GRALHAS

Num certo local, não muito longe nem muito perto daqui, há um pequeno deus com uma enorme gaiola dourada repleta de gralhas. As gralhas são uns pássaros muito barulhentos, semelhantes aos corvos, tanto pela dimensão como pela plumagem, distinguindo-se, no entanto, pelo bico, que é mais pequeno; pela cauda, que é mais arredondada; e pelas penas, que são menos brilhantes.

Está tudo muito bem, mas para que quer o pequeno deus uma gaiola dourada repleta de gralhas, que ao longe parecem moscas? Sabia que o leitor faria essa pergunta. Preparei, por isso, uma resposta quase verosímil. A esse pequeno deus foi atribuído um trabalho: sempre que um autor termina um texto, o pequeno deus recolhe-o e lança-o às gralhas. Os pássaros, que parecem estar sempre esfomeados, devoram tudo o que podem: pontuação, letras, palavras, às vezes frases inteiras. Depois, o deus recolhe o que resta do texto e devolve-o ao autor.

O autor de nada tem consciência porque tudo é feito no segredo dos deuses, por assim dizer. Uma manhã o autor acorda e o texto já não é o mesmo. É um pouco mais pobre, um pouco menos vivo, um pouco mais pobre e um pouco menos vivo do que na noite anterior.

Ora, este trabalho secreto de devastação é da mais absoluta importância, porque dele depende o equilíbrio natural das coisas. Sem as gralhas, alguns textos seriam perfeitos e a literatura não aguenta a perfeição. O peso de um só verso pode fazer balançar bibliotecas. Assim, quando tudo falha, quando a natureza claudica e aparece um texto perfeito, pleno de imaginação, de expressão poética, de jogo metafísico, de verdade e significado, as gralhas são o último recurso antes da hecatombe. Sem as gralhas há muito que a literatura tinha acabado.

 

 

UMA BELA VIDA

Antes de tudo tomar o rumo feliz que tomou, as coisas eram muito diferentes. Giovanni Capirola não tinha descanso. Todas as madrugadas, ainda antes de o dia despontar, os pássaros acordavam-no com uma avalanche de chilreios e assobios. E cumpriam tão fervorosamente as suas obrigações matinais, que Giovanni não se lembrava de ter dormido uma noite inteira em toda a sua vida. E isso custava-lhe muitos desgostos. E foi assim, dia após dia, ano após ano, desde que nasceu.

Ora, ao fim de todo aquele tempo de convívio, Giovanni tornara-se capaz de imitar a linguagem misteriosa e rebuscada dos pássaros, até aos mais ínfimos pormenores. Conseguia enganar qualquer criatura com penas, mesmo as mais desconfiadas. Atraía-as com chamamentos amorosos, por exemplo, e depois caçava-as com as próprias mãos. Um após outro, posso assegurá-lo, todos os pássaros desapareceram. Todos menos um.

Giovanni poupou um pintassilgo (Carduelis carduelis), a que deu o nome de Sofia Von Fulda e que tomou como esposa. E assim pôde finalmente concretizar o seu sonho de dias balsâmicos e silenciosos, de um lar próspero e tranquilo, de uma linda parentela, de doces sentimentos familiares, e de experimentar o que se pode chamar uma bela vida.

 

 

O PÁSSARO DO BRASIL

Pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pri-pru.

 

 

ORNITOLOGIA

Um homem imagina ser um pássaro. Está de tal maneira convencido de que é um pássaro, que agita os braços como se batesse as asas. E imita com impressionante graça o arrulho da rola selvagem. E faz biquinho. E sobe às árvores e aos beirais. E alimenta-se de milho e de outras sementinhas. E faz a corte a outras rolas. E é morto com um tiro de caçadeira.

 

 

Pássaros: pensamentos soltos das árvores.

 

 

POMBOS SELVAGENS

Ele não fez mais do que arremessar uma seta ao ar. A seta subiu, subiu, subiu, até desaparecer no azul profundo do céu. Depois, pendurou o arco nas costas e abriu o guarda-chuva. Começaram então a chover patos, gaivotas, pombos selvagens, uma infinidade de pequenos pássaros e uma máquina enorme e malfeita.

Jacob fechou o guarda-chuva e abriu o saco. De costas dobradas (apesar da artrose), abeirou-se de tudo aquilo e, em silêncio, com método, recolheu um pássaro após outro, e, por fim, a máquina. Recolheu tudo, à excepção dos pombos selvagens, que permaneceram tristemente abandonados pelo chão.

Explicarei isto depois. Lembrem-me disso.

 

 

COISAS QUE CAEM DO CÉU

Chuva, neve, granizo, navalhas, pianos, picaretas, relâmpagos, aviões, malas, pássaros, vasos, telhas, flores, folhas, castelos, meteoritos, borboletas, abelhas, vespas, papéis e o senhor Heitner Wasilewski em pessoa.

 

 

E ASSIM FOI PASSANDO O TEMPO

Por não ter mais que fazer, Seraphein Strausfeld começou a falar com as árvores. Passou dias e dias, meses, anos a fio a conversar com elas. Foi com Seraphein que as árvores aprenderam a falar francês e a contar anedotas indecorosas. As árvores diziam aos pássaros: “Ah, oiçam, oiçam!” E depois, coisa e tal. E os pássaros achavam tanta piada que caíam como tordos, pode dizer-se assim, fulminados por terríveis ataques de riso. E Seraphein gostava de ver os pássaros a caírem e a partirem as patas.

E assim foi passando o tempo.

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