Estávamos na antecâmara de um jogo no antigo campo pelado da União Desportiva de Leiria. Tenho ideia de que tudo aquilo estava a ser vivido como sendo um grande acontecimento, até porque, normalmente, nunca se fazia nada ao ar livre a mais de trinta ou quarenta metros dali (que era, mais coisa, menos coisa, onde começava o pinhal). No dia anterior, definindo as equipas, a Sr.ª Clara (nome fictício) lá nos dispôs em fila indiana e foi perguntando, um a um: «Sporting ou Benfica?». E nós, muito disciplinados, fomos sendo organizados conforme a escolha. Na altura, todo embeiçado pela Joana (nome verídico), limitei-me a mais-querer o mesmo que ela. E foi o Sporting. Feitas as contas, isto terá ocorrido no ano da graça de 1984, numa sala de aula de uma pré-primária de Leiria. Eu tinha quatro anos.

Esta memória não será uma reprodução plenamente fiel, mas é verídica no essencial. A educadora de infância não se chamava Clara (talvez fosse Gracinda, não sei), mas a Joana era Joana, tenho a certeza. E o Sporting continua o Sporting, claro. Do jogo no pelado da União, não me lembro de grande coisa para além de muitos garotos a correr ao calha. Em boa verdade, nem me lembro se havia uma bola e as balizas estavam tão longe uma da outra que só muito mais tarde soube que havia duas. Mas foi aí, em 1984, que o meu destino ficaria traçado sem abalo algum: do Sporting. E não por herança familiar (é quase tudo do arqui-rival, nem de propósito), não por engraçar com as cores (era muito novo, ainda só havia preferências cromáticas para gelatinas, pastilhas e gomas), não por ser o clube que ganhava mais (já na altura não era), não por ser a primeira equipa que vi jogar (que não foi, esse baptismo só aconteceu uns bons anos depois), não houve nenhuma dessas relações causa e efeito mais convencionais. Não escolhi nada, o Sporting foi-me simplesmente apresentado. 

O clube é o nosso, mas, ao mesmo tempo, somos de um clube. Trata-se de uma realidade regida por dinâmicas que não devem muito à lógica. Desde logo, nenhum de nós se limitará a gostar, apoiar ou simpatizar. É-se. O verbo é esse e sempre esse: ser. Neste sentido, o supporter inglês (o termo, não a pessoa propriamente dita, bem entendido) sempre me pareceu ficar muito aquém. É curto. Não será apoiar, apenas, que isso deixa no ar a possibilidade de deixar de fazê-lo. Partindo desse pressuposto, o tifoso italiano aproximar-se-á sempre bem mais da relação sem-par a que aqui se alude. É que, etimologicamente, está-se infectado pela tifo. Uma doença que, neste contexto, é crónica. Uma condição para a qual não há cura. Isto é para o resto da vida e o máximo que poderá acontecer será, no limite, umas quantas oscilações na forma como se vai manifestando.  

Num dos meus primeiros anos como orgulhoso detentor de bilhete de época no estádio do Sporting, um episódio com um senhor acabou por tornar-se o meu exemplo paradigmático de ilustração dessa dinâmica — essa (eventual) oscilação que nunca quebra. Antes de mais, convém lembrar que esse senhor, tal como eu, desfrutava de um bilhete que lhe permitia assistir a todos os jogos nas bancadas de Alvalade, sempre no mesmo lugar. No seu lugar. Nós sentávamo-nos a umas duas ou três cadeiras de distância e seríamos vizinhos, pelo menos nos dez meses que aí vinham. Naquele dia, havia jogo de apresentação, um evento que, não contando para nada para além do óbvio (apresentar a equipa), tende para a tranquilidade de todos os seus intervenientes — adeptos incluídos. Ora, nem dez minutos se tinham aturado quando um jogador perfeitamente genérico do Sporting fez um passe miserável que, muito justamente, só parou num placard de publicidade. Não seria nada de mais, há centenas, se não mesmo milhares de passes do género no decurso de uma época desportiva. E em jogos que realmente contam para alguma coisa. Mas este senhor não estava ali para relativizar nada. Reagiu com um dos mais clássicos ruídos de desagrado da nossa diversidade fonética, levantou-se e foi-se embora. Nessa época, não o vi mais. O seu lugar esteve sempre vazio. No jogo de apresentação da época seguinte, lá estava ele outra vez, como se nada fosse.

As minhas oscilações nunca conheceram episódios tão dramáticos, nem acredito que venham a conhecer tão cedo. Talvez um dia, sabe Deus. Talvez cada adepto tenha o seu próprio ponto de ebulição, mas o que não deve ser colocado em causa é o facto de este vínculo não quebrar. É que, vamos lá ver, é sabido que nestas nossas sociedades, chamem-se-lhe industriais, pós-industriais, modernas, pós-modernas, pouco importará, o futebol tem a função de uma válvula de escape, de um mimetismo bélico, de uma busca da excitação ou de um descontrolo controlado de emoções. Trocado por (muitos) miúdos, o futebol dá-nos a oportunidade de andar aos gritos e aos pontapés a cadeiras sem parecer um maluquinho. Pois bem, para essa catarse ser plena, exige-se uma identificação histórica e inabalável com o clube. As características do jogo da bola, que impelem o jogo, esse jogo em concreto, para um papel muito destacado são valorosas, claro que sim, mas é o vínculo inquebrável a um clube que permite uma vivência absoluta dessa realidade. Caso contrário, e por exemplo, no meu coração estariam guardadas as memórias de ver ao vivo Messi, Ronaldo (o nosso), Ronaldo (o deles), entre outros grandes ilustres da história do jogo. Mas não, no coração tenho o poker de Carlos Bueno ao Nacional da Madeira. Quatro golos de um jogador sofrível numa época perfeitamente vulgar do Sporting. Mais: Maradona não vi ao vivo, mas, ao identificar os três momentos que mais associo a uma carreira tão celebrada, aponto o golo à Inglaterra no México 1986, claro, e os dois penalties que Ivkovic lhe defendeu: um na Taça UEFA em 89, outro no Mundial de 90. Em rigor, foram dois penalties bastante mal marcados, mas, à época, Ivkovic era guarda-redes do Sporting. E é assim que as coisas funcionam.

Na prática, existe esta crença e partilho-a: o estabelecimento de um laço desta natureza permite uma adesão a uma rede muito particular de valores que, acreditamos nós, sustentam e simbolizam o clube do coração. Há uma partilha desses princípios entre clube e o desgraçado do tifoso. Nomeá-los não será tarefa fácil, mas essa bússola moral existe. Além de que o clube não será apenas um simples espelho de uma dada identidade, mas antes um sujeito activo e privilegiado na construção dessa identidade. Foi-o na construção da minha identidade, não sendo à toa que, na minha carteira, o primeiro documento visível é o cartão do Sporting. Na carteira, onde convivem várias identidades documentadas, esse cartão está à frente de todos os outros. Porque é mais importante do que todos os outros. 

Há quem diga que estas coisas mais não são do que uma ligação directa e semanal com a infância. Acredito que sim. Desde pequenos que percebemos que a identificação com um clube é um pequeno poder e uma afirmação de personalidade. Os adultos perguntam-nos e ouvem-nos de facto, o que é raro quando somos crianças. E esse poder só resulta porque sabemos — todos nós, crianças e adultos — que é uma ligação para a vida. Um vínculo separado dos demais, existente numa dimensão que ultrapassa a vivência familiar, estendendo-se à comunidade. E que, em simultâneo, funciona como ponto em comum com um grupo de indivíduos e o seu conjunto de valores, mas também como ponto de distanciamento em relação ao outro e ao seu outro conjunto de valores. A questão é que nada disso funcionaria se a mudança de clube fosse uma possibilidade. O envolvimento emocional seria diferente. Não se falaria da mesma forma em «ganhámos» ou «perdemos», em «nós» e «eles» ou «tivemos azar» e «não jogamos nada», porque não se verificaria um reconhecimento completo naquela luta semanal ou bissemanal. 

Se há coisa que sei é que não sou do Sporting para me divertir. Desconfio que ninguém seja de um clube com esse propósito. Vai havendo quem se divirta durante os jogos (garotos pequenos e pessoas bêbedas, essencialmente), mas a grande massa de rostos que vejo nas bancadas raramente estão divertidos, mesmo naqueles clubes chatos que passam a vida a levantar taças. São rostos tensos, agoniados e em sofrimento, de gente que sabe que esse é o estado natural de coisas e que será apenas interrompido por alguns instantes de euforia.

O futebol, pela natureza específica do jogo, lá vai cumprindo uma função social, conseguindo-o como nenhum outro desporto. Mas é o clube, a identificação com um clube, que viabiliza o cumprimento dessa função na sua plenitude. Se, porventura, o futebol deixasse de existir, os adeptos acabariam por acompanhar o clube noutro desporto qualquer. Provavelmente, o mais aproximado ao futebol, conceda-se, mas noutro. Mas e se o clube fechasse portas, iriam os adeptos estabelecer os mesmos laços profundos com outra equipa? Ou sequer parecidos? Não, na sua esmagadora maioria, não. Que dislate, pelo amor de Deus. Afinal de contas, sou do Sporting porque a Joana, naquela sala de aula em 1984, disse Sporting. Mas ela ia sempre dizer Sporting, está mais do que visto. Se assim não fosse, eu seria outra pessoa.   

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