COMO CITAR:
Rodrigues, Telmo. «John Szwed, Billie Holiday: The Musician and the Myth». Forma de Vida, 2015. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2015.0052.
DOI:
https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2015.0052
Telmo Rodrigues
Na introdução a Billie Holiday: The Musician and the Myth, John Szwed questiona-se sobre a legitimidade de escrever outro livro sobre Billie Holiday quando já existem mais de quarenta sobre vários aspectos da vida e obra da cantora, cada um focando uma das múltiplas «facetas» da figura pública que muitos consideram das melhores vozes da música moderna. A pulsão que o anima, e que ele considera validar o seu trabalho, é a análise da obra sem que esta seja afectada pelos diversos preconceitos gerados ao longo do tempo sobre a relação entre a vida pública e privada de Holiday, particularmente no que diz respeito aos acontecimentos mais mediáticos, como a dependência de drogas e álcool, as dificuldades impostas pelo racismo durante o período em que durou a sua carreira, as detenções por posse de estupefacientes ou os abusos de que foi vítima (maridos, agentes e empresários foram em várias alturas acusados de violência física e psicológica). Ao remover estas interferências biográficas, assim espera o autor, compreender-se-á finalmente o que torna esta obra especial em relação a outras, o que faz dela duradoura, para o público em geral, e influente, para os pares. A proposta do autor, anuncia-se na introdução, é contar «a história da arte» de Holiday (p. 5).
Supondo que a maior dificuldade em falar de Holiday consiste no ruído de fundo que certas histórias introduziram na apreciação geral das canções, Szwed divide o livro em duas partes: a primeira, intitulada «The Myth», aborda os aspectos da vida da cantora que consolidaram o mito à sua volta, nomeadamente a autobiografia, Lady Sings the Blues (1956), defendida por uns como representando a imagem que Holiday tinha de si própria, atacada por outros por ser um logro. Parte do esforço de Szwed concentra-se, aqui, em destrinçar factos verídicos de meras invenções. Escrita em parceria com William Dufty, a autobiografia foi limitada por questões legais e, em muitos momentos, construída à volta de eventos cuja veracidade Dufty não se preocupou em verificar (o exemplo mais óbvio será o facto de Holiday ter nascido em Filadélfia, não em Baltimore, como se afirma no livro). Szwed tenta perceber as condicionantes que terão levado Holiday e Dufty a modelar o livro daquela maneira.
Muitos dos aspectos que estavam planeados para a autobiografia acabaram por ser deixados de parte por associarem pessoas famosas e bem-vistas na sociedade americana a uma toxicodependente condenada por vários crimes. Entre os momentos mais relevantes que as questões legais obrigaram a suprimir estão as relações homossexuais que manteve com herdeiras de famílias abastadas, as relações íntimas com artistas como Orson Welles ou Elizabeth Bishop, e até um telefonema a J. Edgar Hoover para que este intercedesse por Holiday numa das acusações de posse de droga que lhe retiraram a licença necessária para poder actuar em Nova Iorque. No que diz respeito às invenções de Holiday sobre a sua vida, as explicações variam entre os problemas de memória e a necessidade de adequar o relato às ideias comuns sobre o que devia ser a vida de um artista afro-americano naquela altura. Segundo Szwed, a autobiografia moldou a percepção do público de tal maneira que as decisões conscientes e ponderadas que Holiday tomou em muitos momentos da carreira são tidas como fortuitas e resultado de circunstâncias sobre as quais a artista não teria tido controlo; nesse sentido, o autor pretende restabelecer a autoridade de Holiday, preocupando-se em demonstrar como as decisões artísticas são justificadas quer pelo que ela diz na autobiografia sobre o que pensava acerca de música quer pelas descrições detalhadas que faz do seu estilo e da evolução deste ao longo da carreira.
Na segunda parte do livro, «The Musician», Szwed concentra finalmente a atenção na obra, começando com um capítulo introdutório em que analisa a evolução da música popular americana até aos anos trinta; além de identificar as influências que alguns cantores poderão ter exercido sobre a artista, o autor explica a história de vários estilos musicais que reconhece na obra de Holiday. Os quatro capítulos que se seguem, e que concluem o livro, formam dois pares e funcionam como dois capítulos longos: os primeiros intitulados «The Singer I» e «The Singer II»; os seguintes «The Songs I» e «The Songs II». Em cada um destes pares, Szwed acompanha a carreira da cantora analisando as circunstâncias que envolveram a escolha, construção, gravação e edição das canções, bem como as consequências que esses aspectos tiveram na percepção dessas mesmas canções; detalha-se a técnica vocal, a relação dessa técnica com a música que a acompanhava, a maneira como a entoação alterava o significado de palavras ou como as canções foram sendo modificadas ao longo da carreira em sucessivas gravações. Desconfiado do facilitismo de extrair significado das letras para explicar a biografia da cantora, Szwed preocupa-se mais com os contextos das canções e das gravações, deixando que factos biográficos interfiram apenas quando ajudam a explicar decisões acerca de interpretações específicas.
No entanto, imiscui-se na análise do autor a ideia de que algumas canções são escolhidas pelo valor que as letras têm para descrever momentos da vida de Holiday; incapaz de refutar esse facto, até pelos vários comentários da cantora acerca do assunto, Szwed alarga a sua análise musical a outros campos. Notando, por exemplo, que Gunther Schuller afirmara ser impossível fazer a notação musical de algumas interpretações de Holiday, Szwed concede que a descrição de certas canções talvez só seja possível através da linguagem de poetas: não pelo recurso a linguagem metafórica, mas antes através da linguagem técnica usada para descrever poesia (p. 112). Pouco depois de fazer esta concessão, o autor assume que as aproximações feitas por alguns críticos entre Holiday e os maiores nomes da poesia (como John Donne ou Gerard Manley Hopkins) não terão sido apenas consequência da popularidade efémera que os estudos comparados detiveram para lá dos departamentos de literatura, mas talvez um desvio não despiciente para descrever como a técnica vocal dela escandia e acentuava as palavras de maneiras surpreendentes (p. 114). Esta concessão permite, depois, que quase todas as abordagens de Szwed para analisar a obra da cantora sejam tanto viáveis como necessárias, da linguística à sociologia, da literatura à musicologia – todas excepto a abordagem biográfica.
Szwed tenta expor a insensatez de analisar canções à luz de questões biográficas, estabelecendo que os cantores que ouvimos não são as «pessoas verdadeiras»: são como actores e assumem um papel quando cantam; assim sendo, as emoções expressas numa interpretação apenas têm de parecer autênticas, não têm de ser o reflexo exacto daquilo que o cantor sente. A única coisa palpável em que podemos confiar é a interpretação das canções (p. 107), pressupondo-se que só através da análise dos aspectos técnicos dessa performance podemos ter uma ideia acerca do valor da obra: a relação dos sentimentos com a vida real é apenas ilusória. Este parece ser o problema crucial para Szwed, que assume logo na página seguinte, em jeito de conclusão a esta passagem, que o que sabemos hoje de Holiday está determinado por aquilo que ouvimos nas canções e pelo que sobre ela escreveu quem nunca a viu ao vivo; logo a seguir, reforçando a relatividade associada à maneira como compreendemos um artista e a sua obra, afirma que a percebemos dependendo das circunstâncias em que a ouvimos – num restaurante ou no anúncio de um automóvel caro, na banda sonora de um filme ou através de auscultadores (p. 108). A todas estas variáveis Szwed responde com a análise apenas da obra, como se essa abordagem pudesse eliminar a multiplicidade de «facetas» que se amontoam de cada vez que se escreve sobre Holiday e transmitir uma imagem mais real de quem ela foi.
O problema, que o próprio Szwed concretiza ao longo do livro, está na presunção de que falar de canções, ao contrário de falar de livros ou pinturas, por exemplo, requer que se façam considerações sobre a presença física do autor numa gravação; mas esta posição assume que alguma coisa se perdeu para sempre no facto de não se ter convivido com a cantora e que essa convivência seria essencial para perceber convenientemente a obra. Ora, essa dificuldade não está patente apenas na obra de Holiday, ou na de músicos de uma forma geral, mas é transversal a qualquer pessoa digna de ser tratada numa biografia: é uma consequência da morte. As dificuldades conceptuais de Szwed são apenas sintomas de uma dificuldade inerente à proposta inicial, que parte da ideia de imaginar que há uma divisão estanque entre aquilo que é ter uma obra e aquilo que é viver à margem da produção dessa obra. A «história de uma arte», como este livro demonstra, é sempre uma história de pessoas e, nesse sentido, uma mistura de várias circunstâncias e influências que nunca poderemos senão tentar circunscrever, estabelecendo aquilo a que comummente chamamos biografias. Como Szwed promete desde a introdução, este livro não é, de facto, uma biografia: contudo, e ao contrário do que o autor imagina, isso não é uma virtude.
REFERÊNCIA:
Szwed, John. Billie Holiday: The Musician and the Myth. Nova Iorque: Viking, 2015.