Vulcânico e borbulhante, Homogenic é uma erupção futurista vinda das profundezas do manto, cuja lava ao solidificar continua a alargar as fronteiras da ilha ainda hoje. Se fizermos um rápido levantamento dos principais acontecimentos de 1997 no mundo da música, obtemos o retrato de um ano de vanguarda em várias frentes. Logo no início do ano, em janeiro, o duo francês Daft Punk estreava-se com Homework, um registo definitivo no curso da música dance europeia de ali para a frente e que nos introduzia ao nome mais significativo do house francês. O mês de fevereiro viu o lançamento de Either/Or, considerado por muitos o melhor trabalho de Elliott Smith, o influente cantautor que, apesar de uma carreira cedo tolhida, continua bastante presente no atual panorama folk e indie. Em março, a rivalidade dentro do hip-hop entre a Costa Este e a Costa Oeste atingia o seu clímax (e consequente amenização) com o conturbado assassinato de Biggie, principal figura do Este, seis meses após o mesmo ter acontecido a 2Pac, o emblema do hip-hop do Oeste. Ainda na primeira metade do ano, os Radiohead lançavam OK Computer, talvez um dos álbuns mais incontornáveis de sempre, alterando a trajetória do rock inglês, tendo coincidindo com o declínio do Britpop, mas também de toda a música pop num sentido lato.

Já em setembro, Björk partilhava Homogenic, o terceiro álbum da artista islandesa e o foco deste texto. Desde logo considerado um clássico, um dos melhores do ano juntamente com OK Computer, Homogenic dialogava com o trip-hop de Massive Attack e Portishead, grupos ingleses creditados com o desenvolvimento do género a partir de meados da década de noventa. Já desde Debut (1991) que Björk incorporava elementos dance e trip-hop na música pop algo mainstream, mas Homogenic certamente auxiliou na construção de um cânone, fazendo parte da santíssima trindade do género hoje reconhecida por inúmeros críticos, junto de Dummy, dos Portishead, lançado em 1994, e Mezzanine, dos Massive Attack, lançado em 1998.

Conhecer o contexto no qual uma obra se insere é sempre, a meu ver, essencial à sua boa compreensão. E se, por vezes nos cruzamos com clássicos cuja aclamação não conseguimos compreender por não estarmos familiarizados com o meio no qual a obra em questão surgiu, também é seguro que, de tempos em tempos, certos trabalhos dispensam introduções. O espanto que causam é imediato, independente de qualquer enquadramento que consigamos ou não fazer. Disto é Homogenic um exemplo. Embora tenha sido lançado há já um quarto de século, continua a soar moderno e futurista atualmente. A produção em «Pluto» não destoa muito do que hoje podemos encontrar na pop de vanguarda, em géneros como o hyperpop (e.g. Arca, SOPHIE). «Alarm Call» poderia ser lançada daqui a dois ou três anos num álbum de Grimes ou Caroline Polachek. O mesmo se pode dizer sobre «Unravel» em relação a Radiohead (Thom Yorke já expressou várias vezes a sua admiração pela canção). E por aí fora.

Talvez a vitalidade de Homogenic resida em todas as contradições que o álbum abarca. Björk define a principal dicotomia a partir da qual as restantes derivam em «Hunter», a faixa de abertura: «I thought I could organise freedom». Em especial em Homogenic, mas de uma forma geral em toda a sua discografia, é constante a tensão entre a disciplina e a fórmula, de um lado, e o caos e a liberdade, do outro. Depois do corte-e-costura estilístico dos primeiros dois álbuns, a artista procurava algo mais focado, uma sonoridade que construísse uma atmosfera coesa, de um único sabor que perdurasse ao longo do alinhamento. Por essa razão, entre outras mais ligadas à vida pessoal da cantora, deixou Londres e voltou à terra-mãe Islândia para trabalhar no futuro terceiro álbum, tendo terminado o processo em Málaga, Espanha. O regresso às origens animou o patriotismo de Björk, que cedo decidiu dedicar aquele trabalho ao seu país, também por ter percebido que desta forma faria algo mais autêntico e íntimo. Nas palavras da mesma, «a Islândia é um dos países mais recentes geograficamente — ainda se está a formar, por isso os sons estariam ainda a formar-se também». Homogenic faz uso de novos sons, o eletrónico e o digital, para retratar a cultura e tradição islandesa, da natureza virgem do país, o clássico e o analógico.

O resultado é um atmosférico futurismo orgânico, uma paisagem natural islandesa cosmopolita e vanguardista. É um vulcão roxo, brilhante, envolto numa névoa lilás que eclipsa o sol, que fica reduzido a uma luz abafada que nem permite inferir em que altura do dia já vamos. A lava laranja fluorescente que vem do ventre da ilha, energicamente pulsando, um bolsado efusivo e que escorre lentamente a par e passo com o contraste de cores que estabelece com o cone vulcânico. É a forma crua e gutural de cantar que encontramos, mas também a malha de sintetizadores que a acompanham. É as «emotional landscapes» pelas quais Björk grita em «Jóga». No podcast «Björk: Sonic Symbolism», de Mailchimp, a cantora comenta que «na Islândia, a Natureza não é sentimental, é bastante crua». Não terá sido por acaso que o design da capa ficou a cargo de Alexander McQueen, designer cujo trabalho esteve sempre na linha da frente da cultura pop e que partilhava com Björk a admiração pelo selvagem e pela harmonia com a natureza, na sua forma mais verdadeira.

Homogenic é um silêncio cheio («You don’t have to speak, I feel»), como uma planície vasta e arejada cheia de estática, em que o inesperado espaço negativo tem algo a dizer. Björk recorda várias vezes em entrevistas a forma como a paisagem islandesa se entrança no processamento das emoções, como as tundras e inabitadas florestas ouvem os gritos frustrados e, segundo Björk, até os transformam em música. A artista esclarece, no mesmo episódio do podcast já mencionado, a relação que o povo islandês procura estabelecer com a natureza que o envolve. Não é recuar em afastamento, mas sim avançar em direção a ela, «forward into nature», querer integrar as praias vulcânicas e o espaço entre as bétulas. E, para Björk, escutar e capturar as melodias das complexas antíteses da paisagem, levá-las para o estúdio e por fim amplificar e transmiti-las ao mundo inteiro.

Com um início de carreira promissor que coincidiu com uma fértil época de viragem na indústria musical, Björk poderia facilmente ter cedido ao zeitgeist e certo estou de que desse caminho também sairiam ótimos trabalhos. Ainda assim, deu um passo atrás, ao afastar-se da vida urbana de Londres e regressando ao berço, para que pudesse então dar-nos Homogenic. 25 anos depois, ainda é chocante pensar que estas canções foram lançadas em 1997. Björk procurou reproduzir, com o respeito islandês pela natureza, a geografia que a envolvia. Não como uma ave que sobrevoa a ilha, mas como parte integrante da paisagem, fundindo-se e camuflando-se. A escala do tempo geológico é completamente diferente daquela da História do Homem. O resultado do esforço de Björk em conciliar as enantioses da sua relação com a natureza islandesa foi algo da ordem dos éons. Pondo a eletrónica perfeição futurista conseguida com a produção de Mark Bell ao serviço da natureza selvagem e virgem da sua ilha, Björk conseguiu criar um álbum com um tempo de semi-vida muito mais alargado.

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