Madalena Simões Leitão
Muitos foram os movimentos que trataram de contestar a ideia da mulher frágil e reprimida, limitada ao espaço da sua casa. Mas esta é a ideia da mulher branca, de uma classe específica. De parte, são colocadas as mulheres negras, indígenas, asiáticas, africanas, mulheres menosprezadas ao longo da narrativa europeia, «consideradas animais no sentido de seres “sem gênero”, marcadas sexualmente como fêmeas, mas sem as características da feminilidade.» (Lugones, 74) A luta contra este desprezo e abandono será então feita através de uma ruptura com os ideais de um feminismo hegemónico e do crescimento do feminismo decolonial.
Este novo feminismo vem combater os movimentos de um feminismo branco e imperialista, profundamente marcado pelo capitalismo e que, citando Françoise Vergès em Um Feminismo Decolonial, «empreendeu a missão de impor, em nome de uma ideologia dos direitos das mulheres, um pensamento único que contribui para a perpetuação de um domínio de classe, de género e de raça.» (Vergès, 20) O feminismo decolonial procura destruir todo este pensamento e apoia-se «nas teorias e práticas que muitas mulheres forjaram ao longo do tempo no contexto das lutas anti-racistas, anticapitalistas e anticoloniais» (ibid., 46).
Variadas são as lutas nestes movimentos, e muitas são as vozes. E, através da ficção, é possível encontrar um espaço fértil que incita ao diálogo, um lugar que, sendo de fractura com os conceitos restritos ocidentais, é também seguro e inclusivo, de construção de novas ideias abertas a todas.
A escrevivência é um exemplo de voz decolonial, e Insubmissas lágrimas de mulheres representa a resiliência dessas mulheres marginalizadas. Cunhado pela escritora afro-brasileira Conceição Evaristo, o termo escrevivência é fruto de uma aliança entre a ficção e a realidade e é a procura «[d]a fala de quem conta» (Evaristo, s/p), tornando-se assim o ponto primordial do modo de criação da escritora:
Da voz outra, faço a minha, as histórias também. [...] Portanto estas histórias não são totalmente minhas, mas quase que me pertencem, na medida em que, às vezes, se (con)fundem com as minhas. Invento? Sim invento, sem o menor pudor. Então as histórias não são inventadas? Mesmo as reais, quando são contadas. Desafio alguém a relatar fielmente algo que aconteceu. Entre o acontecimento e a narração do fato alguma coisa se perde e por isso se acrescenta. (Evaristo 2016, s/p)
Sendo a tradição oral, no contexto africano, um meio central no acto de contar histórias, Evaristo procura então essas vivências e essa realidade para as aliar à sua voz literária. A sua escrita é demarcada num contexto seguinte ao da abolição da escravatura, da Lei do Ventre Livre e da Lei Áurea, sendo a partir de memórias, conversas e sonhos que a escritora expõe as vivências das mulheres afro-brasileiras nas periferias do Brasil. Evaristo cria essa aliança entre a imaginação e a realidade no livro de contos Insubmissas lágrimas de mulheres (2016), dando voz e um novo olhar a um feminismo mais amplo e diverso, de ruptura com a hegemonia e de abertura a todas as mulheres a um feminismo decolonial.
Neste livro, onde cada conto se intitula com o nome da mulher protagonista, é possível encontrar treze histórias que nos permitem conhecer essa voz apagada e menosprezada e esse olhar a que o discurso de Evaristo atenta: a submissão, a sexualidade, a violência, a maternidade e a herança traumática da escravidão. A tom de exemplo, observemos algumas mulheres retratadas nesta obra: Natalina Soledad que, por ter nascido mulher, era uma filha indesejada e, por isso, o pai colocou-lhe um outro nome desagradável, que pudesse representar o facto de ela ter sido «mal-vinda ao seio familiar» (ibid., 21); Maria do Rosário Imaculada dos Santos que, quando criança, é raptada e levada para longe da família, para poder servir a casa de outros: «pensei que fosse acontecer comigo, o que, muitas vezes, escutei os mais velhos contar. As histórias de escravidão de minha gente. Eu ia ser vendida como uma menina escrava» (ibid., 46); Isaltina Campo Belo, que vive de perto a herança traumática da escravidão, através das histórias que lhe são contadas: «Minha mãe, orgulhosamente, sempre nos contava a luta de seus antecedentes pela compra da carta de alforria. [...] Meu pai, também nascido e ali criado, tinha histórias mais dolorosas de seus antepassados» (ibid., 57), mas que também, por não se identificar como mulher, é sexualmente abusada por cinco homens, que a estavam «ensinando a ser mulher» (ibid., 64).
O mais importante na escrita de Conceição Evaristo não é apenas este retrato da opressão e sofrimento impostos a estas mulheres, mas também o retrato de uma capacidade de superação de cada obstáculo: Natalina Soledad, antes Troçoléia Malvina Silveira, criou um novo nome para si; Maria do Rosário, anos passados servindo de casa em casa e sonhando com o regresso à família, graças a uma palestra sobre o rapto e desaparecimento de crianças, regressa finalmente à sua casa; Isaltina tem uma filha por consequência dos abusos sexuais e, a certa altura, apaixona-se e compreende que não se identifica como homem, mas sim como mulher que se sente atraída por outras mulheres.
O discurso característico da escrevivência dá a visibilidade que o feminismo decolonial preza. O objectivo deste movimento é o de romper por completo com o rasto do colonialismo e intervir com novas ideias, construindo outros caminhos divergentes dos do passado. É tida como primordial uma observação do mundo atenta a todos os tipos de opressão, recusando um sectarismo e uma hierarquização da sexualidade, raça ou classe, tornando-se multidimensional e interseccional. Cria-se assim uma atenção a todas as frentes, pois «[u]ma feminista não pode aspirar a ter “a” teoria e “o” método, ela procura ser transversal.» (Vergès, 40) Evaristo não escreve as vidas destas mulheres simplesmente como se de um retrato de marginalização se tratasse. Evaristo descreve estas mulheres como corajosas e disruptivas. E esse é o discurso decolonial presente na obra, onde as mulheres «não sustentam esperanças ingénuas, não se alimentam do ressentimento nem da amargura» mas preservam «a coragem e a resiliência das mulheres racializadas através da história» (Vergès, 46).
A tradição oral, da mulher negra que conta estórias para adormecer as crianças da casa-grande, ilustra o que também em Insubmissas lágrimas de mulheres se revela. São relatos familiares, que alertam para a realidade, sem deixarem de ter elementos que resultam da imaginação – como qualquer estória contada. A arte de Evaristo cresce nesta união e na urgência da partilha, de retratar a dor e a verdade das silenciadas, pelo olhar de quem está por perto, de quem cria, rompe e constrói de novo. É através das mulheres protagonizadas nestes contos que se conhecem o sofrimento e a resistência, a capacidade de superação e de se olhar para o mundo com esperança, rompendo com uma história antiga, servil e limitadora. Em Insubmissas lágrimas de mulheres estão representadas essas mulheres: as que não esqueceram o passado isolado e oprimido e que, apesar de todas as adversidades, se emanciparam das submissões a que estavam sujeitas e se fazem ouvir.
Bibliografia
Evaristo, Conceição. Becos da Memória. Rio de Janeiro: Pallas Editora, 2017.
Lugones, María. “Colonialidade e gênero”, Pensamento Feminista Hoje: Perspectivas Decoloniais. Organizado por Heloisa Buarque de Hollanda, 53-83. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.
Vergès, Françoise. Um Feminismo Decolonial. Traduzido por Anabela Carvalho Caldeira e José Alfaro. Lisboa: Orfeu Negro, 2023.
REFERÊNCIA:
Evaristo, Conceição. Insubmissas lágrimas de mulheres. Rio de Janeiro: Malê, 2016.