Guilherme Berjano Valente
O Fim do Contágio (2022), de Vasco Gato, aponta para o terminar da situação pandémica vivida entre 2020 e o respetivo ano de publicação, 2022. É um livro com alusões às máscaras que nos protegiam do bicho – «E bebemos do ar / todas estas máscaras que nos olham / e falta sempre um gosto a guerra» (p. 7) – e ao tempo em que ficámos todos fechados em casa, aguardando uma libertação social permissiva de passeios e desporto ao ar livre: «A nespereira trouxe os meus frutos / à reclusão dos meus olhos. / […] / Quantos de nós não estarão a fazer o mesmo / sob a película da letargia?» (p. 12). No entanto, não é isto motivo para se rotular o livro como sendo apenas sobre a pandemia, tal seria redutor. É, isso sim, um livro que a partir do cenário pandémico explora os meandros existenciais que apenas se tornaram possíveis devido a um bicho forte e desconhecido e a um enclausuramento solidário de forma a prolongar a espécie humana.
Vasco Gato, começando o livro com um poema que aponta para o cenário pandémico, formula, num certo sentido, aquilo que são as palavras que lhe surgem na noite e, noutro, o que é o ser humano encontrar-se só:
O fulgor constante
das letras no topo da noite.
Vermelhas como os grandes alertas.
As fotografias de monumentos
são tão ridículas como os próprios monumentos.
……………………………………………………
Um corpo só é possível num
ritual de vários corpos.
Um corpo sozinho é uma campa vertical. (Ibidem)
Há qualquer coisa na noite do poeta que aponta para uma metamorfose do modo como as palavras lhe surgem em relação ao modo como as palavras aparecem em «alertas», claramente virtuais. Pois repare-se que estes «alertas» são seguidos por «fotografias de monumentos», isto é, representações que têm, curiosamente, o mesmo efeito, no poeta, que as coisas em si: uma sensação de ridículo. Compreende-se, inclusive, disto que a virtualidade não é vista como substituto insuficiente do mundo, mas como contiguidade deste, tendo o mesmo efeito que a realidade. A virtualidade prende-se ainda ao facto de este ser um livro pautado por fotografias, desenvolvendo-se em simultâneo com os poemas um vocabulário que abarca, a nível interartístico, tanto os poemas quanto as fotografias.
Num outro sentido, a solidão do corpo – esta que percorreu tantas pessoas ao longo das diversas quarentenas ao redor do mundo – mostra-se como uma impossibilidade para o corpo, tornando-o numa «campa vertical». Há qualquer coisa no corpo que requer uma comunicação material e presencial com outros humanos, de forma que o corpo seja possível. Disto entende-se que estar vivo e ter um corpo possível é a mesma coisa; e continuar enquanto ser humano parece requerer, então, outros seres humanos. Como o poeta afirma no segundo poema: «Não há um mal-estar com o mundo. / Há o tenebroso / de não sermos nós mesmos, / mas o estorvo. / […] / Não, repito, / Não é sermos um perigo / uns para os outros, / é sermo-lo intrinsecamente» (p. 8). O problema não é com o outro ou com o mundo, mas com o próprio que parece, ao estar só, atuar de forma impeditiva para consigo próprio, de certa forma, estagnando-se.
As indicações até aqui lidas parecem levar a crer, de forma errónea, que estes poemas são sobre o próprio poeta em relação consigo; tal, no entanto, não se mostra verosímil. O que a partir daqui se depreende é a forma como o «eu» afeta e se relaciona com o mundo, ou seja, não é tanto uma meditação solipsística, mas uma forma de pensar sobre si em relação com o todo. Veja-se, então, que no terceiro poema faz-se tema a existência humana, descrita como uma constante perda do mundo por causa do devir – ou seja, a constante mudança, o que se transforma, passa e esvai tanto no mundo quanto no «eu» – intrínseco deste: «Sentir na polpa dos dedos / fugir-nos o que acabara / de florir / no sigilo / da nossa desolação» (p. 9). Este devir, por sua vez, só se desenrola na relação com o eu poético visto que o florir decorre «no sigilo / da nossa desolação», isto é, decorre no espaço que ocupamos no mundo.
Ora, neste mesmo poema, as coisas permanentes são descritas como o «coração mais diáfano / – a luz procura-as / na sua vertigem / intransponível» (Ibidem). Por oposição, o poeta abre «as mãos como / se fosse cair água: / ou um grito» (Ibidem). Ora, enquanto o devir se formula na mão, por onde se pode imaginar «água: / ou um grito» a escorrer, o que é permanente encontra-se numa «vertigem / intransponível», não alcançada pelo ser humano. Aquilo que começa, assim, a parecer intrinsecamente humano é aquilo que se desenvolve num devir – isto é, numa transformação constante –; por oposição, o que é perseguido pela luz é o anti-devir, o anti-humano, o que fica para sempre estagnado. É, assim, como se houvesse uma aversão à permanência.
Além disso, a condição de permanência/estagnação associar-se a uma luz que procura as coisas permanentes aparenta descrever bem as fotografias que surgem ao longo do livro. Estas são, por norma, fotografias em que uma figura humana aparece escurecida, enquanto a luz invade a lente e, consequentemente, parte do mundo, na fotografia, se apresenta iluminado. A partir disto formula-se um jogo sombra/luz em que o que é humano cai na sombra e os objetos e o mundo estagnado, isto é, o anti-humano, rege-se pela luz. No entanto, de forma ainda mais curiosa, na segunda fotografia do livro (p. 19), uma sombra aparece projetada na parede, e um halo de luz circunda-a. É sabido que as sombras são consequência da luz que nos cobre, desenhando-se a nossa figura no chão. O que é curioso nesta sombra é parecer não ser distinguível, perante o contexto das fotografias, das figuras humanas que pautam as imagens. É, então, como se não houvesse diferença entre humanos e sombras, estando ambos enlaçados no devir. Isto torna-se mais claro ao compreender-se a sombra como figura fantasmática, e ao ler-se a afirmação do poeta num dos últimos poemas: «Não tenhamos ilusões sobre a sentença do nosso tempo: quanto mais humano, mais fantasmas» (p. 57). Quanto mais humano, mais sombreada tem a figura humana de aparecer na fotografia.
Estas figuras em sombra, que são sempre figuras de corpo inteiro, estão, ainda, pouco definidas, salientando-se a possibilidade constante da metamorfose imagética por aqueles que olham as fotografias, identificando um decalque humano e atribuindo-lhe, por momentos, uma face. Surge assim um gesto fantasmático praticado pelo leitor. Só que, para o poeta, também é o leitor uma sombra, isto é, um fantasma. O poeta diz:
Cientes ou não
todos somos habitantes de Pompeia
e é fatal que o fogo
entretanto
a minha única aspiração
é cingir a tempo
num abraço de pedra
o imprescindível que és (p. 38)
Neste segmento do poema, o fogo (aquilo que expele luz) é descrito como vindo tocar a todos. É conhecida a imagem dos amantes de Pompeia, atingidos e preservados para todo o sempre a nível material. Ora, é este gesto de preservação que decorre na fotografia. Mesmo a figura fantasmática, que aparece como uma sombra, está na fotografia, devido à luz que a decalca no rolo da máquina, como parte integrante da imagem. Ou seja, o fogo, aquilo que ilumina, toca a todos, mesmo que não por inteiro. Um dia, contudo, teremos lápides sobre nós (ou estaremos espalhados em cinzas pelo mundo) e aí a claridade da luz incidirá sobre a nossa campa, sobre os nossos restos, estagnando-nos eternamente. Recordo, com isto, dois dos primeiros versos do livro: «a claridade e a erva / em torno das lápides» (p. 8).
Parece, neste mesmo poema, ser também objetivo do poeta estagnar o seu interlocutor, que é, aparentemente, o leitor: «a minha única aspiração / é cingir a tempo / num abraço de pedra / o imprescindível que és» (p. 38). De certa forma, é como se o poeta fosse também um fogo que tenta estagnar quem está deste lado da página, cingindo o leitor num «abraço de pedra». Este gesto, que recorda o mito de Medusa, é ainda uma forma de o poeta se preservar, pois ele existe enquanto o leitor lhe dá voz, ou seja, enquanto o leitor lê e olha para a página. Assim, prender o leitor é um método de preservação do próprio poeta, que acaba por aspirar a algo que é, também, destrutivo do devir humano.
Mais à frente no livro, de acordo com estas concessões fantasmáticas, Vasco Gato desenvolve uma «ética da aparição»:
Há uma ética da aparição:
só verás o meu rosto
por breves instantes.
A fantasmagoria inverteu-se.
A carne é agora essa fulguração,
a confidência no escuro. (p. 52)
Eis que a porca torce o rabo: o poeta surge ao leitor por breves instantes através da prosopopeia, isto é, do ato de leitura em que o leitor dá a face ao poeta de forma que este se exprima. A fantasmagoria inverte-se porque já não é o poeta fantasmático que se encontra no tecido do poema. Pelo contrário, o poeta infiltra-se na carne de quem lê – «A carne é agora essa fulguração» – e fala a partir dela enquanto aquele que lê, contrariamente à crença de Paul de Man em «Autobiography as De-facement» (1979), o leitor não morre, mas torna-se fantasma que se exterioriza, saindo do seu próprio corpo, para dar espaço ao poeta. Eis a fantasmagoria que se inverte. O leitor necessita de sair de si para interpretar a leitura que está a empreender, visto ser apenas assim que se pode principiar a compreender um poema a partir da sua boca maquinada pelo poeta-fantasma. A leitura é, neste sentido, uma dialética de duas subjetividades (a do leitor e a do poeta), sendo a interpretação a síntese do confronto entre estas duas.
Outra imagem que pauta estes poemas são vidros e janelas. Estas janelas mostram-se como claras alusões à posição do poeta durante as quarentenas, e.g., «Tenho a testa colada ao vidro / onde trepida o frio oceânico» (p. 15) e «Vejo da janela uma paisagem de ruínas / […] // Vejo da janela / o mundo tal como ele existe / na sua operação normal» (p. 44). Tais versos apontam para o facto de o poeta estar dentro de casa, sendo que considera que são as coisas que vêm ter com ele e não ele que vai ter com elas: «A nespereira trouxe os seus frutos / à reclusão dos meus olhos. / São proezas que agradeço, / embora isentas de destinatário» (p. 12). Depreende-se que o poeta está, na verdade, a atribuir intenções à «nespereira», pois ela apenas surge. É Gato que, através do poema, faz com que as coisas pareçam ter intenções, procurando-o.
O que, no entanto, talvez melhor exponha o diálogo com a pandemia e a quarentena seja a importância dada à respiração perante a doença respiratória que abalou o mundo:
É preciso defender a respiração
como se disso dependesse a veleidade do poema.
Porque depende.
Porque o poema é, sempre foi,
acordar assim e pôr o pé no mundo
contra o baptismo do recato. (p. 17)
Aqui se vê uma defesa da respiração perante a doença respiratória que tantos assombrou. A importância dada à respiração permite, ainda, uma aproximação entre o que Gato está a fazer e aquilo que Charles Olson famosamente defende no ensaio «Projective Verse». Nele, o poeta norte-americano defende que o poema é um registo tanto daquilo que ouve (ou vê, como a nespereira que vai ter com o poeta) e a pressão da sua própria respiração: como Olson afirma «I take it that PROJECTIVE VERSE teaches, is, this lesson, that the verse will only do in which a poet manages to register both the acquisitions of his ear and the pressure of his breath». E, um pouco mais à frente no ensaio:
And the line comes (I swear it) from the breath, from the breathing of the man who writes, at the moment that he writes, and thus is, it is here that, the daily work, the WORK, gets in for only he, the man who writes, can declare, at every moment, the line its metric and its ending – where its breathing, shall come to, termination. [1]
A respiração é para Olson o que tudo comanda, que controla o tamanho do verso, que dá movimento ao poema, sendo nisto que se desenvolve o principal trabalho do poeta. Uma doença respiratória, como a Covid-19 é, neste sentido, um ataque não só aos humanos, mas ao trabalho poético, feito por humanos. Assim, a pequena teoria sobre o poema que Vasco Gato desenvolve nos seus versos é uma teoria protecionista da «respiração» por ser esta o principal meio de trabalho do próprio Gato. Note-se que, de acordo com o que tenho dito, a teoria leva a que o poema se enquadre dentro do grupo de coisas que fazem parte do devir, num sentido positivo, «Porque o poema é, sempre foi, / acordar assim e pôr o pé no mundo / contra o baptismo do recato.» (p. 17) O poema é e sempre foi uma confirmação do eu no mundo contra aquilo que o tenta estagnar. Se se viu uma certa aversão à estagnação, promovendo-se uma ideia de devir positiva comparada com a permanência «procurada» pela luz, então é a respiração que se desenrola na leitura do poema que melhor desenvolve o fulgor contínuo do «eu» no mundo, lutando diretamente com o que nos tenta estagnar: a morte.
Recuperando, ainda, a ideia de que o poeta tenta cingir o leitor num «abraço de pedra», preservando-se a partir da leitura, percebe-se que há uma diferença entre aquilo que a poesia é capaz de fazer – provocar o devir e integrar-se nas coisas humanas – e aquilo que o poeta ambiciona. Estas ideias aparentemente contraditórias talvez se expliquem melhor se se pensar que o poema tem uma certa liberdade para com o poeta, não sendo uma coisa contígua ao poeta. Isto porque a intenção primeira de um poeta em nada tem que ver com a potência do seu poema e a intenção de Vasco Gato – estagnar o leitor – acaba defraudada se se pensar que o leitor pode sempre deixar de ler e, assim, não estar estagnado. Acrescenta-se a isto o facto de a leitura ser necessariamente um gesto contínuo, feito pelo leitor. Assim, a tentativa de preservação do poeta, sendo ele próprio como um fogo, é falível.
Estes poemas são, assim, perante o seu momento de publicação, uma prova de vitória da respiração perante a pandemia. Uma prova da fulguração humana perante a estagnação. Acima de tudo, uma prova de que a poesia se move, está viva e se recomenda.
[1] Ver, Charles Olson, «Projective Verse», https://www.poetryfoundation.org/articles/69406/projective-verse.
REFERÊNCIA:
Gato, Vasco. O Fim do Contágio. s.l.: Língua Morta, 2022.