COMO CITAR:

Furtado, Maria Rita. «Rebecca Solnit, The Faraway Nearby». Forma de Vida, 2015. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2015.0060.



DOI:

https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2015.0060

Maria Rita Furtado

«What's your story? It's all in the telling. Stories are compasses and architecture (…) and to be without a story is to be lost.» (p. 4) Assim começa The Faraway Nearby (publicado em 2015 pela Quetzal com o título Esta Distante Proximidade), um dos livros mais recentes da escritora norte-americana Rebecca Solnit, que se apresenta como um mapa feito de histórias, através do qual a autora tenta guiar-se após uma série de acontecimentos que seriam capazes de interromper as histórias acerca de si própria e do mundo, pelas quais se regera até então: o Alzheimer da mãe, o fim de uma relação, a possibilidade de ter cancro. É preciso voltar a unir as pontas e fazer sentido de caminhos que parecem não levar a lado nenhum, e isso faz-se contando histórias e ligando-as umas às outras, ponto por ponto. Assim, segundo Solnit, usando histórias de outros e tentando perceber o que a nossa pode ter em comum com narrativas como Frankenstein e «The Snow Queen», mas também com as histórias da vida de revolucionários, de amigos e de desconhecidos, é possível que a nossa história volte a fazer sentido e possamos seguir o mapa, para que deixemos de estar perdidos.

Em geometria, uma parábola é uma curva cujos pontos distam em igual medida de um ponto fixo (foco) e de uma recta fixa (directriz). Se imaginarmos isto num plano (ou num gráfico bidimensional), podemos identificar com facilidade um eixo que funciona como uma espécie de espelho e que divide a parábola no centro. O que resulta são dois lados absolutamente simétricos. Ora, dizer que duas coisas são «simétricas», não é o mesmo que dizer que são «iguais» e o ponto x não é definido do mesmo modo do que o ponto -x. Quando abrimos o livro de Rebecca Solnit no índice, aquilo que vemos são os títulos dos treze capítulos e as páginas a que cada capítulo corresponde, distribuídos não uns sob os outros, como numa lista comum, mas formando uma curva, como uma parábola, que tem um capítulo central (o foco), chamado «Knot». A partir desse capítulo, os títulos dos anteriores repetem-se, de forma simétrica, do fim para o princípio, sendo as únicas excepções o sexto e o oitavo capítulos: onde primeiro temos «Wound», a seguir temos «Unwound». A directriz da parábola, aquilo que guia o observador de um lado ao outro do livro, é um parágrafo que, na versão impressa, vai surgindo ao longo de cada página, como se fosse uma nota de rodapé num programa de televisão sobre a bolsa de valores.

Comece-se pelo princípio: «Apricots». No primeiro capítulo de The Faraway Nearby, Rebecca Solnit conta que recebera uma grande quantidade de alperces, colhidos pelo irmão quando tiveram de abandonar a casa onde a mãe vivera. Os alperces são espalhados pelo chão do seu quarto e Solnit descreve o que observa como um enigma difícil de resolver:

«This abundance of unstable apricots seemed to be not only a task set for me, but my birthright, my fairy-tale inheritance from my mother who had given me almost nothing since my childhood. (…) The apricots were a riddle I had to decipher, a tale whose meaning I had to make over the course of the next twelve months as almost everything went wrong.

Fairy tales are about trouble, about getting in and out of it, and trouble seems to be a necessary stage on the route of becoming.» (p. 13)

A partir desta citação, o leitor fica a saber duas coisas: 1) que a autora teve um ano mau e 2) que anos maus, como os contos de fadas, são «sarilhos» que devemos enfrentar, perceber e abandonar, para que possamos crescer e avançar. Como já se constatou a propósito do índice, The Faraway Nearby começa e acaba com capítulos com o mesmo título: «Apricots». Porém, - «Apricots» não é igual a «Apricots», e ao longo da leitura assiste-se à transformação de um ponto -x, num ponto x, através da aplicação de uma espécie de uma equação que é sempre a mesma, mas que faz com que tudo se altere. Essa equação são as histórias que Solnit vai contando e que muitas vezes se repetem, tal como os títulos dos capítulos.

Até ao capítulo central, o leitor vai ficando a conhecer algumas das histórias pessoais que Rebecca Solnit considera fundamentais neste seu mapa – os alperces de que se acabou de falar, a relação da autora com a mãe, o fascínio por climas gelados, a viagem a Reiquiavique, o nódulo no peito, o fim da relação com um «namorado pérfido», a morte de uma amiga –, mas também as histórias de outros (muitas das quais recorrerão até ao fim), como o já mencionado Frankenstein, as leprosarias por onde passou Che Guevara na viagem que fez pela América do Sul, as versões de uma história lendária de um povo esquimó sobre uma mulher que come os filhos para sobreviver, os contos de Andersen... Depois, em «Unwound», a história de Solnit, que é todas estas histórias, começa a desenrolar-se e, como ocorre no processo psicanalítico de associação livre, em que o paciente deve dar sentido às histórias que vai contando ao psicanalista e que parecem não ter qualquer tipo de ligação entre si, o leitor começa a acompanhar o esforço que a autora faz para lidar com e re-contar a «series of unfortunate events» que tinham ocorrido na sua vida até aos momentos descritos em «Knot», ou aquilo a que chamei o foco da parábola.

Porque as metáforas ajudama perceber histórias e o que nos acontece, os alperces a apodrecer no chão (dos quais Solnit fará compotas e outras iguarias) são uma metáfora para o modo como a autora foi lidando com os acontecimentos infelizes que se sucederam ao longo de doze meses. Porém, outra metáfora, mais importante, se destaca em The Faraway Nearby: a metáfora da costura. Assim, no capítulo central, Solnit apela a «Rumpelstichen», um dos contos tornado famoso pelos irmãos Grimm, que servirá de chave para o modo como o livro foi construído:

«With Rumpelstilskin's help, the unnamed fairy-tale heroine spins straw into gold, but the wonder is that every spinner takes the amorphous mass before her and makes a thread appear, from which comes the stuff that contains the world, from a fishing net to a nightgown. She makes form out of formless, continuity out of fragments, narrative and meaning out of scattered incidents, for the storyteller is also a spinner or weaver and a story is a thread that meanders through our lives to connect us each to each and to the purpose and meaning that appear like roads we must travel.» (p. 131)

As estradas por que devemos viajar são as histórias que contamos, são a palha que devemos transformar em ouro e que nos salva de um fim abrupto e violento, como aquele de que esta heroína sem nome seria vítima, caso não cumprisse uma tarefa impossível, mas também como aquele que esperaria Sherazade (outra das heroínas de Solnit), caso não tivesse sido capaz de entreter o sultão com o que lhe foi contando ao longo de mil e uma noites. As histórias, como a palha que foi transformada em ouro, têm, para Solnit, um papel crucial na sobrevivência, mas não só: as histórias são o que nos liga ao mundo e às pessoas, porque são o que lhes dá sentido.

Porém, para traçarmos um mapa capaz de nos guiar, não chega sermos capazes de contar histórias. É preciso perceber por que contamos aquelas histórias. Ora, este «porquê» é a linha com que as histórias se cosem, é aquilo que realmente faz com que se dê forma ao informe e que corresponde, segundo Solnit, a uma ideia de empatia. Em geral, identificamo-nos com (ou sentimos empatia por) aquilo que nos é próximo de algum modo e o que conta é sempre aquilo que vemos de nosso no que lemos, ouvimos ou contamos. Em «Wound», um dos capítulos dedicado ao cancro, lê-se: «'I feel for you,' people say. If pain defines the boundaries of the body, you participate in the social body with those you empathize with, whose pain pains you – and whose joy is also contagious.» (p. 106) (E, numa frase do texto «directriz» que começa na página anterior, antes, acrescenta-se que «why sorrow and heartbreak are so delicious might have to do with the emotions it stirs in us, the empathy for others' suffering, and the small comfort of not being alone with our own.» (pp. 104-107) O que está na base de The Faraway Nearby é, portanto, não só a empatia que Solnit sente perante certas narrativas, mas também a empatia que Solnit faz com que o leitor sinta pelas histórias que conta.

Em literatura, uma parábola é uma história que nos ensina qualquer coisa acerca de nós próprios e do modo como devemos viver. Neste livro autobiográfico, Solnit mostra que as parábolas só ensinam alguma coisa se sentirmos empatia pelo que é relatado. Porém, como se pode perceber a partir do que foi dito atrás, o que Solnit defende é uma «pescadinha de rabo na boca» e as histórias que usamos para aprender, são as mesmas que nos definem. Assim, no caminho de autoconhecimento descrito em The Faraway Nearby, aquilo que definirá Solnit é a consciência de que a única coisa que pode ser exclusivamente sua é o que a leva a sentir empatia por histórias, ou seja, a ligação que apenas ela será capaz de estabelecer entre a história de Dr. Jekyll and Mr. Hyde e a do nascimento do filho de uma amiga, embora Solnit não seja a única pessoa que leu o romance de Stevenson e que teve amigas cujos bebés nasceram antes do tempo.

Finalmente, regressando àquilo a que chamei «directriz» de The Faraway Nearby, perto do fim lê-se, a propósito da história de uma mulher que casa com um homem-urso, que «it's not a circular tale; nothing comes back to where it started». Assim também o livro de Solnit. Por isso, se se começou pelo princípio, termine-se pelo fim, com uma citação do último capítulo, «Apricots», em que Solnit diz que fizera finalmente uma viagem de barco pelos rápidos do rio na base do Grand Canyon. A autora conta que numa noite entrou nas águas escuras do rio e que «circumambulated the raft, one hand on its side for safety, a little intimidated by the pure cold mystery of the dark waters that tugged at me as the bank dropped away and I went in deeper. I walked into the river up to my neck and walked out the other side of the raft, cooler.» (p. 254) O caminho que Solnit faz para entrar e sair do rio poderia ser descrito por uma parábola côncava (cuja directriz seria a jangada) e é também o que, ainda hoje, em algumas igrejas cristãs, se faz quando se baptiza alguém. No baptismo, quando alguém entra na água e sai do outro lado, renasce; deixa de ser -x e passa a ser x, redimindo o passado e tendo uma nova compreensão de si próprio. Todavia, o que é interessante no livro de Rebecca Solnit não é a ideia de redenção, de renascimento, mas o modo como a ideia é expressa, e que obriga o leitor de The Faraway Nearby a questionar as suas próprias histórias e aquilo que conta, para si, como empatia.

REFERÊNCIA:

Solnit, Rebecca. The Faraway Nearby. Londres: Granta, 2013.