COMO CITAR:
Carneiro, Helena. «Lorrie Moore, Bark». Forma de Vida, 2015. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2015.0049.
DOI:
https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2015.0049
Helena Carneiro
Segundo Northrop Frye, a comédia tem como elemento obrigatório um final feliz, momento em que é restabelecida uma ordem que se impõe contra o absurdo das situações que ocuparam a acção. Nos contos de Lorrie Moore reunidos em Bark a integração de situações absurdas ocorre sem qualquer resolução organizadora: no final de «The Juniper Tree», por exemplo, uma mulher atira uma tarte merengada contra a própria cara, sem que algo se siga a este evento – o artifício cómico é usado no final. Notando que outro dos contos, «Subject to Search», termina com a frase «Deixamo-nos todos levar por um final feliz» (p. 173), é possível questionar a convencionalidade inerente a finais felizes e perceber de que modo os finais de Moore podem ou não entrar na categoria da comédia.
O final feliz possível para o par de «Subject to Search» acontece não no tempo presente em que a acção do conto tem lugar, mas na memória dos momentos passados que conduziram este casal até ali, cuja descrição Moore coloca numa secção destacada no final do conto. Finais felizes dependem do modo como se seleccionam e organizam os elementos que constituem uma história e, em Bark, podem já ter acontecido. Em «Paper Losses», este processo torna-se ainda mais explícito quando a narradora diz: «Mais tarde, quando Kit aprendesse a contar esta história de maneira diferente, como uma história, ela construiria uma cena final de sexo vingativo» (p. 77). A história é a do divórcio de Kit e Rafe, e o final construído viria por oposição àquele que tem lugar e que é mais comum em histórias de divórcio: os insultos físicos e verbais em público num momento de descontrolo emocional. Neste conto, o que motiva o descontrolo é uma situação que tem tanto de absurda como de cruel: a estância turística em que o casal e os filhos vão passar férias (uma última esperança de Kit para salvar o casamento) oferece a oportunidade de admirar o nascimento e a partida de tartarugas-bebés para o mar; no entanto, esta actividade resulta apenas na morte de todas as tartarugas-bebés, retidas demasiado tempo em terra para benefício dos observadores.
A peculiaridade dos finais felizes de Moore – o segundo final mais bem-conseguido neste aspecto é o de «Foes», em que uma declaração de amor se traduz num «És adequado» (p. 94) – está directamente relacionada com as características das personagens de Bark, homens e mulheres a terminar relações longas, já com filhos, e cujo principal temor confesso é o de terem de enfrentar a sucessão de encontros amorosos com outras pessoas de meia-idade, arranjados pelos amigos. Este temor do recomeço não exclui o desejo dessa possibilidade, existindo indícios em todos os contos de fantasias nesse sentido; «Debarking» tem lugar por altura da Páscoa e isso invoca referências directas à ideia de morte e ressurreição, mas na maioria dos outros contos a alusão não é tão declarada, nem é necessário que o seja: bastam as indicações temporais referentes à Primavera para suscitar o mesmo tipo de associações.
Moore, no entanto, partilha com T.S. Eliot o conhecimento de quão enganadora a Primavera consegue ser com as suas promessas de novos começos: há coisas desagradáveis que por esta altura se dão a ver simplesmente porque o sol se torna mais quente e já não é possível mantê-las preservadas pelo frio que as torna invisíveis ou estáticas. Daí que KC e Dench, o casal de «Wings», se vejam obrigados a lidar com duas ratazanas putrefactas no sótão da casa onde vivem, cadáveres que agora se fazem notar pelo cheiro que o Inverno tornara indiscernível. O problema com os recomeços reside no facto de haver um passado, e se as personagens de Moore revelam uma obsessão com a passagem do tempo, tal deve-se não só ao tempo de vida que imaginam ainda ter, mas principalmente a tudo o que já viveram e que as moldou; como Ira admite em «Debarking», confrontando-se com o falhanço de uma primeira relação pós-divórcio, «ele tinha as suas limitações» (p. 43).
Escrito abertamente a partir de The Wings of the Dove, de Henry James, «Wings» é sobre o momento em que o casal mais novo desta série de contos (ambos nos trinta) decide «ganhar algum tempo» (p. 98) para tomar uma decisão sobre o caminho a seguir na vida. Sendo a estrutura do conto decalcada da obra de James, há, porém, uma advertência a fazer: «Uma vida podia rimar com uma vida – podia ser uma semelhança tão avassaladora que levasse alguém a confundi-la pela coisa em si» (p. 109). Deste pensamento de KC, a personagem feminina do casal, a propósito de um engano acerca do seu nome, é possível extrair implicações tanto para este conto, como para todo o livro. Podemos verificar que «Wings» não é o único conto baseado numa referência; «The Juniper Tree» é escrito em memória da cineasta Nietzchka Keene, tendo o título de um dos seus filmes, que por sua vez se baseia na história homónima dos irmãos Grimm; «Referential» indica, no final, que foi feito «a partir de VN» (p. 157), presumindo-se que «VN» estará por Vita Nova, a obra de Louise Glück citada numa das epígrafes a Bark. Estas epígrafes, aliás, anunciam o modo quase programático como Moore cobre em larga medida todas as expressões idiomáticas e as variações semânticas e de significado da palavra «bark». Contudo, apontar semelhanças pode ser arriscado: há sempre a possibilidade de se deverem a um acaso ou ao facto de procurarmos insistentemente por elas num processo obsessivo, e abusivo, de associação – em «Referential» (p. 151), um rapaz de dezasseis anos internado após várias tentativas de suicídio acredita que todos os livros que lê contêm mensagens sobre a sua própria vida, que lhe são exclusivamente dirigidas e que só ele consegue decifrar.
Numa comédia, ainda segundo Frye, os acontecimentos têm de ser manipulados para conduzirem a um final feliz; na maior parte das vezes, essa manipulação é suficientemente ostensiva e abrupta para parecer ilógica na acção, mas o que está em causa não são os meios e sim o resultado necessário. O final feliz é imprescindível e deve ser atingido a todo o custo: dele depende a ordenação essencial que leve o público, ou o leitor, a ajuizar o desenlace como o mais correcto e inevitável. Com vista a contar a história de uma vida, o processo é semelhante: seleccionam-se certos acontecimentos e certos momentos a serem organizados de um determinado modo que lhes confira alguma coerência e, acima de tudo, que dessa ordenação possa resultar uma explicação desejável, uma justificação da própria vida.
O final de «Thank You for Having Me», que é também o final de Bark, parece ser o final feliz possível tendo em conta as personagens que estão em causa. Neste conto celebra-se um casamento, mas só este facto obedece à convenção: o padrinho é o ex-marido da noiva; o ex-sogro age como se estivesse a sofrer um desgosto amoroso; a celebração é invadida por um grupo de motards cujo líder usa um capacete que tem colada, de cada lado, uma orelha de cão de peluche, e que profere um discurso que poderia ser tomado como revelador de uma qualquer verdade profunda sobre o significado do casamento e, até, da vida, mas as alusões crípticas e desconexas que o constituem só o tornam mais um sintoma do absurdo da situação. No entanto, a narradora do conto (é dela o final feliz, mas não o casamento), num momento de embriaguez, consegue atribuir a esse discurso o sentido que lhe é mais conveniente, terminando a sua história com uma descrição que parece atribuir uma ordem a um conjunto de eventos que só podem ser imputados ao acaso – sem essa ordenação, o raio de sol que embate nas paredes do celeiro no preciso momento em que a narradora sorri não seria uma mensagem exclusivamente dirigida a ela.
Referências:
Frye, Northrop. Anatomy of Criticism: Four Essays. Princeton: Princeton University Press, 1971.
REFERÊNCIA:
Moore, Lorrie. Bark. Londres: Faber & Faber, 2014.