COMO CITAR:

Ramos, Tiago. «Jane Campion, The Power of the Dog». Forma de Vida, 2022. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2022.0020 .



DOI:

https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2022.0020

Tiago Ramos*

 

When my father passed, I wanted nothing more than my mother’s happiness. For what kind of man would I be if I did not help my mother? If I did not save her?[1]

 

A epígrafe corresponde à frase que serve de preâmbulo à mais recente longa-metragem de Jane Campion, The Power of the Dog (2021). A frase é enunciada, por meio da voz-sobreposta, ainda no decorrer da sequência de créditos inicial. A figura responsável pelo enunciado é Peter Gordon (Kodi Smit-McPhee), um jovem abúlico que vive com a sua mãe num povoado isolado nas planícies de Montana, em 1925. O facto de ser Peter quem tem o controle da voz-sobreposta é um dado relevante, na medida em que sinaliza, antes de a acção começar, qual é a personagem que tem poder sobre o discurso fílmico. Desta forma, a narração preambular cumpre vários propósitos. Por um lado, estabelece Peter na qualidade de narrador, o que lhe confere um estatuto de autoridade no contexto da economia narrativa. Por outro, delineia, de forma lacónica, as motivações do herói da trama – isto é, proteger a mãe e cumprir-se enquanto homem.

No seguimento do preâmbulo, a acção gravita em torno de dois irmãos, Phil (Benedict Cumberbatch) e George Burbank (Jessse Plemons), que são proprietários de um rancho, em Montana. Phil encarna o arquétipo do cowboy viril que lidera um grupo de homens e que doma a paisagem do faroeste. O primeiro plano que figura Phil enquadra-o diante de uma fileira de montanhas. A personagem está a dirigir-se à casa onde habita com o irmão. Uma vez no interior da habitação, Phil sobe, com celeridade, ao patamar superior da casa em busca do irmão. Phil sobe dois degraus de cada vez, com as esporas das suas botas a pontuar o seu andar. O modo rompante como Phil caminha caracteriza-o imediatamente como um homem de acção. George, por sua vez, é apresentado deitado dentro de uma banheira. Aliás, as primeiras palavras que ambos trocam são a respeito de higiene. George pergunta ao irmão se este alguma vez tomou banho naquela banheira, ao que Phil responde, com visível orgulho, que nunca fizera tal coisa.

Os primeiros contornos da caracterização dos irmãos Burbank revelam o motivo que os separa. Enquanto Phil se adaptou à rudeza do trabalho que desempenha no rancho, George tenta preservar os costumes higienizados da vida citadina. Tudo é oposto entre este Rómulo e Remo (expressão utilizada por Phil para se descrever a si e ao irmão). Traços físicos, linguagem corporal, temperamento, indumentária e maneira de agir: tudo diverge. Assentes em polos opostos em quase todas as matérias, a hostilidade entre ambos é evidente. Acima de tudo, Phil ressente o irmão por este desprezar a memória de Bronco Henry, o cowboy que lhes ensinou os diferentes ofícios necessários à manutenção de um rancho. Bronco Henry representa o ideal de masculinidade que Phil procura emular.

Certo dia, o caminho dos irmãos Burbank cruza-se com o de Peter e de sua mãe, Rose (Kirsten Dunst), a proprietária de uma estalagem onde Phil e George pernoitam. Peter, um jovem de compleição macilenta, interessado em artes e em ciências da natureza, encontra-se distante do modelo de masculinidade que tem a sua máxima expressão no fantasma, com proporções lendárias, de Bronco Henry. O rapaz está desenquadrado neste cenário povoado por cowboys que incorporam nos seus gestos a aspereza da paisagem.

Na primeira sequência protagonizada por Phil e Peter, o último é humilhado pelo rancheiro. Phil emascula-o ao intitulá-lo de «Miss Nancy» e ao ridicularizar umas flores de papel feitas pelo rapaz. Contudo, é sugerido, nesta interacção inicial, que a hostilidade de Phil encobre sentimentos de outra natureza para com Peter. A dado instante, Phil olha na direcção de Peter e, no seguimento desse olhar de soslaio, o espectador tem acesso a um grande-plano do dedo indicador de Phil. O cowboy está a penetrar, com o dedo, uma das rosas feitas por Peter. Associado a esse gesto de penetração está a ideia de desfloramento e à rosa está associado Peter, por metonímia. Deste modo, é prefigurado, no começo da acção, aquilo que se descobrirá adiante: o desejo de Phil por Peter.

Entretanto, a intriga progride com o brotar de um romance entre George e Rose. Os dois casam-se em segredo, não obstante a desaprovação da família Burbank. Rose vende a estalagem e muda-se para o rancho dos irmãos Burbank, o que deixa Phil colérico, dado que este considera que a cunhada é uma arrivista. Na primeira noite de Rose no rancho, Phil ouve os gemidos dos recém-desposados. Face a este confrangimento, Phil ausenta-se e dirige-se ao estábulo, onde se encontra, assente num pedestal, a sela na qual Bronco Henry montava. Phil pega na sela e limpa o cabedal, esfregando-o com movimentos lentos, mas vigorosos. A sela é um objecto fetiche para Phil. Por um lado, representa o imaginário do cowboy a que este aspira. Por outro, é uma extensão do seu antigo proprietário, Bronco Henry. Depois do enceramento da sela, a acção desloca-se para um lago, onde Phil se banha nu. O lago também parece estar associado ao protagonista ausente: Bronco Henry. Sugere-se adiante que o lago terá sido o sítio onde Phil e Henry se encontravam romanticamente. Ou seja, perante o consumar sexual dos recém-casados, Phil procura satisfação no objecto representativo da sua antiga paixão, assim como se refugia no local paradisíaco onde aparentemente o seu amor por Bronco Henry não era proibido.

Peter, o protagonista da intriga, cuja enunciação desponta a acção, retorna apenas na segunda metade da longa-metragem. A personagem desaparece do xadrez narrativo depois do casamento de George e Rose, uma vez que Peter, patrocinado pelo capital dos Burbank, ingressa na universidade com o intuito de se tornar num cirurgião. Durante o período em que Peter se ausenta da acção, o enredo foca-se na relação de Phil e Rose. As interacções entre ambos resumem-se à Sra. Burbank ser atormentada pelo cunhado.

Quanto a Peter, este chega ao rancho no final de um dia que havia sido dedicado à castração de bois. Phil corta-se a castrar um boi no preciso instante em que Peter entra no rancho. O corte no dedo de Phil representa a possibilidade de castração do próprio às mãos de Peter. No seguimento do corte, Phil pede aos cowboys que trabalham para si para importunarem Peter, que naquele momento está a ser incomodado pelo cão do rancho.

Além disso, Peter reinscreve-se na narrativa sob o signo da armadilha, um dado relevante porquanto a totalidade do terceiro acto corresponde à orquestração de uma armadilha que Peter monta tendo em vista capturar Phil. Todavia, a armadilha que Peter começa por montar tem como presa um coelho. Todos os residentes do rancho que tomam conhecimento da captura do coelho assumem que Peter quer domesticá-lo. Existe a assunção, por parte de todos, de que os gestos efeminados do protagonista são sintomáticos de uma forma de infantilidade ou de fraqueza. Na realidade, o propósito de Peter, ao apanhar o coelho, é outro: matá-lo e dissecá-lo. Esta sequência de eventos, que culmina com a dissecação do animal, altera a caracterização de Peter. Apesar da sua aparência débil, Peter é capaz de montar armadilhas (o que requer destreza e engenho) e tem o sangue-frio necessário para esventrar um animal sem hesitação. Aliás, logo nos minutos iniciais, ainda no período em que Peter e Rose viviam na estalagem, esta pede ao filho para ele matar as galinhas que serão servidas ao jantar. Este comentário aparentemente banal, em conjunto com a dissecação do coelho, informam o espectador de que Peter concentra em si um potencial violento.

Após a dissecação do animal, Peter encontra o esconderijo de Phil. Para entrar no refúgio de Phil, Peter é forçado a atravessar um túnel estreito. O movimento penetrativo ilustra, simultaneamente, uma violação e uma aproximação à intimidade desta personagem. Uma vez atravessado o túnel, Peter encontra um latíbulo interdito a todos menos Phil. Peter entra dentro desse alçapão e lá encontra revistas de fisiculturismo assinadas por Bronco Henry, o derradeiro totem de masculinidade. Nas revistas estão impressas fotografias de homens nus em posições exibicionistas. Não é uma coincidência que poucos segundos após esta descoberta Peter veja Phil nu a nadar no lago. A exposição do corpo de Phil aos olhos de Peter figura uma outra forma de nudez, na medida em que os seus segredos foram desvendados e a sua orientação sexual desmascarada. Ou seja, Peter volta a desenvolver uma espécie de dissecação, na qual a interioridade de outrem é exposta. Desta feita, a vítima é Phil.

Uma vez descoberta a homossexualidade de Phil, a relação deste com Peter muda radicalmente. Phil deixa de escarnecer Peter e passa a tratá-lo como o delfim do rancho. A entrada de Peter no espaço designado a Bronco Henry e Phil faz com que o último passe a ter como objectivo replicar com Peter a dinâmica que tinha com Henry. Esta reencenação passaria por Phil desempenhar o papel de mentor associado a Bronco Henry e Peter o papel de aprendiz, que outrora fora desempenhado por Phil. Isto porque Phil apenas aprendeu as responsabilidades de se ser um rancheiro já em adulto, depois de se ter graduado em Estudos Clássicos pela Universidade de Yale. Deste modo, Peter é o duplo do jovem inexperiente, interessado pela cultura, que Phil fora quando era jovem.

Ademais, a ambição de Phil em desempenhar o papel de mentor uma vez assumido por Bronco Henry dá conta de um novo desejo de possessão. Phil quer possuir Bronco Henry, ao adoptar a sua posição na relação com Peter, assim como deseja ser possuído pelo antigo amado, na medida em que, ao emular as acções de Henry, o corpo de Phil está a ser tutelado pelos gestos do falecido. Como tal, Phil deseja possuir e ser possuído pelo fantasma da figura ausente.

O erro de Phil é assumir que o desvio de Peter dos padrões de masculinidade vigentes em Montana, em 1925, corresponde a uma homossexualidade latente ou até uma forma de fraqueza. Numa sequência protagonizada por Peter e Phil, o rancheiro protesta ante a noção de que Peter é um rapaz duro. Na óptica de Phil, a dureza dos homens é consequente da sua aderência ao imaginário do cowboy. No seu entender, como Peter se desvia desse modelo de masculinidade, então ele não pode ser duro. Peter aproveita-se dos preconceitos que enceguecem o julgamento de Phil para o seduzir, enredando-o numa armadilha. Phil acha que Peter lhe presta o mesmo tipo de veneração filial e amorosa que ele tinha para com Bronco Henry quando, na realidade, o protagonista tem em vista a vingança e o amor pela mãe.

O enredo termina com a morte de Phil, que é envenenado por Peter. Através de um conjunto de artimanhas, Peter infecta, com carbúnculo, uma ferida que Phil tinha na mão. Assim sendo, Phil morre no seguimento de uma infecção que teve como origem um golpe semelhante àquele que este fez aquando da castração dos bois, sendo que este episódio se sucede no instante em que Peter reentra na acção. O agente que precipita a castração é Peter, ao recusar ser o objecto de gratificação que permitiria a Phil encarnar o fantasma de Bronco Henry e possuir o seu próprio duplo.

Peter não comparece ao funeral de Phil. Em lugar de lhe prestar homenagem, o protagonista é enquadrado diante uma fileira de montanhas com o cão de Phil a seu lado, domesticado. Peter conquistou a paisagem e o rancho sem obedecer aos códigos de masculinidade que regem aquele ecossistema social. Na última sequência do filme, Peter pega numa corda de couro feita por Phil. Por momentos, parece que Peter pode criar uma ligação de fetiche com o objecto, à semelhança da relação que Phil tinha com a sela. Contudo, o protagonista agarra a corda com o fim de a colocar debaixo de uma cama, retirando ao objecto a dignidade que o pedestal dava à sela. De seguida, Peter aproxima-se da janela do quarto onde está, no piso superior da residência, e dirige o seu olhar ao piso inferior, onde a sua mãe e George se encontram a beijar. O objectivo do herói foi cumprido: a mãe foi salva de Phil e o seu futuro bem-estar está garantido.

 [1] «Quando o meu pai morreu, não queria mais nada para além da felicidade da minha mãe. Que tipo de homem seria eu se não ajudasse a minha mãe, se não a salvasse?»

*CEAUL

REFERÊNCIAS:

Campion, Jane, realizadora. The Power of the Dog. Netflix, 2021. 2 hr, 06 min.