COMO CITAR:
Pedreira, Frederico. «John Berryman, 77 Oníricas». Forma de Vida, 2015. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2015.0025.
DOI:
https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2015.0025
Frederico Pedreira
O nome do poeta norte-americano John Berryman (1914-1972) poderá não dizer muito ao público português. Figura fragilizada, com um percurso de vida acidentado, Berryman foi professor universitário nas universidades de Princeton, Harvard, Iowa e Minnesota, tendo publicado dois livros que são representantes dos seus interesses e do comprometimento sério com assuntos literários: Berryman's Shakespeare e Stephen Crane: A Critical Biography. Diz-nos a nota biográfica das 77 Oníricas: “[m]aníaco-depressivo e alcoólico, assombrado pelo suicídio do pai e por uma vida conjugal tumultuosa, John Berryman atirou-se de uma ponte sobre o rio Mississípi a 7 de Janeiro de 1972.”
A Tinta-da-china publicou recentemente, na sua colecção de poesia coordenada por Pedro Mexia, uma tradução das suas 77 Oníricas, da responsabilidade do também poeta Daniel Jonas, trabalho notável de entendimento e perfuração de um dos mais densos e conflituosos discursos líricos do século passado. O livro (77 Dream Songs é o título original) deu a Berryman o Pulitzer Prize em 1965 e é uma sequência que integra um projecto de maior fôlego, juntamente com outra obra, de 1968, His Toy, His Dream, His Rest, perfazendo os 385 poemas do conjunto final Dream Songs, publicado em 1969.
Não raras vezes a poesia de Berryman é associada ao chamado confessionalismo norte-americano. Uma leitura atenta destes sonetos sublinhará um afastamento desse movimento, de que nomes como Robert Lowell e Sylvia Plath, companhia frequente em referências a Berryman, são considerados representantes importantes. Quando lhe perguntaram, numa entrevista à revista The Paris Review, em 1970, se os sonetos seriam “confessionais”, Berryman, contudo, manifestou descontentamento com a associação: “Well, they're about her and me. I don't know. The word doesn't mean anything. I understand the confessional to be a place where you go and talk with a priest. I personally haven't been to confession since I was twelve years old.”
O que parece imediatamente evidente nestes setenta e sete sonetos é a presença de uma personagem, uma espécie de alter ego do poeta, com o nome Henry (ou Mr Bones, depende da ocasião). Esta personagem tem um amigo, que muitas vezes o interpela e leva a acertar o escopo das suas reflexões. O amigo, como explica Daniel Jonas na introdução ao volume, apresenta-se ao leitor como um indivíduo em blackface minstrelsy, isto é, um homem branco que pinta a cara de preto e se distingue pelo calão de rua, tem modos espalhafatosos e recorre a interjeições aparentemente ingénuas, inconvenientes, muitas vezes maliciosas. Este amigo, imaginário ou não, não parece, de facto, um amigo. Aquilo que faz é tornar explícito um certo estado miserabilista de Henry, o seu modo desolado, o abismo que se ocasionou entre a sua vontade e o mundo.
Um dos pontos mais originais e interessantes destas 77 Oníricas é o facto de a sequência de poemas lembrar a narrativa de um romance, com uma lógica cumulativa entre pequenas histórias que têm como ponto de partida a visão muito particular de Henry sobre o que o rodeia, bem como o efeito que certos contextos, eruditos ou que dizem respeito ao quotidiano, têm no seu sistema nervoso. Este é, de facto, um discurso em que se destaca uma percepção nervosa do mundo. Os versos assemelham-se a solavancos expressivos. Momentos importantes da História política e cultural norte-americana são interpolados com observações corriqueiras de uma vivência particular. O poema de Berryman, no caso destas oníricas, não é, por definição, um poema citável. Isto é: na maior parte das ocasiões, o verso não é redondo, agradável, imediatamente apelativo ao leitor, sabotando, por vezes de um modo propositado, a lírica da “grande literatura”. Esta expressão é usada num dos poemas, talvez um dos mais conhecidos das Dream Songs. Num dos debates mais conseguidos que mantém consigo mesmo, Henry diz-nos: “A vida, amigos, é um tédio. Não devemos dizer isso.” Logo a seguir, sabemos que a personagem vive acossada pelos danos psicológicos de um drama familiar (este ponto revelar-se-á também em vários sonetos com referências ao suicídio do pai de Berryman). A mãe disse-lhe “(repetidamente «confessares-te entediado significa que não tens / Recursos próprios.» Concluo agora não ter / recursos próprios, pois sinto um tédio de morte. / As pessoas entediam-me, / a literatura entedia-me, especialmente a grande literatura, / o Henry entedia-me, com as suas queixas & os seus tendões / tão anquilosados como os de Aquiles, […]” (p. 39).
Henry fala de si na terceira pessoa, mas este desdobramento de personalidade raramente é intelectualizado, num sentido auto-reflexivo. A experiência prática e individual do poeta constitui o modo de tornar exequível esse desdobramento e a multiplicidade das suas percepções. O tom é muitas vezes sarcástico e geralmente autodepreciativo. Henry apresenta-se aos leitores em momentos em que prevalecem algum histerismo e um certo confessionalismo, mas aqui não se deve fazer confusão com um suposto confessionalismo do poeta Berryman. O confessionalismo de Henry é absolutamente teatral, ou seja, é engendrado para procurar efeitos contraditórios no leitor (pena, desprezo, cumplicidade, afastamento), isto porque é o mesmo tipo de contrariedade que faz com que a sua personagem sobreviva. Henry encontra motivos para continuar o seu monólogo na falta de coincidência não só entre o mundo e a sua individualidade, mas também entre as várias emoções, com a dispersividade característica que lhes sobrevém.
É complicado entender o quadro clínico de Henry porque a expressão das emoções é conturbada pela carência de resoluções de ordem afectiva. Nunca se percebe exactamente o que Henry pretende ao apresentar-nos, em modo fragmentário, as suas impressões sobre relações conjugais, familiares, interesses culturais (por exemplo, as mortes coincidentes dos antigos presidentes and John Adams e Thomas Jefferson, no poema ‘DE 1826’, ou a homenagem à cantora blues Bessie Smith), ou sobre convivências com outros poetas da sua geração (leia-se, por exemplo, as homenagens belíssimas e nunca afectadas aos poetas Theodore Roethke e Robert Frost). A pergunta que imediatamente nos vem à cabeça quando lemos estas 77 Oníricas pela primeira vez é: ‘o que é que Berryman pretende com isto?’ O tom gracioso dos poemas chega-nos em leituras subsequentes: percebemos que o poeta não nos quer dizer nada que já não tenha sido dito, pretende apenas baralhar as cartas e voltar a dá-las. Torna o trivial estranho, e tudo (as experiências, a sintaxe) parece fora do lugar.
Enquanto leitores, vemo-nos na posição de sermos caridosos com o poeta: ele faz-nos perguntar de outras maneiras, olhar de outra forma. Estes sonetos de Berryman levam a que façamos perguntas importantes quando falamos de poesia. O que está em causa não é se, através dela, somos lançados, no escorrega fácil da via lírica, para uma emoção forte, mas se conseguimos isolar, enquanto leitores, a questão da linguagem, do que ela significa para nós e o que poderá representar uma interrupção momentânea do seu efeito comunicativo. Berryman faz de Henry uma personagem com inquietações metafísicas, mas o foco destas inquietações raramente assenta em assuntos de grande porte (filosofia, literatura, etc.). Estas inquietações manifestam-se na própria confusão de Henry, no seu discurso arrítmico. Por que razão esta personagem não consegue falar como deve ser? Procuramos uma resposta, deparamos com o drama performativo da sua consciência. E por que razão nos importaria este drama, isto é, mais do que qualquer outro? Talvez porque Henry procura falar connosco de uma maneira especial: a sua dispersão (de temas e estilo) é calculada, não porque nos quer espantar com a novidade, mas porque pretende colocar-nos no lugar certo para começarmos a entendê-lo. Henry é um homem destruído e durante setenta e sete sonetos contorce-se muito para nos explicar porquê. As razões para se ser um marginal da sociedade, um homem desiludido com os outros e consigo mesmo, raramente poderão ser motivo de surpresa, mas achar que se pode fazer disso poesia (e ser bem-sucedido precisamente por dizer que é poesia e ao mesmo tempo inscrever essa poesia na convivência de uma tradição que, no caso de Berryman, passa por Shakespeare, Yeats e Pound) poderá ser motivo de espanto, à partida, e de divertimento e comoção noutras leituras mais pacientes com as transgressões do autor (que na plasticidade do poema são, simplesmente, as birras de Henry – de bêbedo, de criança, de adulto inconformado, dependerá do contexto da sua irritação). A dor e o ressentimento de Henry nunca são motivo de aborrecimento. Isto porque Berryman, com o seu sentido de humor incomum, faz com que a personagem se mova com grande destreza na sua moldura tragicómica.
Ao mesmo tempo, Berryman consegue versos preciosos na sua cadência rítmica e nas situações de tensão que, embora nunca se resolvam, emprestam o tom a poemas subsequentes, e com isto percebemos que estas canções de sonho obtêm do estado onírico o mais interessante que este pode conceder. Não se trata de escrita automática ou outras vertentes mais ou menos preguiçosas de uma escrita dita inconsciente. O que os sonhos nos podem dar de melhor é um estado de confusão que excita a curiosidade, a vontade de descrever o efeito que uma impressão teve em mim. O encanto destes sonetos assenta precisamente no entretenimento contínuo com estas descrições, com o que podemos fazer a partir delas. Como diz Daniel Jonas na introdução, “como o sonho, pouco amigo da hermenêutica, podemos sempre gozar deste admirável mundo novo e condensado, apreciando-o sem preocupações autopunitivas de ordem interpretativa.”
O mais interessante é que Henry (e aqui podemos acrescentar Berryman) continua o seu monólogo de costas voltadas para o leitor, isto é, não está preocupado com o grau de congruência na sua forma de dizer. Ele não explica, apenas descreve. É um discurso nervoso, muitas vezes ridículo porque tenta refrear esse nervosismo com a máscara da despersonalização, com uma certa contenção verbal (Berryman está absolutamente consciente do carácter formal do seu poema, e além disso sabemos bem, desde Eliot, que um verso “livre” nunca é livre, mas travado pelas exigências formais e hermenêuticas dos que o antecedem, ou pelo jogo de sugestão e fuga que faz sobre padrões de métrica existentes). A personagem Henry é, para o Henry como identidade consciente, um boneco a desmontar, a ser usado como lhe convém. Ele morre e ressuscita, e as acções que lhe são prescritas no palco da mente são tanto motivo de orgulho como de desprezo. É neste sentido marcadamente material que os sonetos obtêm igualmente o seu interesse: o deslocamento da identidade não é intelectual, não se trata desse tipo de farsa. Henry é inventado e declara-se, de modo mais ou menos enviesado, como tal, sendo por vezes metade homem, metade gato ou cão ou bicho inominável, por vezes sem corpo de todo. Ele é um artifício, uma coisa sem nome à espera de ser moldada pelo investimento emocional do poeta, e a graça especial dos poemas indica uma sua despreocupação ao apresentar-se como tal.
Embora o tom do livro nos remeta, em parte, para a estrutura de um romance, o esforço de procurar coordenadas biográficas de Henry (ou de Berryman) é invalidado por esta plasticidade poética: o movimento dos sonetos, embora se detenha por vezes numa investigação da personalidade, aponta antes de mais para a urgência de dizer, de contar. Este nervosismo ou esta falta de vocação para a revisitação linear da memória diz-nos que o poeta está interessado sobretudo em prosseguir. O melhor que se pode retirar desta ideia é que a experiência do pensamento é algo que se funda no momento da sua procura, e esta procura é estimulada pelo embate verbal, pela turbulência de carácter especial que advém da construção do verso. A prioridade do poeta é espantar-se a si mesmo, mas não com achados poéticos (o verso belo da “grande literatura”). O monólogo de Henry remete para a sua vida, para aquilo que já conhece. No entanto, é o modo de se expressar que reabilita a sua percepção da realidade, tornando o familiar estranho, fazendo com que Henry se demore mais um pouco no mundo que tanto diz desprezar (e que o despreza). O “amigo” de Henry é apenas a voz do seu espanto ao ouvir-se a falar. Os sonetos de Berryman não procuram resolver, o movimento de exteriorização da intimidade não é o da introspecção, que parte dessa necessidade, ainda que por vezes camuflada, de resolução. Berryman põe a interioridade ao serviço da linguagem figurativa, do tropo literário. É nele que a autobiografia se reinventa. O incremento do número de máscaras (e o grau de sofisticação das mesmas) serve o simples propósito de continuar o jogo, o entretenimento obtido na desfiguração da biografia. Um poema de 77 Oníricas servirá melhor do que qualquer aproximação crítica para nos elucidar sobre o tipo de humor ferido, de resignação histérica, de contenção aflita, que atravessa o livro:
«As glórias do mundo atingiram-me, fizeram-me ária, uma vez.
— E depois, e depois, Mr Bones?
prossiga por quem é.
– O Henry. Deu-lhe para apreciar corpos de mulheres,
os seus quadris foram & foram a cena de um feito de monta.
Estupor. De joelhos, querida. Reze.
Todas as maçanetas & suas delicadezas, meu Deus,
o pôr-se de cócoras & a turbação no Henry,
duma vez só.
– E depois, e depois, Mr Bones?
o sôr está prò excitado.
– Lá voltou o Henry ao crime original: arte, rima
mais uma percepção de outros, meu Deus, meu Deus,
e um zelo pelo privilégio (vivo) do seu país,
o que pode ser mais estranho?
e descontente com os gangues prósperos & o próprio-amor.
– E depois, e depois, Mr Bones?
– Um estupendo golpe de sorte. Fui desta para melhor.»
REFERÊNCIA:
Berryman, John. 1964. 77 Oníricas. Trad. e pref. Daniel Jonas. Lisboa: Tinta-da-China, 2014.