COMO CITAR:

Andrade, Alexandre. «Peter Ackroyd, Alfred Hitchcock». Forma de Vida, 2015. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2015.0055.



DOI:

https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2015.0055

Alexandre Andrade

Um dos dilemas maiores do biógrafo, mais agudo do que nunca nos tempos que correm, é este: perante a superabundância de informação acerca de qualquer personagem mais ou menos obscura, disponível para qualquer interessado, o que pode justificar uma nova biografia? Há quem corra mundo e entreviste obsessivamente parentes e amigos do biografado, à procura dos farrapos de má-língua que distinguirão aquela biografia de todas as restantes; há quem, sem sair do recato do seu escritório, se entregue a devaneios que reduzem o biografado a um simples pretexto para as mais barrocas construções teóricas; há quem procure o escândalo sob forma de alegações escabrosas; há quem ceda à hagiografia; há quem cavalgue as modas e revisite esta ou aquela figura segundo os cânones dos estudos de género ou do paladar da moda em psicanálise.

Alfred Hitchcock, da autoria do multipremiado e ecléctico Peter Ackroyd, vem relembrar-nos que continua a ser válida (embora não forçosamente estimulante) a opção minimalista de contar a existência do biografado, do nascimento até à morte, mal se desviando da linearidade cronológica. Ackroyd pega-nos gentilmente pela mão e conduz-nos, com passo seguro, pela vida daquele que se tornou um dos mais famosos realizadores do mundo, desde as suas origens na média/baixa burguesia dos subúrbios de Londres (nasceu no andar de cima da mercearia do pai) até à morte, mais de 80 anos e 50 longas-metragens depois, na Califórnia, passando pelos estudos de engenharia, pelo ingresso no mundo do cinema como desenhador de intertítulos, os seus primeiros passos na realização, o casamento com Alma Reville, a transição para o sonoro, os primeiros sucessos de crítica e de público, a mudança para Hollywood, a fama planetária e o período final, marcado pelo declínio da saúde e por vários filmes fracassados ou mal recebidos. A história desta vida confunde-se praticamente com a história dos filmes, que são mencionados um por um, incluindo a génese, a escolha de colaboradores e actores, as vicissitudes da produção e o acolhimento crítico e popular. Incidentes como doenças, viagens, o nascimento da única filha, conflitos com produtores, homenagens, são descritos com parcimónia, entre um filme e o seguinte.

Nenhuma biografia, parece-me, se pode eximir à tentativa de dar a ver os processos que fizeram do biografado aquela mulher ou aquele homem que se destacou dos seus pares a ponto de merecer o interesse das gerações que se lhe seguiram. Ackroyd não se furta a esse propósito, mas, em vez de arriscar uma resposta única e ousada à pergunta como é que Alfred Hitchcock se tornou “Hitchcock”?, procede por pequenos toques espalhados ao longo de 11 capítulos e mais de 260 páginas. Em vez de propor uma tese visionária, coloca-nos perante um “Hitchcock” que foi em parte uma invenção do próprio Hitchcock (cujo carácter reservado não era incompatível com um apetite pela exposição e pela glória mediática) e em parte a consequência inevitável do seu trabalho, da sua capacidade invulgar de sintonizar os medos e anseios do público, do seu extraordinário talento para traduzir uma narrativa em imagens. Esta recusa persistente em atribuir o sucesso de Hitchcock a qualquer qualidade transcendente é, sem dúvida, refrescante. O que nos é oferecido é o retrato de um homem e a ponderação dos seus atributos; os golpes de sorte, as circunstâncias e a força de vontade percorrem a sua existência, perturbam-se ou reforçam-se mutuamente; o resultado é esta vida, longa e extraordinária mas ao mesmo tempo quase corriqueira e monótona, e escassa em sobressaltos maiores.

O livro teria a ganhar se se limitasse a este exercício de sobriedade, mas Ackroyd mostra-se incapaz de resistir à tentação de deixar a sua marca e esboçar os voos de que seria capaz numa obra de outra envergadura. Micróscopicas surtidas ensaísticas, tentativas de chegar ao geral a partir do particular, especulações que parecem nascer por gerações espontânea e não conduzem a lado algum, ressurgem periodicamente. Vejamos alguns exemplos. De férias numa estância de esqui, na Suíça, depois das filmagens de Strangers on a Train (1951), Hitchcock passa o tempo a ler em vez de interagir com a natureza. Observação sibilina do biógrafo: «He could look, but he could not act» (p. 144). Assim se extrai, numa só frase, uma verdade fundamental de uma anedota inócua; na frase seguinte, retoma-se tranquilamente o fio à meada: o regresso à Califórnia, o casamento da filha com um homem de negócios da Nova Inglaterra, a preparação do filme seguinte (I Confess, 1953). Na página 87, é mencionado o hábito de Hitchcock de adormecer em público. Assumidamente sem qualquer elemento que o sustente, Ackroyd sugere que tal podia ser devido ao abuso de opiáceos em combinação com álcool. Esta especulação não só nada acrescenta à biografia, como nos remete brevemente para o nível de uma conversa de café ou outro palco apropriado a devaneios gratuitos sobre terceiros.

A impressão geral é a de um livro escrito sob um défice de ponderação e com uma ligeireza que, aqui e ali, se faz sentir em detalhes sem demasiada importância, mas que se dispensavam. Por exemplo, é dito que James Stewart foi considerado demasiado velho para o papel de protagonista de North By Northwest (1959), que acabou por ser entregue a Cary Grant. «In any case James Stewart was now deemed too old; the film world could be unforgiving» (p. 190). Quem emitiu este julgamento sobre a idade de Stewart? O próprio Hitchcock? Ou esse difuso “mundo do cinema”? E não teria sido relevante relembrar que Grant era, afinal de contas, quatro anos mais velho do que o próprio Stewart? A impressão que persiste é a de uma visita guiada ao longo da vida de um homem notável, mas com uma cadência demasiado viva para permitir questões ou divagações. O Hitchcock de Ackroyd – profissional até à medula, calculista, manipulador, contido, ansioso – é desenhado com traços firmes e rápidos, mas carentes de subtileza. Restam (e já não é pouco) a competência e a fluidez da escrita, assim como a abundância de testemunhos. Saber apagar-se nas alturas devidas e deixar falar aqueles que conviveram e trabalharam com um dos maiores criadores de imagens do século XX é uma das virtudes que o autor desta biografia cultiva. Assinale-se.

REFERÊNCIA:

Ackroyd, Peter. Alfred Hitchcock. Londres: Chatto & Windus, 2015.