COMO CITAR:
Andrade, Alexandre. «Saul Bellow, Herzog». Forma de Vida, 2015. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2015.0064.
DOI:
https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2015.0064
Alexandre Andrade
Poucas vezes a decisão de baptizar um romance com o nome da personagem principal (algo em que Bellow foi reincidente) terá sido tão apropriada. Mais do que dominar Herzog de uma ponta à outra, Moses Elkanah Herzog é a única razão de ser do romance. A identificação de Herzog com o próprio autor é do mais explícito que se possa imaginar, a ponto de ser plausível admitir que Bellow pretendeu sufocar à nascença quaisquer especulações sobre a natureza autobiográfica da obra. Tal como o autor (1915-2005): a personagem nasceu no Canadá e era filho de emigrantes russos oriundos de Sampetersburgo; descendia de um pai que vendia bebidas alcoólicas clandestinas durante a Lei Seca; mudou-se para os Estados Unidos na infância e dividiu a sua vida, a partir daí, entre Chicago e Nova Iorque; recupera de um divórcio traumatizante (Bellow viria ainda a casar-se mais três vezes e a divorciar-se duas vezes depois deste romance, publicado pela primeira vez em 1964). «Sim, este sou eu», parece o autor dizer-nos. «E depois?»
Essa identificação cheia de candura é ao mesmo tempo o alicerce do romance e uma fugaz nota de rodapé. Herzog é uma personagem demasiado vibrante, contraditória e intelectualmente hiperactiva para depender de um ramalhete de detalhes biográficos. O enredo segue durante alguns meses as deambulações do protagonista entre Nova Iorque, Chicago e uma zona rural do estado de Massachusetts onde tem uma casa, negligenciada mas ainda habitável. Estes trajectos parecem obedecer a impulsos intermitentes para procurar a solidão ou interagir com as pessoas que povoam o seu mundo: a amante, Ramona; o advogado; a filha, Junie; o amante da ex-mulher, Gersbach; e, acima de todos, a própria ex-mulher, Madeleine, que acumula os ímpetos violentos de uma Fúria clássica com um muito humano ódio em estado puro. As relações que Herzog mantém com estas pessoas são complexas e ambíguas; os seus movimentos de aproximação ou afastamento relativamente a elas obedecem às reapreciações sucessivas que faz da sua posição, às cadeias de argumentos e contra-argumentos que percorre mentalmente, e a uma sempre presente superestrutura de ideias e teorias que a sua erudição lhe oferece e a que ele recorre de forma compulsiva. Uma personagem e um autor convencionais contentar-se-iam com monólogos interiores e intervenções mais ou menos omniscientes para reflectir estas facetas; Herzog possui demasiada energia argumentativa e demasiada bagagem literária para se deixar limitar por meios tão medíocres. O seu modo de ser e operar socialmente passa, em vez disso, pela redacção de missivas dirigidas aos seus próximos, a amigos e conhecidos, a figuras públicas e até mesmo a personalidades famosas já mortas. A escrita destas cartas pontua o romance. Sem elas, Herzog seria um agradável e estimulante jogo de equilibrismo entre o cómico e o trágico, plenamente conseguido, e a personagem Herzog seria memorável, muito humana e comovedoramente consciente dos seus falhanços enquanto homem de família e académico. Graças à efusão epistolar que o acompanha como uma maldição, o protagonista projecta-se para uma dimensão completamente diferente e adquire uma estatura de herói épico e picaresco de um século XX marcado pela verbosidade e pela apologia.
Em Ulysses, Stephen Dedalus aludia ao pesadelo da História “from which I am trying to awake”. Meio século mais tarde, o pesadelo mais temível é o da história das ideias. Um homem como Herzog, com acesso facilitado às grandes construções teóricas e filosóficas da humanidade, vê-se compelido a usá-las como arma de argumentação, maneira de se situar na sociedade e matriz explicativa das vicissitudes que sofre. Nos seus recorrentes colóquios epistolares com vivos e mortos, a atitude predominante é a de confrontar teorias e mundividências com os seus casos. Ambientes, peripécias e personagens surgem acima de tudo como cenários e testemunhas desta actividade. Se o romance nunca ou raramente esmorece, isso deve-se ao talento de Moses para se auto-encenar como uma espécie de judeu errante pletórico e caprichoso. Apesar de estar demasiado obcecado com os seus próprios problemas para considerar sequer a hipótese de um público para as suas errâncias e para a sua eloquência, ele comporta-se como se quisesse compensar as suas insuficiências e incapacidade de agir com os ademanes que caem no goto do público. Nessa linha, um dos episódios finais, aquele em que Herzog se apodera de uma pistola antiga que pertencera ao pai e se dirige à casa agora ocupada pela ex-mulher e por Gersbach, no vago intuito de provocar uma carnificina, mas acaba detido pela polícia na sequência de um ridículo acidente de viação, é um sucesso retumbante. À medida que o romance se aproxima do fim, Herzog, isolado na sua casa de campo (cuja decadência nos é transmitida por meio de descrições gloriosas na sua opulência de pormenores bizarros), parece alcançar alguma paz e um equilíbrio precário entre as dimensões épica, cómica e trágica da sua pessoa. Isolado do mundo, mostra-se mais capaz do que nunca de ceder às tentativas de aproximação da amante e do irmão. A cessação da sua actividade epistolar tem sido apontada por leitores e críticos do livro como evidência do seu regresso à normalidade e à companhia dos seus pares, reconciliado com a arbitrariedade do mundo. É uma interpretação fundamentada e reconfortante, mas escasseiam os indícios para dar como garantido que Herzog virou a página e que o fim da logorreia («At this time he had no messages for anyone.», pág. 341) é mais do que um refluxo temporário. Estamos perante um homem inquieto e pronto para a acção, mas tão incapaz de controlar o próprio destino como qualquer outro passageiro do século XX; o falhanço, assim como a plena consciência do falhanço, continuarão a acompanhá-lo. As generalidades e racionalizações que o mantêm do lado de cá da sanidade ao longo do romance continuarão provavelmente a ser o seu recurso principal. Para alguém como Herzog, ser incompreensível e viver problemas impossíveis de confrontar com o espesso tecido de argumentos que o rodeia representa a angústia suprema e uma solidão intolerável. «Herzog could not say what the significance of such generalities might be. He was only vastly excited – in a streaming state – and intended mostly to restore order by turning to his habit of thoughtfulness.» (pág. 265). Restaurar a ordem. Por mais tortuosos que sejam os caminhos e por mais ruidosas e grotescas que sejam as peripécias, não é afinal ainda e sempre disso que se trata?
[Tradução portuguesa: Saul Bellow. 2014. Herzog. Trad. Salvato Telles de Menezes. Lisboa: Quetzal Editores.]
REFERÊNCIA:
Bellow, Saul. Herzog. 1964. Londres: Penguin Books, 2007.