COMO CITAR:
Rodrigues, Telmo. «Morrissey, Autobiography». Forma de Vida, 2015. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2015.0031.
DOI:
https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2015.0031
Telmo Rodrigues
As primeiras reacções à publicação de Autobiography de Morrissey foram dedicadas às novidades íntimas: a relação homossexual, o filho que ele pensou poder ter, as opiniões sobre os membros dos The Smiths e outras personagens famosas. Num segundo momento, a preocupação da crítica foi com o valor desta autobiografia e, aí, parece ter havido consenso sobre a dificuldade em considerá-la digna de figurar entre os clássicos da Penguin.
De facto, uma frase inicial que se prolonga por cinco páginas não faz antever a variação estilística (bastante prosaica, aliás) em que o livro se articula: a infância é descrita com recurso a filmes, séries de televisão e músicos, acabando com uma longa enumeração dos escritores que influenciaram o autor; a formação dos The Smiths, dramática quanto baste, é subjugada pela longa sequência de tribunal, com as questões judiciais extremamente detalhadas que envolveram os membros da banda; segue-se o catálogo de discos a solo, concluindo-se o livro com aquilo que é, essencialmente, um diário de digressão, em que Morrissey descreve o público que continuamente esgota espectáculos como se se tratasse de fiéis. Por vezes, descreve Morrissey, pais levantam os filhos em frente ao palco em consequência, imagina ele, das palavras que canta; a frase que se segue a esta descrição é, não fortuitamente, uma citação da Bíblia (João 15:13): «Não existe maior amor do que este» (p. 453 e p. 455). Em jeito de conclusão, Morrissey assume-se como um solitário a quem restam estes fiéis que ainda o ouvem e que tatuam a sua cara e/ou versos das suas letras no corpo: negar este amor, diz, seria mentir a si próprio acerca do mundo que lhe é familiar (p. 456).
Não é possível falar da autobiografia de Morrissey sem falar das condições especiais da sua publicação: quase quinhentas páginas, numa edição que foi directamente para a colecção de Clássicos da Penguin, ainda para mais sem que o autor tivesse permitido grande margem de manobra editorial. Porque teve este músico, sem experiência como escritor de prosa, direito a tratamento especial? Naturalmente, a questão monetária teve impacto na decisão da editora (o número de fiéis ainda é muito grande); mas a explicação oficial, e o motivo invocado pelo próprio autor, foram sempre relativos à relevância artística de Morrissey. Contudo, para Morrissey, a questão de poder decidir sobre como, onde e quando a sua autobiografia seria publicada tem uma dimensão diferente: a certa altura do seu relato, referindo-se ao facto de ser conhecido apenas pelo sobrenome (o nome completo é Steven Patrick Morrissey), Morrissey assume: «Só os compositores clássicos eram conhecidos apenas pelo sobrenome e isso adequava-se muito bem ao meu temperamento de miúdo da rua» (p. 173). Publicar a autobiografia nos termos que mais lhe convém é, de certa maneira, parecido com ser conhecido pelo sobrenome: um reconhecimento artístico e uma prova de ascensão social (um ponto que não devemos menosprezar tendo em conta que Morrissey nasceu em Manchester).
O argumento sobre os compositores é absolutamente exacto sobre o que se passou à volta deste livro: Morrissey possui, nesta altura da vida, o estatuto que lhe permite um grande controlo acerca das decisões sobre a sua carreira. A vida de Morrissey esteve sempre sujeita a muitas dúvidas e contradições, particularmente em descrições do próprio; não seria uma autobiografia que ia resolver essas dúvidas mas, como aqueles que conhecem a história de Morrissey desde os The Smiths saberão, a possibilidade de deter poder sobre a sua imagem pública tem sido uma guerra a que o autor nunca fugiu e esta biografia poderia ser, nessa analogia bélica, a batalha final. No entanto, sendo Morrissey fiel a si próprio, a possibilidade de alguma coisa ser de facto definitiva na sua carreira é uma improbabilidade e os que esperavam ficar finalmente elucidados sobre a vida de Morrissey incorreram num erro ao imaginar que estava aqui a solução.
Morrissey afirmou, em várias ocasiões, que se quisessem saber coisas sobre ele bastava olhar para as canções, que estava tudo lá; mas sempre que extrapolações pessoais foram feitas a partir de canções, Morrissey rapidamente se prontificou a dizer que eram apenas canções, que não deveriam ser levadas tão a sério. Este tipo de paradoxos sempre fez parte da sua imagem, modelada em grande medida a partir da do seu herói, Oscar Wilde; aquilo que decidimos levar a sério numa declaração de Morrissey é sempre aquilo que achamos poder coadunar-se mais com a imagem que temos dele e isso parece fazer jus aos esforços de Morrissey para não ser catalogado pela imprensa.
A articulação entre a obra e a biografia revela-se a parte mais interessante da autobiografia: versos de canções, dos The Smiths e da carreira a solo, são usados repetidamente como metáforas de muitos dos episódios que Morrissey narra; noutros momentos, são usados como chave para que se percebam certas perspectivas, ficando pendurados no final de parágrafos, como aforismos ou verdades inabaláveis. Isto inverte, de alguma forma, o processo: agora são as canções que dão credibilidade à autobiografia, como se não pudessem ser independentes dessa mesma biografia. Desse ponto de vista, aliás, é como se a autobiografia estivesse desde sempre limitada pelo âmbito das canções: nada que as pudesse pôr em causa seria revelado e, assim, compreensivelmente se queixaram os tablóides de que não havia nada de particularmente chocante para anunciar no fim desta leitura – esteve sempre tudo nas canções.
Talvez o facto de não haver nada de muito chocante, nem nada de artisticamente muito relevante, não tenha sido visto como um elogio quando, na verdade, o deveria ser: ao fim de quase quinhentas páginas, não haver nada significativo que se possa acrescentar ao que já sabíamos de Morrissey deve ser sublinhado como um feito. É possível dizer que uma autobiografia tão longa que não esclarece nada sobre o seu autor terá falhado no seu objectivo, mas, neste caso particular, acontece exactamente o oposto: o maior feito de Morrissey terá sido a produção de mais uma peça de adoração à sua personalidade que não o compromete com nada em particular. Na passagem da Bíblia que Morrissey cita, falta uma parte do versículo: «Não existe maior amor do que este: alguém dar a própria vida por causa dos seus amigos». Morrissey acredita, sem a mais pequena dúvida, que deu a vida pela sua arte e, não tendo, de acordo com a sua própria descrição, muitos amigos, restam-lhe os fiéis a quem este livro se destina; para esses, aqueles que acreditam, este é mais um objecto artístico criado pelo mestre e, nesse sentido, constitui uma parte importante da vida de Morrissey. Para os que não acreditam, esta autobiografia está condenada a ser tratada como fraude, no que diz respeito à possível veracidade dos factos e, sobretudo, artisticamente. Ninguém que se situe num destes pólos aceita que toda a arte de Morrissey, ao contrário do que ele advoga, esteja mais ligada à fraude do que à honestidade e não pode, assim, presumir que este é apenas mais um livro e que não deve ser levado tão a sério. No entanto, se pudermos conceber essa possibilidade, perceberemos que a única nota negativa, naturalmente, se prende com a qualidade desta fraude: há fraudes muito melhores na obra de Morrissey do que este tomo.
REFERÊNCIA:
Morrissey. Autobiography. Londres: Penguin Classics, 2013.