtwängler enquanto compositor ou maestro são independentes das reputações de Lorenz e de Furtwängler enquanto pessoas; porque julgar Lorenz enquanto tenor e Furtwängler enquanto compositor ou maestro significa julgar aquilo que cada um deles foi capaz de fazer nas respectivas actividades; porque actividades como as que desempenharam dependem, em certa medida, de competências técnicas especializadas; e porque julgar o exercício de tais actividades depende, em certa medida, de um conhecimento técnico e especializado sobre o seu exercício, é razoável dizer que há pessoas a quem compete julgar a reputação de Lorenz enquanto tenor e a reputação de Furtwängler enquanto compositor ou maestro. Mais, é razoável dizer que os juízos de musicólogos, críticos e melómanos competentes deveriam ser indiferentes aos veredictos dos julgamentos a que Lorenz e Furtwängler foram sujeitos durante o processo de desnazificação da Alemanha.
Isto não é o mesmo que dizer que, se Lorenz e Furtwängler não tivessem sido ilibados, um crítico que se recusasse a julgar o seu trabalho não estaria a ser razoável, mas que seria irrazoável julgar de maneira diferente o trabalho de qualquer deles conforme o veredicto que recebesse. Nem é, aliás, dizer, o que é mais importante, que julgar as reputações de Lorenz e de Furtwängler enquanto pessoas deve ser por princípio independente de julgar o que fizeram enquanto músicos. Defender tanto seria confundir a verdade que há em dizer que aquilo que se faz em palco, com a voz ou com a batuta, não é, geralmente, e em princípio, isto é, à partida, qualificável como uma prática Nazi, com a ideia falsa de que não o é por princípio, isto é, independentemente das circunstâncias.
O máximo que podemos dizer é que fazer coisas como cantar árias, dirigir orquestras ou moldar vasos, se não são imunes, porque nenhuma actividade o é, a descrições morais, isto é, a descrições que incluam as noções de bem e de mal, de mérito e de culpa, é contudo verdade que cantar árias, dirigir orquestras e moldar vasos são actividades que não só não associamos habitualmente a actividades culposas, mas que tendemos a julgar, quando praticadas com competência, meritórias. E meritórias, aliás, não apenas no sentido em que revelar mérito depende de revelar competência em coisas difíceis, o que significa atribuir mérito ao agente mas não necessariamente ao que faz, mas no sentido em que aquilo que é feito é meritório por significar fazer bem a, ou por, terceiros.
O ponto, que deveria ser trivial, é que é possível ter mérito no primeiro sentido e culpa no segundo, dado que qualquer coisa que, por ser difícil, ao ser realizada com competência, revela mérito pode, ainda assim, revelar culpa por significar fazer mal a terceiros. Rejeitar esta verdade é equivalente a subscrever uma teoria perigosa, que poderá ser mais ou menos sofisticada, mas em qualquer dos casos perigosa, sobre o papel que a moral tem na avaliação de obras de arte.
E escusamos de supor que a moral tem um papel na avaliação apenas de algumas obras de arte, ou de certos tipos de obras de arte, nomeadamente de obras cujo conteúdo é, ou de tipos de obras cujo conteúdo pode ser, programático ou doutrinário. Isto é, escusamos de supor que só podemos falar em culpa a respeito de obras de arte que expressem ou sugiram de alguma forma o bem de qualquer coisa que é evidentemente um mal. Se Lorenz tivesse cantado, por exemplo, para incentivar os soldados da Wehrmacht a cometerem as maiores atrocidades, uma ária cujo texto fosse a versão em verso de um parágrafo de Alfred Rosenberg, poderíamos deixar parte da culpa das atrocidades cometidas pelos soldados certamente à porta de Rosenberg, mas também à porta de quem quer que tivesse feito o arranjo e à porta de Lorenz. Mas porque o mesmo efeito poderia ser conseguido com “Rachel quand du Seigneur”, e aliás solfejos ou scat singing, poderíamos em qualquer destes casos deixar pelo menos parte da culpa no mesmo sítio.
Há pelo menos duas conclusões que me parece importante retirar do que foi dito: em primeiro lugar, que, embora não seja frequente, as actividades de um músico enquanto músico ou de um oleiro enquanto oleiro podem influenciar a reputação do músico e do oleiro enquanto pessoas; e, em segundo lugar, que não precisamos de especialistas em música ou olaria para avaliar a reputação de um músico ou de um oleiro enquanto pessoas, mesmo que tenham desempenhado todo o bem ou mal que fizeram enquanto músico e oleiro, isto é, exclusivamente através de actividades específicas da música e da olaria.
Existe uma assimetria importante no que diz respeito ao grau de generalidade com que cada uma destas conclusões pode ser enunciada, e que consiste no facto de a primeira, mas não a segunda, ser verdade a respeito de qualquer actividade. Isto é, se é verdade que qualquer acção de uma pessoa enquanto representante de uma actividade pode influenciar a sua reputação enquanto pessoa, não é contudo verdade para qualquer actividade que possamos avaliar a reputação de um seu representante enquanto pessoa em função das acções que desempenhou enquanto representante da actividade em questão sem recurso a especialistas na actividade.
As ciências serão talvez o melhor exemplo de áreas de actividade em que a necessidade de recorrer a especialistas é mais evidente. Uma das razões por que assim é consiste em as actividades dos cientistas serem tipicamente difíceis de realizar e de perceber; mas não é a única, aliás porque é possível que seja tão difícil tocar bem ou compor uma sonata quanto resolver um problema científico, e nada em teoria impede que uma teoria sobre um poema possa ser tão sofisticada quanto uma teoria sobre átomos ou mitocôndrias. Uma segunda razão tem que ver com o facto de que, porque a descoberta ou invenção de teorias científicas tende a resultar em aplicações que ultrapassam os limites do laboratório ou do gabinete, as coisas que os cientistas fazem mantêm uma relação estreita com considerações morais. Porque um cientista pode estar mais ou menos consciente, ou não estar de todo, das aplicações possíveis do que descobriu ou inventou; porque tais aplicações podem ser nefastas ou benéficas; e porque é difícil e exige competências técnicas especializadas perceber não só o que o cientista descobriu ou inventou, mas também as aplicações que tal poderá ter, a relação que existe entre uma descoberta ou invenção e as suas aplicações, e se seria ou não possível que o cientista soubesse que o que descobriu ou inventou poderia ser aplicado desta ou daquela maneira; porque tudo isto é difícil, precisamos de recorrer a especialistas para perceber exactamente o que é que o cientista fez, tanto no sentido em que descobrir ou inventar teorias é fazer qualquer coisa, quanto no sentido em que a possibilidade de antecipar as aplicações possíveis das descobertas ou invenções que fez implica que existe responsabilidade sua nas aplicações, mesmo quando outros as levem a cabo.
O campo de actividade do especialista está, contudo, como antes, limitado à descrição do que o cientista fez enquanto cientista. Uma vez estabelecido o que fez sob este aspecto, o trabalho do especialista termina. Cabe, por exemplo, a especialistas em física determinar se Werner Heisenberg poderia ou não ter sido capaz de construir uma bomba atómica. Não faz, contudo, parte das tarefas do especialista decidir se Heisenberg, caso soubesse como construir a bomba, decidiu impedir clandestinamente o processo, por ter percebido que a construção de uma tal arma poderia levar, como aliás levou, ao extermínio indiscriminado de inocentes; ou se deveria ou não ter estorvado o processo; ou, no caso em que não soubesse, se ter permanecido ligado ao Uranverein é suficiente para que a reputação de Heisenberg deva permanecer manchada. Convém, além disso, acrescentar que não precisamos da opinião de especialistas em todos os casos em que é difícil perceber o que um cientista fez: o facto de não sabermos como se constrói um míssil V-2 não deveria impedir-nos de culpar o engenheiro Wehrner von Braun por ter dizimado populações inteiras.
A posição razoável sobre a importância de recorrer a especialistas para restaurar a reputação de uma pessoa, que disse ser a que restringe o âmbito do conceito de reputação a actividades especializadas, corre, portanto, também o risco de se transformar numa posição irrazoável e perigosa. Tal acontece quando se estende demasiado as competências de um especialista; quando se infere, isto é, do facto de precisarmos de especialistas em física para determinar o que os físicos fazem enquanto físicos, que cabe a especialistas em física tomar decisões não só sobre a reputação de físicos enquanto físicos, mas de físicos enquanto pessoas. Percebemos que esta é uma inferência não só ilegítima, mas perigosa, se a compararmos com a inferência parecida que parte do facto de que o aborto ou a eutanásia são problemas relacionados com a saúde de pessoas para a convicção de que a decisão sobre a legitimidade do aborto ou da eutanásia, em geral ou em casos particulares, deve ser deixada à responsabilidade dos médicos.
O que devemos dizer é que, porque podemos ver as actividades especializadas desempenhadas por seres humanos como formando dois espectros, cada um dos quais organizado de acordo com uma variável, a dificuldade de perceber e/ou realizar uma actividade e o seu grau de envolvimento com considerações morais, a importância de recorrer a um especialista para perceber o que uma pessoa fez enquanto representante de uma actividade qualquer dependerá da posição que ocupa em cada um dos espectros. Actividades muito difíceis, mas pouco relacionadas com considerações morais, como a música, requerem o recurso a especialistas quando o que está em causa é a reputação de um músico enquanto músico, mas não quando o que está em causa é a sua reputação enquanto pessoa; ao passo que actividades muito difíceis e fortemente relacionadas com considerações morais, como certas áreas da física, requerem o recurso a especialistas em ambos os casos.
Contudo, e como vimos, mesmo em actividades deste tipo o papel de um especialista na actividade termina quando percebemos em que medida é que a actividade pode estar relacionada com considerações morais. Tomar uma decisão sobre as considerações morais relevantes está fora do âmbito do especialista na actividade. Resta, por isso, perguntar se existem especialistas em tais decisões. A posição que afirma que existem é a mesma que afirma que há especialistas no restauro da reputação de pessoas enquanto pessoas. A grupos responsáveis por uma tal tarefa dá-se frequentemente o nome de ‘Comissões de Ética’, e se costumam incluir especialistas em direito, história, e medicina, engenharia espacial ou física teórica, incluem também quase sempre especialistas em ética. A posição é, como disse acima, absurda e perigosa porque assume que um especialista em ética é, não um especialista em teorias sobre bons comportamentos, mas em bom comportamento. A variedade de teorias sobre bons comportamentos que há deveria fazer-nos suspeitar da existência de tais pessoas, e sobretudo da possibilidade de se chegar a uma decisão definitiva sobre um problema de comportamento. O que geralmente acontece é que a maioria dos membros de uma Comissão de Ética subscreve a teoria sobre bons comportamentos que a maior parte das pessoas subscreve, e o que conta como a decisão definitiva sobre um problema de comportamento acaba por ser a decisão da maioria. A resistência à refutação que certas teorias minoritárias apresentam, como a que rejeita como criminosas práticas como o aborto ou a eutanásia, deveria, contudo, pôr em causa este processo de tomada de decisões.
Isto não quer dizer que não haja casos em que a decisão a tomar sobre um problema de comportamento seja evidente para toda a gente. Há-os certamente. É, contudo, mais habitual a colocação de um problema significar a dificuldade de se chegar a uma decisão sobre a sua solução. Quando tal acontece, talvez a melhor atitude seja a de ver o que todas as teorias sobre bons comportamentos têm a dizer e rejeitar a possibilidade de ser tomada uma decisão. Em casos em que é necessário que haja uma decisão, inverter o princípio da presunção de inocência é possivelmente o melhor a fazer: quando uma teoria por refutar, mesmo que aceite por comparativamente poucas pessoas, descreve como criminoso um determinado comportamento, como o uso de armas de destruição maciça, afirmar a legitimidade desse comportamento está fora de questão. Se isto fizer sentido, a implicação que tem para o nosso problema é a seguinte: quando o restauro da reputação de alguém está em causa, a presença de uma mancha que significa, de acordo com certas teorias, um crime grave determina que a mancha não deve ser removida, ou disfarçada, por exemplo, com condecorações.