COMO CITAR:
Vala, João Pedro. «Marilynne Robinson, Gilead». Forma de Vida, 2015. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2015.0047.
DOI:
https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2015.0047
João Pedro Vala
Marilynne Robinson é uma escritora e ensaísta congregacionalista norte-americana, nascida no estado de Idaho. Além da trilogia sobre a vida em Gilead, da qual Gilead (vencedor do Pulitzer Prize for Fiction e do National Book Critics Circle Award de 2005) é o primeiro volume, Marilynne Robinson é autora de Housekeeping (1980) e de vários livros de ensaios, tendo ainda escrito uma tese de doutoramento sobre Henry VI, Part II de Shakespeare. O romance Gilead foi publicado em Portugal pela Difel em 2006, com o título Ao Meu Filho.
Gilead é a história do velho reverendo congregacionalista John Ames contada pelo próprio ao filho de sete anos (cujo nome nunca é referido) através de uma carta que só deve ser lida postumamente. E é a compreensão de que a morte está a chegar que, coincidindo com o nascimento do fruto da sua velhice, renova o mundo do reverendo, precisamente na hora da despedida.
Na carta que escreve ao filho, o pastor revela-se constantemente surpreendido perante o esplendor do mundo, como se fosse um espectador diante da criação de Deus, mas um espectador com um bilhete voltado para a audiência e com pouca visibilidade para o palco onde o espectáculo decorre. A certa altura, Ames conta que passara por uns rapazes “not churchgoing”, cobertos de graxa e que eles trocavam piadas entre si e se riam. O reverendo diz que, ao passar diante dos rapazes, estes pararam de se rir, como as pessoas fazem habitualmente diante de um servo de Deus, deixando-o desesperado por se sentir mais uma vez posto à margem da vida, como se a vida fosse esta piada da qual Ames só ouve os risos abafados ao longe. O reverendo é um espectador do mundo, alguém colocado do lado de fora de um milagre, não o vendo face a face mas apenas através das reacções das testemunhas. Ames acompanha todos os jogos de basebol mas sempre pela telefonia e tem inúmeras insónias em que passeia até à igreja, sem nunca deixar de se sentir como “an intruder (…), as if the darkness had a claim on everything, one that I violated just by stepping out the door”.
Mas o momento em que esta visão do mundo através de um espelho se revela de forma mais evidente ocorre no baptismo da mulher com quem mais tarde John casaria e que viria a ser a mãe do seu filho. John Ames casara e enviuvara muito novo, permanecendo viúvo durante várias décadas, até que, num dia de chuva, Lila entrou na sua igreja durante o sermão e se sentou no banco de trás, fazendo com que as palavras do reverendo, ao vê-la, “turned to ashes in my mouth”. Lila continua a ir às celebrações de John Ames, sem que este consiga perceber o que pode levar aquela rapariga a querer ouvir as cinzas que, Domingo após Domingo, lhe saem da boca, até ao dia em que Lila pede a John Ames que a baptize. John baptiza-a e Lila começa a chorar, enquanto o reverendo, sentindo-se “outside the mystery of it”, repete para dentro “What have I done?” É em momentos como este que Ames está a pensar quando diz ao filho: “I don’t know why I should expect to have any idea of heaven. I could never have imagined this world if I hadn’t spent eight decades walking around in it. People talk about how wonderful the world seems to children and that’s true enough. But children think they will grow into it and understand it, and I know very well I will not and would not if I had a dozen lives.”
Ao longo da carta, Ames expressa uma enorme ternura pelo filho. Talvez o melhor exemplo dessa ternura seja o passo em que o pastor diz que, mesmo tendo falado todas as semanas da disjunção infinita entre o amor que merecemos e o amor que Deus tem por nós, não consegue deixar de se irritar sempre que vê essa disjunção entre pais e filhos, acrescentando no entanto: “I hope you will be and I know you are an excellent man, and I will love you absolutely if you are not”. Ao mesmo tempo, Ames manifesta uma preocupação igualmente grande por, ao morrer, entregar o filho “into the wilderness”, mas encontra conforto para este medo nas ideias de que “even that wilderness, the very habitation of jackals, is the Lord’s” e de que há muitas maneiras de se ter uma vida boa.
Ames decide a certa altura fazer da sua morte iminente uma oportunidade para dizer ao filho aquilo que normalmente um pai nunca diz, uma vez que “when things are taking their ordinary course, it is hard to remember what matters” e porque, visto que se trata de uma carta que só será lida daqui a várias décadas, a morte aproxima as idades entre pai e filho. É então a morte que torna possível que o reverendo peça ao filho para, se algum dia pensar sobre o sentido que a sua vida teve, se lembrar de que foi uma dádiva de Deus a Ames, para depois acrescentar: “it may seem to you to be no great thing to have been the good child of an old man in a shabby little town you will no doubt leave behind. If only I had the words to tell you”. É também a proximidade da morte que permite que Ames partilhe com o filho o momento em que estava na sala a ouvir uma música na rádio e Lila se aproximou, o abraçou e, começando a dançar com ele, lhe disse com a voz mais terna que é possível imaginar:“Why’d you have to be so damn old?”
Se a morte aproxima o reverendo John Ames do filho, fazendo com que se lembre de lhe dizer aquilo que importa (“what matters”), é peculiar que o reverendo não insista na relevância de seguir o cristianismo. Esta omissão não pode, no entanto, ser vista nem como um esquecimento, nem, evidentemente, como uma sugestão de que a adesão ao cristianismo não faça parte da lista de coisas que importam para o pastor. O reverendo não tenta convencer o filho a aderir ao cristianismo pelo mesmo motivo por que não responde aos jovens do seu rebanho que, depois de lerem Gide e Sartre, lhe vêm pedir provas da existência de Deus: “And they want me to defend religion, and they want me to give them ‘proofs’. I just won’t do it. It only confirms them in their skepticism. Because nothing true can be said about God from a posture of defense”. Ames não apresenta argumentos acerca da presença de Deus na sua vida nem pede ao filho que caminhe ao encontro de Deus porque a única maneira de dizer coisas verdadeiras acerca de Deus é assumindo-o como uma evidência que não requer provas ou persuasões. Ames só pode levar o filho desde a wilderness até Deus se descrever o mundo como um lugar bom e a vida como um acontecimento extraordinário e extraordinário porque fruto de Deus, sem se preocupar em demonstrar a existência de Deus ou a ressurreição de Cristo. Porque, como diz o pastor a certa altura, “wherever you turn your eyes the world can shine like transfiguration. You don’t have to bring a thing to it except a little willingness to see. Only, who could have the courage to see it?”
REFERÊNCIA:
Robinson, Marilynne. Gilead. Londres: Virago Press, 2004.