COMO CITAR:

Rodrigues, Telmo. «Caridade, S.; Estrada, R.; Fonte, C.; Isabel Sani A.; Nunes, L.; Pimentel Alves, S. (Coord.), Comportamento e Saúde Mental: Dicionário Enciclopédico». Forma de Vida, 2019. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2019.0045 .



DOI:

https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2019.0045

Telmo Rodrigues

No contexto contemporâneo, uma enciclopédia ou dicionário novos representam acima de tudo uma lista bibliográfica actualizada sobre determinada área de interesse. Essa visão empobrecida ameaça qualquer empresa como a proposta por Comportamento e Saúde Mental: Dicionário Enciclopédico, que, como outros projectos similares, preserva a ambição de ser de alguma forma enriquecedor. A facilidade no acesso à informação fez com que se perdesse «a segurança da informação, pois as fontes se tornaram demasiadamente voláteis» (p. 506) e, num movimento contra-intuitivo, reavivou a necessidade de manuais cientificamente fidedignos, pelo que o sentido de oportunidade para esta edição é perfeito. Em função da profusão informativa em que vivemos, o objectivo que anima este volume, mesmo que não seja anunciado explicitamente, é introduzir alguma ordem à discussão pública sobre a saúde mental e às implicações cada vez mais abrangentes do conceito. A decisão de produzir um «dicionário enciclopédico» conciliou a vontade de conceber algo «claro, conciso, fiável», mas com a abrangência enciclopédica que lhe permitisse ser «reflexivo, crítico, remissivo» (xvii). 

Dividido em quatro partes («Comportamento Humano», «Saúde Mental versus Saúde Mental», «Ciências e Constructos» e «Métodos e Técnicas»), o volume agrega um conjunto de especialistas em diversas áreas para abordar questões relacionadas com o comportamento e com a saúde mental, num período em que «praticamente uma em cada dez pessoas sofre de um problema de saúde mental, mas apenas 1% dos profissionais de saúde trabalha nesta área» (401). A atenção mediática que tem sido dada à saúde mental, em grande medida reflexo de comportamentos provocados pelas relações que vamos estabelecendo com as novas tecnologias, introduziu no discurso público um conjunto alargado de expressões e conceitos que hoje tomamos por familiares sem que entendamos necessariamente a sua origem ou as suas implicações. Assim, expressões como burnout, psicodança, pós-humano e pós-verdade, troll, mindfulness ou até zen coexistem com definições de termos mais prosaicos como psicologia, aprendizagem, toxicodependência ou parentalidade, numa tentativa de abranger tudo o que possa afectar, positiva ou negativamente, a saúde mental (e consequentemente os comportamentos humanos).

Um dos problemas inerentes ao conceito de saúde mental reside no facto de este ser «coerente com amplas e variadas interpretações das culturas» (282). Isto é, o que tomamos por saúde mental pode variar em função de contextos sociais, o que implica uma definição necessariamente abrangente da expressão:

(…) a saúde mental carateriza-se pelo caráter amplamente inter e transdisciplinar e intersetorial. Vários saberes se encontram no campo da saúde mental, entre os quais estão a medicina, psicologia, psicanálise, filosofia, antropologia, sociologia e história, o qual é perpassado por inúmeras questões de ordem ideológica, política, social e cultural. (400-1)

 A lista de áreas de estudo que de uma forma ou de outra se relacionam com a saúde mental, e às quais poderíamos ainda acrescentar o direito, é de tal forma ampla que dificilmente se poderia esperar coesão e uniformidade. A própria «inter e transdiciplinaridade» de muitos termos parece autorizar a amplitude com que se constitui este volume (a definição de «ira», por exemplo, é ilustrada por versos de uma canção de Teardo & Bargeld, o que será no mínimo inesperado num livro desta natureza).

Em muitos momentos, a necessária brevidade com que se aborda cada tema obriga a que ou se assuma frontalmente a impossibilidade de completude ou se tenha de escolher apenas um aspecto particular para desenvolver. A entrada dedicada à «ciência» expressa a questão com clareza:  

Definir ciência é uma tarefa complexa e até algo artificial, na medida em que se procura delimitar conceptualmente um corpo quase intemporal, dinâmico e plural de significados. Freire-Maia (1998) aponta três motivos para essa dificuldade:

- Qualquer definição é incompleta (há sempre algo que foi excluído ou que poderia ter sido incluído);

- O tema é complexo;

- As diferentes definições não são consensuais. (244)

A dificuldade em relação à «ciência» é replicada noutras entradas e, maioritariamente, a melhor resolução consiste exactamente em assumir que além de estabelecer a relação do conceito com a saúde mental, pouco mais há a fazer do que abrir espaço para linhas de investigação.

Mas há uma tensão ao longo do volume que pode ser ilustrada por um pequeno lapso na entrada dedicada à «aprendizagem»: «Este processo natural, [a aprendizagem], largamente discutido nos campos filosóficos e pedagógicos, é estudado cientificamente pela psicologia, em diferentes teorias que espelham a complexidade do processo de aprendizagem nas suas dimensões e contextos» (22). O lapso consiste na separação entre ciências, e na introdução da psicologia no seio das ciências exactas. A dificuldade manifesta-se consistentemente ao longo da obra, com várias tentativas de tornar claro que a psicologia se separa das ciências de foro humanístico pela sua exactidão; no entanto, a razão de ser deste volume passa precisamente por notar a dificuldade de diagnosticar problemas mentais: «se os diagnósticos das doenças físicas já deixam “muito a desejar”, pior ainda quando nos referimos às “doenças do comportamento”, para as quais não temos meios laboratoriais para precisá-las» (271). O problema já estava declarado na definição de «ciência»: «A psicologia, enquanto ciência do comportamento e da saúde mental, não está imune a esta discussão. Pelo contrário, estigmatizadas pelo rótulo de “não exatas”, as ciências do comportamento continuam a ter de provar a sua robustez e o seu rigor» (246). O volume fica mais fraco onde se tenta demonstrar, ou se assume, que as ciências do comportamento estão filiadas às ciências exactas.

A dificuldade em «precisar» o diagnóstico de doenças mentais deriva de ser feito, na maioria das vezes, somente em função de variações comportamentais; ora, o facto dessas mudarem consoante contextos sociais, ainda para mais com a facilidade de comunicação a introduzir mudanças de forma mais rápida nesses mesmos contextos (o imitar tendências de outras culturas, por exemplo, tornou-se algo comum na era digital), dificulta ainda mais o diagnóstico:  

(…) saúde mental não é só a capacidade de adaptação sistemática do sujeito ao meio, mas implica respostas adaptativas, embora inadaptação não signifique necessariamente doença mental (Sequeira, 2006). O diagnóstico, entendido então como tal etapa do planeamento que orienta as práticas (os cuidados do médico, do enfermeiro, do psicólogo, do assistente social, etc.), é fundamental na saúde, na saúde mental, na doença, na doença mental, etc., sendo que a sua determinação/definição é mais objetiva e objetivável numas situações do que noutras. (271)

Por todas as decisões tomadas no campo da medicina através de avaliações laboratoriais, haverá um conjunto de problemas que depende de uma análise individual e que não pode ser validado por uma ciência exacta, mas sim pela capacidade de observação de sintomas e comportamentos. Quanto mais cuidada for a observação, mais preciso será o diagnóstico.

Um exemplo óbvio será o caso da dislexia, hoje um problema comum no meio escolar, onde a discussão sobre a facilidade com se diagnostica a doença (que envolve um conjunto de medidas que separam alunos disléxicos dos outros) tem sido levantada por muitos docentes. Na listagem de «sintomas comuns» associados à dislexia pode ler-se que, entre outros, «o feedback do professor costuma ser: “Se ao menos ele(a) trabalhasse mais”, ou “Ele(a) é preguiçoso”.» Logo a seguir, depois de listar a «disgrafia (défice na expressão escrita), discalculia (défice na matemática) e a perturbação de hiperactividade e défice de atenção (PHDA)», acrescenta-se um conjunto de sintomas que são comuns nos casos de dislexia: «problemas quanto à organização; perder papéis, cadernos e material escolar; pobre noção de tempo; esquecer-se frequentemente de fazer os trabalhos de casa; mesa suja e efetuar as tarefas muito devagar» (122-3). Com esta lista de sintomas, será sempre difícil determinar se um aluno é disléxico ou só preguiçoso e desmazelado.

A dislexia, como outros problemas abordados, requer sobretudo um elevado grau de atenção para poder ser diagnosticada: é preciso estar atento aos possíveis sintomas, acompanhar a evolução, pedir aconselhamento especializado (psicológico e pedagógico), estar pronto a agir em caso de necessidade, etc. E é precisamente aqui que reside a mais valia deste volume, no listar de comportamentos que podem de alguma forma denotar problemas, anunciando igualmente um conjunto de práticas ou técnicas a que se pode recorrer para tentar debelar esses mesmos problemas. A aproximação de algumas definições às ciências exactas é por isso mais pernicioso do que vantajoso e, de certa forma, um desvio ao sentido original de diagnóstico:

O estudo semântico do termo [diagnóstico], feito por Sauri (2001, citado por Maesso), indica o significado amplo do vocábulo como ato de conhecer, separar, discernir, implicando uma decisão. Refere o autor que, na antiguidade, o termo era utilizado num território extenso (além da medicina, pelos dramaturgos e filósofos), mas enfatiza que, embora o termo se estenda a campos do conhecimento como o social, o económico, o político, o psicológico, houve como que uma restrição e fixação de significação do termo ao campo médico. (270)

O diagnóstico, originalmente, não estava circunscrito à medicina, e era usado por dramaturgos e filósofos exactamente por os actos de conhecer, separar e discernir serem fundamentais para tomar uma decisão (seja ela de que natureza for). Será por isso que as entradas mais interessantes neste dicionário enciclopédico ignoram a problemática das ciências exactas e assumem a necessária incompletude de qualquer tentativa de definição absoluta para se focarem em aspectos particulares do que pretendem definir.

A entrada dedicada ao «ócio», por exemplo, limita-se a traçar a evolução etimológica da palavra. Mas ao fazê-lo, e ao apontar as relações diferentes que fomos tendo com o conceito, é particularmente contundente na qualificação de um problema educativo de que somos hoje vítimas:

esta mudança semântica, que afastou a escola do seu sentido etimológico, tem levado alguns autores a considerar que, hoje, as escolas, excessivamente preocupadas em preparar para a empregabilidade e para o trabalho, abdicam de valorizar o ócio, de educar para o ócio, para a usufruição do tempo livre, como um tempo criativo e virtuoso, como um tempo em que o Eu procura em si a energia espiritual benéfica e a partilha com o Outro, seu semelhante, desde logo, no âmbito restrito dos seus próximos e a projeta na sociedade, afirmando-se como cidadão esclarecido e empenhado na defesa de valores que concorram para o respeito pela vida e pela dignidade humana. (51)

Comportamento e Saúde Mental poderá ser entendido como um reflexo evidente do seu tempo e, portanto, «a datação dos textos prenuncia a consequente desatualização» (xvii); por outro lado, «a informação precisa ser transformada em conhecimento» (507) e este volume serve o seu propósito precisamente por muitos dos problemas que aborda, e que nos afectam nestes tempos conturbados, só poderem ser diagnosticados mediante mais e melhor informação.

 

REFERÊNCIA:

Alvez, Sónia; Ana Isabel Sani; Carla Fonte; Laura M. Nunes; Sónia Caridade; Rui Estrada, coord. Comportamento e Saúde Mental: Dicionário Enciclopédico. Pactor: Lisboa, 2019.