COMO CITAR:
Vala, João Pedro. «A Grande Beleza, Real. Paolo Sorrentino». Forma de Vida, 2015. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2015.0039.
DOI:
https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2015.0039
João Pedro Vala
Na última cena do filme, Jep Gambardella (Toni Servillo) tem uma epifania, em tudo semelhante ao episódio final de Em Busca do Tempo Perdido, que lhe revela finalmente a grande beleza que procurava e lhe permite começar a escrever o seu segundo romance, sucessor de L’Apparato Umano. Gambardella, ao ter um vislumbre do esplendor da sua juventude, compreende que a vida se esconde debaixo das conversas sem significado e que o silêncio e o medo só podem ser vislumbrados fugazmente por entre o ruído. Compreende que há um manto de banalidade que cobre a sua vida e o impede de ver os “clarões de beleza insignificantes e inconstantes […], a miséria desgraçada e o homem miserável”. Mas a parte mais importante da epifania é enunciada logo no início: “Finisce sempre così. Con la morte”.
Ao cumprir 65 anos, Jep Gambardella, o autoproclamado rei dos mundanos, vê-se confrontado com uma ausência total de sentido que faz com que o mundo onde vive apodreça e perca o encanto que até aí tivera. Lentamente, Gambardella começa a distanciar-se de si mesmo e do seu mundo e percebe que tudo aquilo é apenas uma ilusão (“è solo un trucco”) que ajuda a que a melancolia desapareça. Mas, à medida que a morte se aproxima, o ruído frenético das festas começa a deixar de o ensurdecer, os movimentos da multidão deixam de o arrastar e Jep fica sozinho, diante do vazio da sua vida.
A certa altura, numa mistura perfeita do segundo capítulo do Evangelho Segundo São Lucas com o encontro entre Ulisses e o Ciclope, este vazio revela-se violentamente. Jep visita o tempietto de San Pietro in Montorio e uma criança fora de cena, no piso de baixo do tempietto, pergunta-lhe quem é. Jep começa a responder, mas a rapariga, cuja mãe a procura, desesperada, fora do templo, não sabendo que ela não podia estar noutro lugar que não fosse a casa de seu Pai, interrompe-o dizendo: “Tu non sei nessuno”. Jep tenta responder, mas fica atónito a olhar para a rapariga e diz apenas: “Nessuno. Ma io…”, gesticula e sai do baptistério.
Gambardella não consegue encontrar conforto na Roma agitada em que vive e não encontra esse conforto precisamente porque, por entre o ruído das festas e das conversas, uma grande beleza vai espreitando e vai revelando a podridão do mundo em que vive, sem durar, no entanto, tempo suficiente para que este perceba se existe alguma alternativa. Se vamos compreendendo, através de momentos como aquele em que, depois de passar a noite com uma feroz entusiasta do Apparato Umano, Jep passeia pensativo junto ao Tibre e um barco o acompanha chamando-o, que aquilo que o chama pode eventualmente ser o cristianismo, a verdade é que o consolo do cristianismo também se esfuma assim que Gambardella se procura aproximar do cardeal candidato a papa/exorcista/chefe de cozinha Bellucci (Roberto Herlitzka) e este prefere um passeio no bosque a consolar e orientar uma ovelha perdida do seu rebanho. E é esta sensação de um beco sem saída que leva Jep, embriagado, a dizer que os comboios das suas festas são os mais belos de Roma e que são belos precisamente porque não vão a lado nenhum.
O desespero de Gambardella atinge o ponto máximo a meio do filme quando, num jantar em sua casa, Stefania (Galatea Ranzi) decide interromper o seu próprio monólogo vazio e desinteressante acerca do empenho civil da juventude italiana para elogiar as suas virtudes enquanto escritora, cidadã e mãe de família. Jep avisa-a de que não a quer embaraçar mas faz-lhe notar que aquele discurso egocêntrico revela uma fragilidade e um desconforto grande em relação a si mesma, aconselhando-a a fazer como todos os outros companheiros de festa que, por conhecerem a decadência das suas vidas, falam apenas de assuntos triviais, para que assim evitem misturar-se com a sua própria mesquinhez. Stefania recusa-se a ouvir e Gambardella começa a revelar uma por uma todas as fragilidades de Stefania, enquanto todos os convidados da festa se endireitam nas cadeiras, acordam do sono leve em que estavam e procuram calar Jep. Ao verem que isso não vai ser possível, dão as mãos uns aos outros e o rosto de cada um começa a ficar extraordinariamente fúnebre, até que Jep chega ao fim do discurso, resumindo desta forma a vida de Stefania (e de todos eles): “Stefania, mãe e mulher, tens 53 anos e uma vida devastada como todos nós. Em vez de nos dares lições de moral, de nos olhares com antipatia, olha para nós com afecto. Estamos todos à beira do desespero, não temos outro remédio a não ser olhar-nos uns aos outros no rosto e rirmo-nos um pouco.”
Gambardella está, exactamente como Marcello em La Dolce Vita (aliás, as referências que Sorrentino faz à obra de Fellini são constantes e explícitas ao longo do filme), aprisionado a Roma e à mundanidade, da qual se proclamara rei mas de que é afinal recluso. E a consciência de que já não pode escapar deixa-o desesperado, como vemos na cena mais extraordinária do filme, em que Jep encontra uma girafa em plena Roma. Jep observa espantado aquela aparição miraculosa e exótica e, quando Arturo (Vernon Dobtcheff) lhe explica que aquilo é apenas um ensaio para um truque de magia que culmina com o desaparecimento do animal, Jep suplica que o faça desaparecer também a ele. Porque Jep percebe que pertence tanto a Roma como aquela girafa, mas sabe também que, ao contrário de Romano (Carlo Verdone), não pode largar tudo porque não tem nenhum sítio para onde ir. Porque só pode desaparecer através de um trucco.
REFERÊNCIA:
Sorrentino, Paolo, realizador. A Grande Beleza. Indigo Film; Babe Films; Pathé; Medusa Film; France 2 Cinéma, 2013. 2 hr.,22m.