Tiago Rocha e Melo*
Uma recensão do livro Flowers for Algernon, de Daniel Keyes, pode parecer um exercício algo supérfluo, na medida em que vem com uns sessenta anos de atraso. No entanto, a qualidade distintiva de uma grande obra de literatura é exactamente a sua universal e aparentemente eterna relevância. Contudo, fosse obrigado a oferecer uma justificação mais contingente, diria que a obra de Keyes aborda algo que é ao mesmo tempo glorificado e tomado por garantido, sendo também, hoje em dia, o refúgio das nossas esperanças para os desafios do presente e do futuro: a inteligência.
O kalos kai agathos («belo e bom») dos Gregos, a uirtus et honor («coragem e honra») dos Romanos, a fé e ascetismo dos Medievais; todos estes, no imparável caminhar da História, deram lugar à inteligência enquanto ideal dos Modernos.[1] O advento do Liberalismo e o surgimento do indivíduo vieram divinizar a razão, suplantando a ordem antiga e colocando o Homem como deus do Homem, adaptando a sentença de Hobbes. Naturalmente, a inteligência foi ganhando destaque, tanto enquanto sinónimo de valor moral ou espiritual, como associada à abundância material. Onde antes as mães desejavam que os seus filhos fossem belos, bons, virtuosos ou devotos, agora rezam para que sejam inteligentes. As preces da mãe de Charlie Gordon não surtiram qualquer efeito, pois inteligente era algo que ele definitivamente não era, apesar de o desejar, tal como nos conta na primeira página de Flowers for Algernon:
I hope they use me becaus Miss Kinnian says maybe they can make me smart. I want to be smart. My name is Charlie Gordon I werk in Donners bakery where Mr. Donner gives me 11 dollars a week and bred or cake if I want. I am 32 yeres old and next munth is my birthday.
Os erros gramaticais são propositados, parte da experiência imersiva oferecida por Keyes, que apela de uma forma significativa à empatia do leitor. A história é contada na primeira pessoa, pela mão da personagem principal, Charlie Gordon, sob a forma de entradas num diário de relatórios de progresso. Este foi uma prescrição dos cientistas encarregues de um projecto de investigação que alega ter desenvolvido uma cirurgia que leva a um aumento da inteligência. Charlie é apenas o primeiro paciente humano, seguindo o sucesso obtido no procedimento aplicado a um rato (Algernon). A qualidade e profundidade da escrita acompanham o desenvolvimento cognitivo de Charlie e o seu infeliz e último retrocesso devido à ineficácia da operação, num processo prefaciado por Keyes via Platão e a sua mais famosa alegoria: «But one who has his wits about him would remember that there are two things that pain the eyes: being brought from darkness to light, and transitioning back from light to darkness.»
Através desta narrativa, Keyes aborda temas variados, desde o impacto da deficiência no seio familiar (suficiente para sobrecarregar fatalmente o casamento dos pais de Charlie, por exemplo) ao tratamento dado àqueles que com a primeira nasceram, passando ainda pela especialização na academia, que considera um exercício arrogante de miopia, pela forma como cega o especialista para aquilo que está para além do horizonte da sua especialidade, inadvertidamente enfraquecendo o potencial para o progresso científico até na sua própria área (o proverbial «tomar a árvore pela floresta»). No entanto, penso que o maior mérito do autor é conseguir fazer a inteligência descer do pedestal a que a sociedade a elevou, colocando-a em perspectiva, como uma dádiva envenenada; um instrumento condenado a gerar o mal, se não for devidamente filtrado. Isto é ilustrado de três formas no decorrer da obra, reflectindo, também, a evolução intelectual de Charlie.
A elevação inicial da consciência de Charlie pauta-se pela perda da sua inocência. As intenções e expectativas puras que o motivaram a voluntariar-se para a cirurgia esbarram numa realidade dura e inesperada. No lugar de uma família que o amava, encontra uma que o abandonou; no lugar de amigos que com ele se riam, encontra «amigos» que dele se riem; no lugar dos cientistas que o querem ajudar, encontra os que o querem usar; em vez da companhia, o isolamento; em vez da felicidade, a tristeza. O comentário é claro: que a inteligência, tal como a maçã do Éden, é uma oferta dissimulada, que carrega um preço elevado, pois a luz que oferece ilumina também as sombras da realidade.
Passado o choque inicial e numa fase de relativa estabilidade, Charlie vê-se pela primeira vez confrontado com um dilema moral, quando descobre que um dos outros trabalhadores da padaria tem andado a roubar. A angústia envolve-o. Por um lado, sabe que roubar está errado, por outro lado, sabe que quem o fez, fê-lo por necessidade. Por um lado, sente-se na obrigação de defender o dono da padaria que durante anos o empregou, por outro lado, não consegue evitar sentir alguma compaixão pelo homem que roubou, pois este era alguém que o tinha tratado bem durante os anos anteriores à cirurgia. A inteligência parece falhar-lhe novamente: «What’s right? Ironic that all my intelligence doesn’t help me solve a problem like this.». A moralidade enquanto um dos limites da razão não é uma ideia nova, no entanto, é algo que temos vindo a esquecer. Numa altura em que recorremos à ciência, o reino do domínio da razão por excelência, para resolver todos os nossos problemas, o autor avisa-nos que, apesar de tudo o que esta oferece, continua a não constituir uma base objectiva para distinguir entre o certo e o errado.
Quando Charlie atinge um nível de inteligência superior, até para os parâmetros normais, um fenómeno curioso acontece: o seu ser fragmenta-se em dois, o Charlie original e o Charlie inteligente. O Charlie original parece ter sido empurrado para o subconsciente, emergindo apenas em momentos de grande intensidade emocional. A diferença entre os dois não está só na inteligência, mas também nas consequências desta, ao nível dos traumas de infância não processados pelo Charlie original e que o Charlie inteligente é forçado a enfrentar, da sua consciência moral amplificada e ainda no que toca aos relacionamentos interpessoais, pois o Charlie inteligente já não é visto como uma criança, o que abre o seu mundo a possibilidades românticas. De uma forma bastante real, são pessoas totalmente diferentes, e os dois Charlies mantêm um diálogo algo esquizofrénico até ao final da obra. É aqui que a problemática central do drama se revela:
You want me out of here so you can come back and take over where you left off. I don’t blame you. It’s your body and your brain - and your life, even though you weren’t able to make much use of it. I don’t have the right to take it away from you. Nobody does. Who’s to say that my light is better than your darkness? Who’s to say death is better than your darkness? Who am I to say?
Keyes não se coíbe de indigitar a hybris de que somos culpados ao assumir que o valor da vida humana está circunscrito à inteligência. Na realidade, é bastante peremptório na sua defesa do contrário, o que nos deveria fazer questionar as ovações com que brindamos alguns sonhos eugénicos contemporâneos. No fundo, a conclusão é dada pelo próprio Charlie, bastante mais perto do final da obra:
Intelligence without the ability to give and receive affection leads to mental and moral breakdown, to neurosis, and possibly even psychosis. And I say that the mind absorbed in and involved in itself as a self-centered end, to the exclusion of human relationships, can only lead to violence and pain.
Por outras palavras, para que a inteligência produza o bem e não seja auto-destrutiva, tem de ser comandada por valores a ela externos, como o amor, a compaixão e o altruísmo. Ou seja, a inteligência não é um fim em si mesmo e não deve ser tratada como um bem absoluto, ou como padrão de julgamento da Humanidade, sob o perigo de se tornar subversiva. Termino com o último conselho deixado por Charlie, que apesar de já ter regredido de forma severa, estando a ponto de ser institucionalizado, como será notório pela qualidade da escrita, nem por isso deixa de conter uma profunda sabedoria, e para o qual devíamos tomar especial atenção:
P.S. please tel prof Nemur not to be such a grouch when pepul laff at him and he would have more frends. Its easy to have frends if you let pepul laff at you. Im going to have lots of frends where I go.
[1] Para os conceitos Grego e Romano foi feita uma tradução literal que acaba por os simplificar em demasia. Não sendo este o espaço para introduzir este tipo de discussão, basta-nos ter presente que estes eram conceitos que reclamavam conter em si um resumo do Homem idealizado.
* Doutorando financiado pela FCT (2024.01719.BD). Centro de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Email: tmelo1@edu.ulisboa.pt.
REFERÊNCIA:
Keyes, Daniel. Flowers for Algernon. Nova Iorque, N.I.: Mariner Books, 2004.