COMO CITAR:

Carneiro, Helena. «Elena Ferrante, Crónicas do Mal de Amor». Forma de Vida, 2015. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2015.0041.



DOI:

https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2015.0041

Helena Carneiro

Ter acesso, num só volume, aos primeiros romances de um dado autor, cria a expectativa de se poder analisar a evolução da escrita desse mesmo autor. No entanto, em Crónicas do Mal de Amor – livro que reúne os três primeiros romances de Elena Ferrante, Um Estranho Amor (1991), Os Dias do Abandono (2002) e A Filha Obscura (2006) –, em vez de uma progressão, ou «desenvolvimento», aquilo com que nos deparamos assemelha-se ao modo como Philip Larkin classifica as obras de Barbara Pym: «Enquanto romances não demonstram qualquer desenvolvimento; o primeiro é tão ‘experiente’ quanto o último».

Esta experiência resulta, como a autora declara em entrevista à The Paris Review (a primeira que se dispôs a dar pessoalmente, conduzida pelos seus editores italianos), de uma prática: a escrita e publicação de Um Estranho Amor foram precedidas de anos de tentativas de organizar as histórias que tinha presenciado ou ouvido ao longo da sua infância e adolescência: «durante anos tive na cabeça muitas histórias sobre a periferia de Nápoles, onde nasci e cresci. Tinha na cabeça gritos, actos cruéis de violência familiar que presenciei enquanto criança, objectos domésticos.» As suas três protagonistas vêm deste ambiente e, ao serem também as narradoras das histórias que protagonizam, são o «eu» que Ferrante refere: «O ‘eu’ que narra as minhas histórias nunca é uma voz em monólogo. É sempre uma mulher que escreve, e esta escritora está sempre a lutar para organizar, num texto, aquilo que sabe mas que não está claro na sua cabeça». Além de estarem a viver uma história, o modo como cada uma destas mulheres conta essa história é relevante.

Delia, a narradora de Um Estranho Amor, não tem uma relação directa com a escrita do mesmo modo que Olga (Os Dias do Abandono), que já publicou um livro e tenta escrever o segundo, ou Leda (A Filha Obscura), investigadora e professora universitária ocupada com a preparação de aulas e a escrita de ensaios. Contudo, é Delia que estabelece as coordenadas de um processo de escrita, no sentido em que é possível surpreender no romance asserções que são uma descrição desse processo e daquilo que o rege: «Contava a mim mesma apenas aquilo que convinha, conforme os casos, decidindo no momento, de acordo com a necessidade» (p. 58); «Dizer é encadear tempos e espaços perdidos» (p. 126). A história que Delia conta a ela própria é aquela que estamos a ler, história que resulta de um encadeamento de tempos e espaços do seu passado; estas frases, por isso, não só assinalam a consciência de Delia sobre o modo como está a contar a sua história, mas também explicitam critérios subjacentes à construção dessa mesma história. Ao afirmar que a «história podia ser mais fraca ou mais aliciante do que a que tinha contado a mim mesma. Bastava puxar um fio e segui-lo na sua linearidade simples» (p. 127), Delia está a falar da melhor maneira de se contar uma história e daquilo que é necessário para o fazer.

O que neste primeiro romance aparece sob a forma de inserções esparsas e, por vezes, dúbias, torna-se inequívoco em Os Dias do Abandono, não apenas pela referência directa ao facto de Olga ser escritora, mas principalmente pelos momentos em que a narração se transforma naquilo que Olga escreve no seu caderno. Passos como «Não, disse para comigo, era uma loucura falar assim. Para começar, tinha de me lembrar de pôr sempre as vírgulas bem postas, não me podia esquecer» (p. 146); «Mario, escrevi para me dar coragem, não levou o mundo consigo, só se levou a si próprio» (p. 175); «Abole os pontos de exclamação» (p. 176), geram dúvida sobre se existe alguma diferença entre a história que ela conta e a que ela escreve, pela forma como esbatem a possibilidade de identificar o que está a ser escrito no seu caderno e o que está a ser contado. Também neste romance continuam a ser explicitadas regras determinantes da actividade de escrever: «Não havia distância entre eles e mim, quando a regra é que, para podermos descrever alguma coisa, devemos absolutamente servir-nos de um metro, de um calendário, calcular o tempo que passa, o espaço que se interpõe entre nós e os factos, ou as emoções a narrar» (p. 210).

A técnica que Ferrante domina desde o primeiro romance abate a distância entre o que cada uma destas mulheres está a viver e o modo como está a contá-lo; não é apenas a narração na primeira pessoa que contribui para que o leitor seja colocado dentro das cabeças de Delia, Olga e Leda, tal deve-se principalmente à natureza das descrições que constituem a narração. É também em Os Dias do Abandono que este estilo assume proporções maiores, numa atenção obsessiva ao ritmo e ao tom da escrita de modo a torná-los substância dos pensamentos de Olga, que teme chegar ao ponto de não distinguir a diferença entre uma palavra e um acto, havendo momentos em que toma por realizadas tarefas que apenas verbalizou, numa frase pensada ou dita (pp. 211-12).

A vida destas três protagonistas tem vários pontos em comum: a sua origem é Nápoles (de onde se apressam a sair assim que têm oportunidade), todas cresceram a ouvir histórias acerca do que se passava à sua volta, e todas têm uma figura materna que encarna a herança napolitana a que desejam escapar, mas a que retornam inexoravelmente: «Eram exactamente como a parentalha de quem me afastara em rapariga. Não os suportava e no entanto tolhiam-me, tinha-os todos cá dentro» (p. 347). Em entrevista, Ferrante admite que os seus modelos literários foram masculinos; mesmo quando percebeu que poderia escrever histórias com personagens femininas, houve uma ideia que se manteve: «de facto, tornou-se mais forte – os grandes narradores eram homens e uma pessoa tinha de aprender a narrar como eles». Rapidamente a autora coloca de parte estas considerações como «ansiedades de adolescência», mas tal como as suas protagonistas não conseguem subtrair Nápoles da sua vida, também Ferrante não consegue eliminar esta ansiedade, que não creio poder ser diminuída a uma fase de vida, antes denotando um sintoma de ansiedade de influência literária que se manifesta na escolha de narradoras e nas características de que as dota – sendo uma delas a linhagem exclusivamente feminina que lhes parece atribuir, concentrada numa mãe em relação à qual desejam violentamente distinguir-se. Que a escrita possa ser causa dessa distinção é insinuado em A Filha Obscura quando, perto do final, Leda admite que pode ter sido o facto de entregar um ensaio seu a uma estranha a causa de um acontecimento determinante na sua vida.

Quando Ferrante afirma que a sua única certeza consiste em saber que trabalha bem «a partir de um tom seco e neutro, o de uma mulher forte, lúcida e instruída, como o são muitas das mulheres de classe média hoje em dia», estes atributos podem ser imputados à capacidade de auto-análise destas mulheres; porém, muitos são os momentos em que a influência daquilo a que James Wood chama no seu prefácio (p. 13) «l’écriture féminine» (e que é explícito em Os Dias do Abandono: um dos livros de cabeceira de Olga é La Femme Rompue, de Simone de Beauvoir) se torna demasiado vincada: há descrições de sintomas fisiológicos (culminando na escatologia), disfunção sexual, linguajar obsceno, uma propensão para a descompensação mental e um modo de encarar a maternidade que, segundo o mesmo Wood (p. 14), «talvez seja menos familiar»  (porque desapiedado). Há, por isso, a tentação de reduzir Ferrante a esta forma de tomar aquelas marcas de uma condição feminina como exclusivas (ou, pelo menos, como a sua admissão e verbalização poderão ser exclusivas) e necessárias a uma «mulher forte».

Verifica-se ainda uma tentação maior: a de ver nestas personagens uma só mulher em várias fases da sua vida; essa mulher teria então a fisionomia de Ferrante, noção que a autora define em entrevista: «Ao leitor dedicado deve ser-lhe permitido extrair a fisionomia do autor de cada palavra ou violação gramatical ou nó sintáctico no texto, tal como o leitor extrairá o sentido de uma personagem, de uma paisagem, de um sentimento ou de uma acção». A ênfase é colocada na técnica, no estilo, para que nada lhe seja imputado da vida destas narradoras, e são aquelas qualidades as que melhor resistem dos três primeiros livros da autora: a sua capacidade de criar aquilo a que chama «verdade literária», o tom e o ritmo adequados ao que pretende descrever.

Contudo, não há aqui como separar a história do modo como ela é contada: estas mulheres surgem da escrita (na história) e na escrita (no estilo), logo a fisionomia de Ferrante não pode ser limitada a questões técnicas e estilísticas, como ela parece fazer crer. Tal como Delia termina Um Estranho Amor aceitando o inelutável («Eu era Amalia», p. 131), é plausível ver nestas mulheres vários aspectos da própria Ferrante, como ela os assume em entrevista. Assim, da mesma forma que é possível extrair os pressupostos da sua escrita das descrições que as personagens fazem ao longo dos três romances, também das histórias destas mulheres surge a fisionomia da sua autora.

 

Referências:

Ferrante, Elena. «The Art of Fiction No. 228». The Paris Review, 212, Spring 2015: 211-232.

Larkin, Philip. «The World of Barbara Pym», Required Writing: Miscellaneous Pieces 1955-1982. London: Faber and Faber, 1984. 240-244

REFERÊNCIA:

Ferrante, Elena. Crónicas do Mal de Amor. Trad. Maria do Carmo Abreu, et al. Pref. James Wood. Lisboa: Relógio D'Água, 2014.