Telmo Rodrigues
Numa ficção de cariz autobiográfico recente, A Lição do Sonâmbulo (2020), Frederico Pedreira parecia interessado nas consequências vinculativas de actos não intencionais (ou pelo menos na dificuldade de contar uma história pessoal que vacila entre a educação formal e a relevância constitutiva de actos aparentemente insignificantes). A dificuldade nesse Bildungsroman era articular a dissonância entre a relevância efectiva do trabalho intelectual e o peso que tem qualquer acção desligada desse esforço: jogar à bola num quintal é mais relevante para a formação de carácter do que as horas perdidas a ler Pessoa; mais difícil ainda é articular a relevância entre ler Pessoa sem compromisso e a inutilidade da mesma acção inserida num contexto académico:
Não sei se terá sido sonho meu, dado o prazer que sempre senti ao reler as páginas da pobre edição d’O Livro do Desassossego que o meu avô fizera questão de me oferecer, prazer esse que depois da odiosa obrigação escolar se fora tornando independente e crescendo ao longo dos anos de leitura canina (…) (A Lição do Sonâmbulo, p. 32).
A lição do sonâmbulo parecia, por isso, mais determinante do que a lição do aluno obsequioso e atento.
O livro de ensaios que acaba de publicar, Um Virar de Costas Sedutor, partilha algumas afinidades com estas preocupações. O que Pedreira esboça nos dez ensaios que compõem o volume é uma teoria sobre um «género» de poesia em que, da mesma forma, o mais relevante resulta de actos aparentemente não reflectidos ou dos quais não se esperam certas consequências: «(…) o poema possível, aquele que, muito ao contrário daquilo que seria de esperar quando se parte para o mesmo com expectativas de “uma ideia de arte poética”, é lido como se se escutasse uma conversa a meio» (p. 53). Com base em conceitos criados em torno das artes visuais, nomeadamente do importante ensaio «Art and Objecthood», de Michael Fried, Pedreira cria uma teoria poética que isola alguns poetas como produtores de um «género poético» que se distingue pela aparente falta de intencionalidade dos seus efeitos e das consequências de certos trejeitos que não são intelectualmente motivados. Estes poemas constituem-se internamente por meio dos artifícios técnicos que os edificam, mas distinguem-se por «lapsos» em que o poeta se expõe aparentemente de forma não intencional. Como numa conversa escutada a meio, muita da informação induzida por este artifício técnico pode parecer descontextualizada ou até insondável, mas é parte da sedução desta poesia.
A teoria de Pedreira assenta numa distinção proposta por T.S. Eliot:
Eliot define três vozes em poesia: a do poeta que fala para si mesmo, a do poeta que se dirige ao público, e por fim a do poeta que se dirige ao público através de uma ou mais personagens, sendo esta voz comummente associada ao drama em verso ou à poesia dramática. (…) Independentemente da forma como se queira designar esta primeira voz, ela é, antes de tudo, a voz do poeta que fala para si mesmo ou “para ninguém”. (p. 66)
Identificando os poetas que lhe interessam como poetas que falam para si mesmos, e, portanto, pertencentes à primeira voz de Eliot, Pedreira concentra-se no refinamento de alguns conceitos comuns sobre poesia. Uma dificuldade inerente à teoria proposta consiste em isolar no acto da escrita, evidentemente consciente e intelectualmente motivado, a ideia de não-intencionalidade:
A primeira voz da poesia, a do poeta “falando para si ou para ninguém”, tem necessariamente de se converter, pelo menos em parte, numa segunda voz, a que se dirige a um público; caso contrário o resultado seria o que Wittgenstein descreve: uma “gaveta cheia de manuscritos” cuja não publicação ou cujo carácter não partilhável parece ser indissociável do seu valor (p. 87).
Perante a impossibilidade de conceber a escrita como um processo não-intencional, Pedreira assume a necessária teatralidade do acto criativo, fazendo a sua teoria evoluir para uma redefinição da noção de intimidade: «a intimidade é o que de emotivo se deixa escapar no poema, o que acontece quase por acidente, mais precisamente no desvio entre aquilo que um poema deve ser e o que o poema acaba efectivamente por ser» (p. 160).
É precisamente esta dicotomia que o título do volume pretende isolar:
Em poesia, o contrário do apelo explícito ao público é uma noção enviesada de intimidade, um virar de costas sedutor da parte do poeta. Trata-se de um virar de costas porque o poeta não procura conquistar o leitor através de um denominador comum designado “poesia” (o poema-monumento ou o poema-pedestal referidos anteriormente). Ao mesmo tempo, a sedução desse virar de costas provém da linguagem, de um vocabulário próprio que só se encontra no momento em que é criado, das relações internas que compõem o poema e que não apontam para algo que seja um motivo de interesse exterior às particularidades da sua sintaxe. (p. 45)
Esta sintaxe interna não tem valor por si só, mas funciona como uma forma de estabelecer uma relação entre poeta e leitor:
Ora, se por conversa entendermos interpretação e uma continuidade conferida ao poema através de um diálogo, ainda que no domínio abstracto ou mental, entre leitor e poeta, podemos igualmente dizer que o risco dessa conversa é não só endémico como essencial às experiências da escrita e da leitura do poema (p. 120).
Mais do que isolar um conjunto de autores dentro de um género, que é o seu objectivo explícito, o que sobressai da teoria de Pedreira é uma relação particular com a poesia na qual, como vimos, o que está em jogo não é o «denominador comum designado “poesia”». Podemos atestar esta ideia pela forma como certos termos evoluem ao longo da exposição. Por exemplo, quando estabelece a relação com a teoria da arte no início do volume, o autor compara o poema com um objecto de arte que confronta, pelas suas dimensões, o visitante de um museu. A natureza obstrutiva que impõe aos movimentos do visitante tornam o objecto numa presença física com a qual nos temos de relacionar («pretende-se que o objecto seja incontornável»); a relação com a poesia estabelece-se aqui pela natureza impositiva do poema, em «imaginar o poema como um estorvo, um objecto que exige ser contemplado por determinadas características que o tornam impositivo» (p. 26). Esta primeira posição sobre poesia será revista e, depois de isolar a teoria das vozes poéticas de Eliot, Pedreira usa o conceito de «estorvo» num sentido ligeiramente diferente:
Parece que tanto [Gottfried] Benn como Eliot consideram o poema lírico ou meditativo, escrito pelo poeta que fala para si mesmo ou para ninguém, um problema de natureza íntima, uma espécie de incómodo ou estorvo, talvez uma confusão ou hesitação de ordem intelectual que precisa de ser resolvida (p. 68).
Este estorvo já não diz respeito à natureza impositiva do poema, mas a um elemento interno ao poema com o qual o poeta se confronta: a dificuldade passou do leitor para o poeta, sem que seja, ainda assim, exclusiva do poeta (nunca o poderia ser, no sentido público em que a poesia não se confina a uma «gaveta cheia de manuscritos»). Mais tarde, a palavra «estorvo» ressurge, numa discussão sobre o filme Interiors (Woody Allen, 1978), para sublinhar que o efeito de intimidade pode ser prejudicado precisamente pelo aparato técnico que compõe um poema: «Não deixa de ser curioso o facto de a decoração de interiores surgir aqui como um impedimento ou estorvo no que diz respeito à intimidade entre estas pessoas» (p. 99). Esta evolução do termo tem um carácter mais amplo e define dois tipos de abordagem à poesia: por um lado a ideia de que um poema tem valor por nos obrigar ao confronto com as suas características técnicas, por outro, a noção de que certas dificuldades que encontramos em poemas dizem respeito exclusivamente à composição interna do objecto e que não têm valor desligadas de uma tentativa de fazer sentido do poema.
Esta posição implica que, embora aceitando «que os poemas não podem ser sinceros nem dar desgostos (algo que está reservado ao relacionamento entre pessoas)» (pp. 49-50), ainda assim uma relação com este género de poesia é uma relação de confiança e «não é possível falarmos de intimidade em arte ou poesia de um modo inteiramente diferente daquele que concebemos ao pensarmos em intimidade entre pessoas» (p. 101). O passo seguinte nesta teoria é por isso sublinhar a relevância da noção de intimidade num meio onde um certo grau de teatralidade, por mínimo que seja, não pode ser eliminado:
A teatralidade é uma condição intrínseca a toda a arte, ao passo que a intimidade é uma condição intrínseca à experiência humana. Com isto pretendo afirmar que toda a arte corre o risco de ser teatral, enquanto a intimidade constitui uma possibilidade (e não uma condição garantida) da experiência (p. 79).
Esta intuição de que Pedreira nos oferece não apenas uma teoria poética mas uma definição mais ampla do que pode ser uma relação com a poesia é reforçada pela gama de recursos a que recorre para delimitar a sua teoria: da teoria da arte ao fado, do cinema ao teatro, passando pela filosofia, a amplitude de exemplos a que recorre liberta a poesia do seu funcionamento interno, das minudências históricas em que é normalmente articulada, do mero «estorvo» técnico que tem sido defendido em vários locais como sua virtude única. Como esclarece a partir de Cavell, mesmo que um poema não possa ser entendido como uma entidade com a qual nos possamos relacionar como nos relacionamos com pessoas, ainda assim a relação com a poesia depende do tipo de confiança que devotamos às relações humanas:
E os riscos de fraudulência ou de confiança não são apenas endémicos, mas também essenciais à experiência da arte. O facto de um determinado poema nos parecer inicialmente estranho ou distante (no seu tom, dicção, temática, etc.) é, de certo modo, o que motiva ou impulsiona a possibilidade de uma proximidade íntima com o mesmo; por outra palavras, é o risco (ou a possibilidade) constante de fraudulência que atribui todo o interesse à experiência da intimidade na leitura de um poema.
Tal como acontece na experiência religiosa a experiência da intimidade em poesia só pode ocorrer quando se estabelece uma relação de confiança (e não de desconfiança) que nos permite pôr à prova a nossa crença (no poema ou poeta). (p. 104)
As características técnicas e formais de um poema não são despicientes, pelo contrário, mas não são em si um valor intrínseco, ou seja, essas características não têm valor por si só:
Tal como muitas vezes a verdadeira intimidade que temos com algumas pessoas resulta não tanto de dados biográficos (o relato de uma história pessoal, por exemplo) como de uma familiarização com gestos, trejeitos, entoações e outras particularidades expressivas, assim sucede com o género de poesia que tenho vindo a descrever (p. 170).
Ao recorrer a todos estes exemplos externos à poesia, o que Pedreira acaba por permitir é um entendimento da poesia como apenas mais uma forma de darmos sentido a um conjunto de relações que mantemos, seja no domínio abstracto ou concreto, com outras pessoas. Precisamente como o narrador de A Lição do Sonâmbulo declara a certo momento sobre pessoas com quem se relacionava num país que não era o seu: «[m]ais do que deparar com obstáculos linguísticos, eu não conseguia encontrar-me com essa gente, não percebia os motivos que lhes suscitavam o humor, a indignação, não entendia o que os motivava nem o pouco que os deixava ensimesmados» (p. 102). É precisamente esta incompreensão, esta necessidade de esclarecer dificuldades, que funda a nossa ligação com a poesia, com as outras artes e, em última análise, com as outras pessoas.
REFERÊNCIA:
Pedreira, Frederico. Um Virar de Costas Sedutor. Lisboa: Relógio d'Água, 2022.