Introdução

São ambos judeus perseguidos pelo nazismo, separados por um curto intervalo de tempo. Ambos foram tradutores apaixonados e para um como para o outro a literatura é uma peça fundamental na vida, embora, em certos aspectos, de formas radicalmente diferentes. Walter Benjamin escreve «Ich packe meine Bibliothek aus» em 1931, um curto texto no qual desenvolve uma teoria da colecção de livros, interessante de confrontar com o caderno onde anotou continuamente as suas leituras. Dez anos mais tarde, e um ano depois da morte de Benjamin, Etty Hillesum começa o seu diário, no qual vai reiterando a importância de Rilke, dos russos e da Bíblia, equacionando que livro levaria consigo para o campo de concentração. Neste curto ensaio, comparo não só as listas de livros de Hillesum e Benjamin, mas também dois paradigmas de listagem. Ao confrontar a vida individual com as circunstâncias históricas, tanto as listas como esses paradigmas de listagem vão surgir como um reflexo da formação de duas identidades muito diferentes em tempos não muito distantes.

 

Listagem e lista de livros: o aspecto prático e pessoal

Para iniciar esta análise há que fazer uma distinção por demais evidente, mas necessária: a distinção entre lista e listagem, duas palavras que serão aqui recorrentes. Entenda-se lista como a enumeração de realidades individualizadas. Umberto Eco faz equivaler a lista a catálogo ou elenco. É o produto da listagem e a listagem o seu acto produtivo, resultado de uma decisão tomada em circunstâncias específicas, com critérios individuais.  

Relativamente às listas, Umberto Eco faz a distinção entre lista prática e poética, a primeira sendo real e funcional e a segunda ficcional e expressiva (2009, pp. 113-118). Estas listas de livros são listas eminentemente práticas, apesar de, quanto ao conteúdo, os seus referentes serem maioritariamente ficcionais ou semi-ficcionais. Há que distinguir bem a forma como se fala dos livros: enquanto conteúdo ou enquanto objecto físico. Este segundo modo de se referir a livros interessa particularmente para o aspecto prático da lista, sobretudo quando se discutir o influxo da História na sua formação, i.e., porque é que uma lista é mais abundante do que a outra. O seu conteúdo importa sobretudo para analisar a relação dos próprios livros com a identidade pessoal do produtor da lista: seria infrutífero analisar listas de livros ignorando-o por completo. A listagem, i.e., o processo decisório do produtor da lista, faz a ponte entre estes dois modos e entre as duas forças: circunstâncias históricas e vida individual.

Para isso, serão comparadas as listas de leituras pessoais de Walter Benjamin (consultável nos seus manuscritos de 1917-1939, ou seja, entre os vinte e cinco anos e o ano em que fugiu do nazismo em Paris) e de Etty Hillesum (extraída da leitura do seu diário e pontualmente das suas cartas — uma tarefa executada aqui ad hoc).

 

A lista de Benjamin

 A lista de Benjamin é mais ou menos caótica: a sua numeração atinge as 1712 entradas. Contundo, começa no número 462 e mostra vários lapsos e repetições de números. Entre outros menores, encontramos um lapso significativo de cerca de trezentos números (1991, VII.I, p. 471), e os números repetidos não são descontados, pois apontam novos títulos. Relativamente a este começo in media res, como comprovam os editores a partir da correspondência do próprio Benjamin, a lista teria sido começada aos dezoito anos, em 1912 (1991, VII.II, p. 724). No entanto, esses manuscritos foram perdidos. Excluindo esses títulos perdidos, encontram-se, portanto, na presente lista cerca de 1000 livros anotados. Como se este número não fosse impressionante por si só, os editores constatam que no espólio de Benjamin em Frankfurkt existem outras listas de leituras pessoais tematicamente organizadas (ibidem).

A sua abundância é vertiginosa, como diria Eco, e é tal que poderia pôr em risco a sua credibilidade, não fossem as notas do próprio. Junto ao título e autor dos livros lidos lê-se por vezes a confissão de uma leitura incompleta ou mista: por exemplo, «parte em alemão, parte em francês» (teils deutsch, teils französisch) sobre Proust (n.º 1017), ou «parcialmente» (auszugsweise) sobre um livro de Ricarda Huch (n.º 535). Por outro lado, como notam os editores, certas obras, como as de Schlegel e Winckelmann (n.º 900 e n.º 907), foram lidas na íntegra e correspondem a recensões feitas pelo próprio (ibid). Benjamin chega mesmo a tecer comentários incisivos sobre algumas leituras: «miserável» (miserabel), sobre Ivan Bjarne (n.º 1013), «horrível» (scheußlich), sobre Alfons Goldschmidt, ou os referidos pelos editores «disparate» (albern) e «lixo» (Schund), sobre Emil Utitz e Alfred Peltzer (n.º 794 e n.º 795), mas também «extraordinário» (hervorragend) sobre August Kellner (n.º 985). Além disso, para determinados grupos de livros, aponta lateralmente o local e os meses em que os leu. Esta notação mostra a probabilidade de nos encontrarmos diante de uma listagem honesta. Tentar falsificar a honestidade desta lista torna-se difícil perante o seu aspecto eminentemente prático e pessoal, atestado pelo manuseio aqui descrito.

Muitos filósofos e filólogos germanófonos reaparecem com alguma frequência: Schlegel, Kant, Heidegger, Nietzsche e, evidentemente (como se nota na sua sociologia estruturalista e mesmo nos escritos autobiográficos), Marx (embora não tão frequente quanto o primeiro). Destaca-se a literatura francófona (por exemplo, Gide, Baudelaire e Proust, que traduziu) e russófona (Dostoiévski, Tchékhov e Gógol). Surpreendentemente, a reincidência de obras de Simenon (autor popular à época, famoso pela sua série do comissário Maigret) e de Agatha Christie (dentro do mesmo género) mostra o gosto de Benjamin por uma literatura de massas, contrariando assim o lugar-comum da incompatibilidade entre cultura popular ou de massas e erudita no gosto pessoal — algo que também confirma a sua honestidade. Seria pouco credível argumentar que esta reincidência parte apenas e puramente de uma curiosidade sociológica. O pendor da sua lista é, no entanto, e como se viu, maioritariamente erudito.

 

A lista de Hillesum

Apesar de não se constituir uma lista formal no seu diário, Etty Hillesum vai reiterando a importância de certos livros ou autores na sua formação intelectual e pessoal. Desse modo, o leitor pode ele mesmo não só listá-los mas também avaliá-los com um grande grau de certeza quanto ao seu grau de influência. Ao longo da leitura destas páginas, sobressaem alguns autores: por um lado Santo Agostinho e Tomás de Kempis, autores cristãos mais presentes no início do diário e apresentados por Julius Spier, psicólogo heterodoxo e figura central na vida de Hillesum; por outro, Rilke, Dostoiévski e Tolstoi, autores que já conhecia enquanto estudiosa devota das letras alemã e russa (passim).

Hillesum é também bastante clara quanto à relação que tem com estes autores, quando não é a de «tradutora-jornaleira» (2008, p. 150): atribui-lhes uma importância vital no mundo e um impacto pessoal forte e inevitável. Leiam-se duas passagens que o testemunham: 13 de Agosto de 1941: «E um poema do Rilke é tão real e importante como um jovem que se atira de um avião» (ibidem, p. 109); 5 de Setembro de 1941: «Também pode ser que me identifique demasiado com tudo aquilo que leio e estudo. Alguém como Dostoiévski arrasa-me sem eu saber como.» (ibid, p. 115)

Acrescente-se a crucial descoberta apaixonada e gradual da Bíblia, fundamental para perceber o percurso de Etty Hillesum. A Bíblia, porém, não é um livro qualquer. Além de ser um conjunto de livros, de origem e natureza diferentes entre si, a única coisa que lhe confere unidade é, em última instância, o seu sentido teológico, teleológico e directivo, i.e. todas as narrativas convergem para Cristo e Cristo, através dos seus actos e palavras, salva e ensina a ser salvo, o que passa essencialmente por aceitar e replicar o «amor salvífico» de Deus, materializado na morte e ressurreição.

A causa final da Bíblia não é, portanto, a leitura imparcial mas a sua recepção plena pelo discípulo, a sua vivência. Hillesum parece encontrar-se num processo de conversão, indo precisamente neste sentido: vai passando de leitora curiosa e insegura a discípula apaixonada. Manifesta a vontade de viver a mensagem bíblica. Ocorre, a título de exemplo, já na entrada de dia 28 de Novembro de 1941: «Nos últimos tempos tenho chamado ao espírito de vez em quando uma frase da Bíblia, lendo-a com um novo, nítido conteúdo enriquecido e um intenso significado. Deus criou o homem à sua imagem e semelhança — Amai o próximo como a vós mesmos, etc.» (ibid, p. 144).

A sua relação com o Antigo Testamento também revela aquilo que pode ser um paradigma da sua relação com a literatura: «Não só interessa pelo que lá vem dito [no Antigo Testamento], mas também para conhecer aqueles que o dizem» (p. 249). A relação com o texto é mais pessoal do que ideal — aderir ao texto, como uma relação humana, revela-se algo dinâmico e não estático, como seria um exercício exclusivamente intelectual ou filológico, como faz Benjamin. Isto sucede, naturalmente, porque Hillesum se deixa impactar pessoalmente pelo texto.

Mas, afinal, após o penoso exercício de selecção, que livros acaba por levar consigo no momento da deportação? E como é que isso acaba por relacionar estes interesses tão distintos? Sabe-se pelas suas cartas que em Westerbork, já sem o privilégio de regressar a Amesterdão concedido aos trabalhadores do Conselho Judaico, tinha consigo a Bíblia e o Livro de Horas de Rilke (2009, pp. 191 e 201. Cf. 2008, p. 247). Outra carta dá a noção da forma como os livros — e sobretudo a Bíblia — eram partilhados e estimados (2009, p. 189), algo que se lê bem também no seu diário um ano antes: «Quero memorizar uma coisa para os meus momentos mais difíceis e também a quero ter sempre à mão: que Dostoiévski passou quatro anos em desterro na Sibéria tendo a Bíblia por única leitura.» (2008, p. 260) Rilke e a Bíblia são o lugar de contemplação poética que dá sentido à vida, na adversidade e na incerteza (a Bíblia sendo adicionalmente a fonte de uma ética): como defende Tolentino Mendonça no prefácio ao diário, a literatura que era a sua pátria acaba por conduzi-la à nova pátria que encontra «em plena escuridão».

Porém, uma carta de Jopie Verschlower indica que Hillesum, no momento antes de partir para Auschwitz, em Setembro de 1943, disse: «Tenho comigo os meus diários, as minhas Bíblias pequenas, a minha gramática de russo e Tolstoi, e não faço mais ideia do que mais está na minha bagagem.» (2009, p. 258 ou 2008, pp. 337-338) Algo que remete prosaicamente para o carácter prático da listagem e, ao mesmo tempo, indicia a paixão imorredoura de Hillesum pelas letras.

 

Listagem: colecção ou selecção? O influxo da História

Comparando a abundância da lista de Benjamin com o despojamento da lista de Hillesum, conclui-se que se está diante de dois modelos de listagem radicalmente diferentes. No texto «Desempacotando a minha biblioteca» (tradução de João Barrento para «Ich packe meine Bibliothek aus»), Benjamin constrói uma teoria do coleccionismo: atribui uma grande importância ao sentido de propriedade em relação aos livros — e, portanto, ao seu aspecto físico —, o que não deixa de ser curioso, porque incompatível com o marxismo que tanto lhe interessava; descreve o coleccionismo dos livros como uma forma de «fisionomia do mundo de objectos», o mundo externo. Quanto aos métodos de aquisição — e, portanto, à listagem —, nota-se um comportamento algo caprichoso: nem sempre lê tudo o que adquire e os métodos de aquisição são mais ou menos arbitrários.

Isto contrasta grandemente com o exercício de renúncia e selecção (listagem) por que Hillesum tem de passar, face à forte possibilidade da deportação sem regresso garantido, que se torna mais evidente a meio do diário. O valor emocional que Hillesum dá aos livros é, como se viu, mais orientado para o seu conteúdo, algo que não é alheio a essa selecção por renúncia. Outro contraste prende-se com o mundo: contrariamente ao «mundo de objectos», Hillesum vive intensamente o mundo interno que vai buscar designadamente à literatura. Aliás, esta expressão recupera-a de Rilke, na entrada de 15 de Setembro de 1942, imediatamente após o regresso da primeira ida a Westerbork: «Tudo vive dentro de mim. Faz-me pensar numas palavras de um poema de Rilke: “mundo interno”.» (2008, p. 282)

Há uma diferença proeminente, portanto, entre colecção por «capricho» (mais focado no livro enquanto objecto num sistema) e selecção por renúncia (livro enquanto conteúdo puro). A primeira está associada a um maior interesse no mundo externo (o dos objectos), e a segunda ao mundo interno (o do sujeito e, no limite, das relações entre sujeitos).

A importância das circunstâncias históricas em que listaram as suas leituras é evidente: por um lado, relativa tranquilidade para Benjamin, durante algum tempo, e, por outro, vivência da perseguição e iminente extradição para Hillesum. Benjamin usufruiu de uma vida relativamente tranquila e intelectualmente estimulante na Alemanha até 1932, ano em que fugiu definitivamente do país, no meio do tumulto político que, no ano seguinte, levaria Hitler ao poder. No exílio (em vários locais, sobretudo em Paris), a sua actividade intelectual não diminuiu. Fugiu de Paris na noite anterior à invasão nazi (14 de Junho de 1940), com destino aos E.U.A. e, como é sabido, o seu suicídio teve lugar em Portbou, envolto em algum mistério.

No ano seguinte, Hillesum, começa o seu diário. À data da primeira entrada, 9 de Março de 1941, já a Holanda estava sob controlo nazi. Westerbork, no entanto, já existia desde 1939 como campo de refugiados judeus vindos da Alemanha. Apenas em 1942 as forças nazis começaram a expedir daqui vagões de reclusos para campos de concentração e de extermínio, como por exemplo Auschwitz, onde Hillesum viria a morrer. É também em 1942 que o pogrom se intensificou na Holanda ocupada, de que este diário é um bom testemunho. Foi nestas circunstâncias que Hillesum aceitou um trabalho no Conselho Judaico, o órgão de mediação entre os judeus e as autoridades ocupantes. Aí teve conhecimento de que eram os judeus mais pobres que chegavam primeiro a Westerbork. Com uma forte convicção humanitária e inconformismo perante os seus pares, voluntariou-se para trabalhar nesse campo, onde permaneceu até Setembro de 1943, data em que foi enviada para Auschwitz com a família, excluindo o seu irmão Jaap. Tendo, nas circunstâncias primeiro referidas, a oportunidade de voltar intermitentemente a Amesterdão, escreveu no seu diário até 13 de Outubro de 1942. Após esse período escreveu apenas cartas. É destas três experiências (a vivência do pogrom, o «inferno» vivido no Conselho Judaico e o voluntariado em Westerbork) que fluem as suas impressões e pensamentos mais profundos e dolorosos.

O carácter confessional de Hillesum acentua naturalmente o ambiente de perseguição, enquanto Benjamin em grande parte não se detém sobre o impacto pessoal que este lhe causa. Além disso, não deve ser esquecido que a lista de livros de Benjamin se estende durante muito mais tempo do que os breves dois anos do diário de Hillesum. Mas mesmo se se consultar os apontamentos autobiográficos dispersos de Benjamin a partir da ascensão do nazismo entre 1933 e 1939, constata-se que mantém um certo distanciamento em relação aos acontecimentos políticos. Também a relação com os livros aparece separada da vida pessoal, ao contrário do que acontece com Hillesum. Tudo o que Benjamin tem a dizer sobre política ou livros di-lo referindo-se às ideias de outros (sobretudo, nestes anos, de Bertolt Brecht). Nesses apontamentos, com excepção de um poema e de um enigmático texto escritos já em Espanha em 1933 (1991, VI, pp. 520-523), relata sonhos, refere conversas intelectuais, descrições do mundo exterior, nunca do mundo interior.

Ainda que a correspondência mantida com os seus amigos constitua uma óbvia excepção a este distanciamento, esta não deixa de corroborar o tipo de relação que mantém com os livros na (relativa) adversidade: a carta de 19 de Abril de 1933 a Scholem é um exemplo da forma como Benjamin geria os seus livros nos seus movimentos nomádicos pela Europa (por exemplo, deixando pequenas bibliotecas dispersas pelas casas por que passava) e dos expedientes de que dispunha (nomeadamente a indispensável ajuda de alguns amigos), mostrando também as dificuldades que sentia, sobretudo o sentimento de privação e consequente irritação. Ainda assim, o que sobressai é o que se tem vindo a referir: o carácter de um colecionador e de um académico.

Estas observações confirmam uma tendência para impessoalidade nos seus escritos autobiográficos, algo que pode ser melhor compreendido à luz de duas afirmações de Benjamin: uma, na abertura da Infância Berlinense (na tradução portuguesa incluída no volume Imagens de Pensamento, pp. 73-74): «Procurei conter esse sentimento recorrendo ao ponto de vista que me aconselhava a seguir a irreversibilidade do tempo passado, não como qualquer coisa de casual e biográfico, mas sim de necessário e social. § O resultado foi que os traços biográficos, que se revelam mais na continuidade do que na profundidade da experiência, recuam completamente para um plano de fundo nestas tentativas.» A outra, num fragmento de Einbahnstraße (mesmo volume, p. 9): «A construção da vida passa neste momento muito mais pela força dos factos do que pelas convicções.» Hillesum, com a sua intensa vida interior, discordaria, sem anular, no entanto, a força dos factos, como, aliás, se pode verificar nas suas cartas. Duas pessoas que viveram a mesma perseguição não referem de todo o mesmo tipo de vivência.

 

Livros e identidade pessoal

Por esta mesma razão pode-se afirmar com segurança que o influxo da História não é suficientemente determinante na escolha de leituras e posterior listagem. O factor humano, subjectivo, é evidentemente preponderante, i.e., em última instância a vontade da pessoa sobrepõe-se às circunstâncias que contribuem para a formação da sua identidade e isso parece manifestar-se também nas leituras que escolhe, na recepção que delas faz, bem como na relação que estabelece com os livros enquanto objecto físico.

Se por um lado a consciência de uma futura renúncia forçada obriga a que prescinda fisicamente dos livros, Hillesum é explícita nos critérios pessoais, independentes das circunstâncias. A este respeito podem ser lidas as suas palavras relativas ao silêncio, nas quais expressa a preferência pelo estritamente essencial: «Detesto uma acumulação de palavras. Na realidade pode usar-se poucas palavras para nomear as grandes coisas que importam na vida […]. O importante será a relação justa entre palavras e silêncio, um silêncio no qual acontece mais do que em todas as palavras que uma pessoa consiga reunir.» (2008, pp. 190-191) É neste sentido que Hillesum prefere circunscrever as suas reflexões a um número relativamente curto de obras — o que se revela útil face às circunstâncias iminentes e eficaz quanto à sua interiorização. Experiencia os livros como fonte de aprendizagem e alimento espiritual que deve ser por vezes contemplado e por vezes replicado na própria vida. No fim do diário, tanto o Novo Testamento, constantemente citado, como Rilke, que designa como «um dos meus grandes educadores» (ibidem, p. 308), revelam-se as influências fundamentais. Para Hillesum, são os livros que vivem nela, ou assim pretende que seja: fundem-se no sujeito.

Numa posição radicalmente oposta, Benjamin valoriza o aspecto físico dos livros, como se verificou na sua teoria da colecção. Acrescente-se que nesse texto, «Desempacotando a minha biblioteca», Benjamin encara os livros como porta de acesso às memórias e a listagem como ordenamento do caos que elas são: «não por elas [as coisas] estarem vivas nele [no coleccionador], mas porque é ele mesmo quem vive nelas. O que fiz foi levantar diante dos vossos olhos uma das suas moradas, cujos tijolos são os livros» (2004, p. 217), i.e., não é o livro que vive no coleccionador (como acontece com Hillesum, que aliás nem é colecionadora, como se viu), antes o contrário. Olhar para a estante restabelece a ordem das memórias. Porém, o distanciamento mantém-se, porque não se confunde a pessoa com o conteúdo desses mesmos livros. Relacione-se também essa ideia com a leitura paralela que se pode fazer dos seus Lebensläufe, i.e., dos seus curricula (1991, VI, pp. 215-228): ele controla os livros também a nível do conteúdo, são um objecto de trabalho intelectual, separado da vida do sujeito.

O único caso em que Benjamin se permite, de uma maneira mais evidente, diluir na obra é na leitura dos já referidos romances policiais (v. o seu texto «Romances policiais em viagem»). No entanto, trata-se de uma fusão deliberada: Benjamin decide ler um policial para se identificar com os problemas do protagonista e assim subtrair-se aos medos da viagem («A anestesia de um medo pelo outro é a salvação do viajante», Imagens de Pensamento, p. 201.). A viagem, por sua vez, intensifica a própria leitura. Ao contrário, Etty, a quem os livros chegam às mãos de forma pouco planeada (sobretudo através de Spier), tem reacções espontâneas, inexplicáveis (lembremo-nos do que diz sobre os livros de Dostoiévski) e mesmo místicas.

Será interessante confrontar esta diferença com a própria análise que Benjamin faz em «A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica»: distingue «concentração» (Sammlung, na tradução de João Barrento, 2006), que identifica com o espírito artístico e intelectual, de «distracção» (Zerstreuung), que identifica com as massas. O primeiro «mergulha na obra de arte», enquanto o segundo «mergulha a obra de arte em si» como numa relação de consumo. Curiosamente, no original, o primeiro vocábulo corresponde a «colecção», aproximando o artista do coleccionador, por «mergulhar na obra», o que é perfeitamente coerente com o que Benjamin escreve sobre a sua biblioteca. Mas vimos que para este mergulho ser possível tem de se postular uma separação entre sujeito e obra. Ainda assim, poderíamos pensar que Benjamin, apesar de dominar as obras literárias, apenas se quer distrair por meio delas, evadir-se da sua própria vida ou do mundo. Se regressarmos ao sentido trivial de «distracção», sem esta noção de «concentração» como contraponto, isso seria evidente nas obras de Agatha Christie e Simenon, não só por serem a literatura para as ditas «massas», mas por se tratarem de leituras puramente recreativas para Benjamin. Este não é o caso das demais obras.

Primeiro, é defensável que não é uma forma de se alhear da política, pois é sabido que o seu pensamento, pelo menos durante alguns anos, foi socialmente comprometido (v. as últimas linhas deste mesmo ensaio, «A obra de arte…»: «É assim a estetização da política praticada pelo fascismo. O comunismo responde-lhe com a politização da arte.»). Quanto a um possível alheamento da vida pessoal, saliente-se que, ainda que Benjamin não afirme à partida que os livros mudam a sua maneira de olhar para a vida e para o mundo, numa dimensão prática ou espiritual, concentra-se totalmente na leitura ou estudo das obras, tal como diz ser típico do artista ou daquele que contempla a arte. Supera, porém, esse estádio, para entrar num estádio de manipulação intelectual distanciada, como sendo o seu ofício — radicalmente diferente da aplicação directa das obras à sua vida que Hillesum faz: um «mergulho da obra no sujeito» distinto do da «burguesia» de Benjamin, porque transformador do sujeito. Assim, esta dicotomia concentração / distracção não se adequa a Etty Hillesum.

Todas estas diferenças poderiam ainda ser caracterizadas de outra forma, por uma oposição de perspectivas: de passado e de futuro. A perspectiva de Benjamin é uma de passado, a perspectiva de um coleccionador, da acumulação de conquistas profissionais ou recreativas, e a de Etty uma perspectiva de futuro: não só se seleccionam os livros de uma vida como estes constituem uma ética para toda a conduta futura. São objecto de um compromisso pessoal.

 

Conclusão

A forma de os livros influenciarem a identidade pessoal é co-extensível ao tipo de relação que uma pessoa está predisposta a estabelecer com estes. Trata-se de uma relação dinâmica e bilateral, na qual a identidade pessoal prévia age, como o adjectivo indica, a priori. Aqui, as circunstâncias que afectam a vida de cada pessoa podem tomar um papel preponderante na selecção dos livros que uma pessoa lê, da qual procede uma listagem formal ou informal. Nos casos analisados, Hillesum manifesta uma relação espiritual com os livros e Benjamin uma relação intelectualmente distanciada, no sentido em que o sujeito não se transforma, ainda que «mergulhe» em imaginários (como no caso dos policiais)

A relação espiritual acentua-se com as circunstâncias adversas da perseguição nazi, que obriga à selecção criteriosa de leituras e a uma vivência mais profunda dos seus conteúdos, que por sua vez encontraram um substrato identitário favorável: o espírito forte, livre e humanitário de Hillesum, já visível nas primeiras páginas do diário e que, de certa maneira, relembra o hino ao amor de Paulo de Tarso: «Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, sou como um bronze que soa ou um címbalo que retine.» (1 Cor 13. Tradução dos Capuchinhos) A relação de pura intelectualidade, por outro lado, marca justamente a identidade de Benjamin enquanto intelectual, que redunda no coleccionismo possibilitado por um clima de paz relativa (até um determinado tempo), mas que nem por isso cessa com as circunstâncias históricas adversas. Daqui também se conclui que as leituras procuradas e realizadas reforçam os traços da identidade que o tempo pede.

 

Bibliografia

Benjamin, Walter. «Aufzeichnungen 1933-1939». Gesammelte Schriften VI von Suhrkamp Verlag [Hrsg.], Berlin 1991, pp. 520-540.

—. «Das Kunstwerk im Alter seiner Reproduzierbarkeit [dritte Fassung]». Gesammelte Schriften I.II von Suhrkamp Verlag [Hrsg.], Berlin 1991, pp. 471-508.

[PT] – «A obra da arte na era da sua reprodutibilidade técnica» [3ª versão]. In Walter Benjamin. A Modernidade. Assírio & Alvim. Trad. de João Barrento. Lisboa, 2006, pp. 207-242.

—. «Tankstelle»; «Lesekasten»; «Kriminalromane, auf reisen»; «Ich packe meine Bibliothek aus». Gesammelte Schriften IV.I von Suhrkamp Verlag [Hrsg.], Berlin 1991, p. 85, p. 267, pp. 381-382, pp. 388-396.

 [PT] – «Estação de serviço»; «Romances policiais em viagem»; «Desempacotando a minha biblioteca»; «Caixa de leitura». In Walter Benjamin. Imagens de Pensamento. Assírio & Alvim. Trad. de João Barrento. Lisboa, 2004, p. 9, pp. 200-202, pp. 207-215, p. 283.

—. «Vorwort [zu Berliner Kindheit]». Gesammelte Schriften VII.1 von Suhrkamp Verlag [Hrsg.], Berlin 1991, p. 385.

                  [PT] «Palavras Prévias [à Infância Berlinense]». In Walter Benjamin. Imagens de Pensamento. Assírio & Alvim. Trad. de João Barrento. Lisboa, 2004, pp. 73-74.

—. «Lebensläufe». Gesammelte Schriften VI von Suhrkamp Verlag [Hrsg.], Berlin 1991, pp. 215-228.

—. «Verzeichnis der gelesenen Schriften». Gesammelte Schriften VII.I von Suhrkamp Verlag [Hrsg.], Berlin 1991, pp. 437-476-

—. «Anhang – Verzeichnis der gelesenen Schriften». Gesammelte Schriften VII.II von Suhrkamp Verlag [Hrsg.], Berlin 1991, p. 724.

Eco, Umberto. «C’è lista e lista». In La vertigine della lista. Ed. Bompiani. Milano, 2009, pp. 113-118.

Hillesum, Etty. Diário 1941-1943. Ed. Assírio & Alvim. Trad. de Maria Leonor Raven-Gomes com prefácio de José Tolentino Mendonça. Lisboa, 2008.

Hillesum, Etty. Cartas 1941-1943. Ed. Assírio & Alvim. Trad. de Ana Leonor Duarte e Patrícia Couto. Lisboa, 2009.

 

* Ensaio realizado no âmbito do seminário «Listas», orientado pelo Prof. Hermenegildo Fernandes, do Programa em Teoria da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, ano lectivo 2016/17.

Comunicação realizada a 27 de Fevereiro de 2018 no âmbito do Workshop de Filosofia e Literatura, e posteriormente revista.

Agradeço as sugestões bibliográficas do Prof. Hermenegildo Fernandes e da Prof. Ana Isabel Soares, bem como os comentários do Prof. Miguel Tamen, da Prof. Teresa Bartolomei e da Prof. Filipa Barreto. Agradeço também a presença de todos os que participaram nesta sessão do workshop, em especial aos meus amigos que não gostam assim tanto de ler.

 

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