COMO CITAR:
Rodrigues, Telmo. «Ben Lerner, Leaving the Atocha Station». Forma de Vida, 2015. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2015.0068.
DOI:
https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2015.0068
Telmo Rodrigues
O primeiro livro de prosa do poeta Ben Lerner, Leaving the Atocha Station, recebeu, de forma geral, críticas muito positivas. Entre as várias questões levantadas nessas críticas, a mais abordada foi a maneira como a relação óbvia entre o narrador, Adam Gordon, e o próprio autor se dilui através da bonomia que marca a ficção. O bom humor confere à história uma nota de liberdade que não seria expectável quando os factos descritos são tão claramente autobiográficos, sendo que os críticos destacaram muitas vezes o desprendimento do autor face à personagem Adam, que é declaradamente, em muitos momentos, reflexo de si próprio.
A relação autobiográfica, que, como o autor refere em várias entrevistas, resulta da necessidade que tem de escrever sobre coisas que lhe estão próximas, serve apenas, no entanto, para pôr em prática um conjunto de tentativas de justificar e validar a sua actividade enquanto poeta, fazendo-o através de uma personagem que nunca acredita muito naquilo que faz ou nas possibilidades da arte que produz; o romance, assim, testa diferentes respostas à pergunta sobre a razão pela qual alguém se dedica à actividade de escrever, especificamente poesia. A acção decorre ao longo de um ano, em Madrid, durante o qual o narrador beneficia de uma bolsa para a realização de um projecto que consiste na produção de um poema longo, apoiado por investigação, que reflicta sobre a resposta dos meios literários à Guerra Civil Espanhola e na relevância dessa resposta para a «literatura de hoje».
Contudo, o projecto está desde logo dificultado pelas ideias de Adam acerca do que é a poesia: poemas, repete-o várias vezes, não são sobre nada e não têm repercussões na vida real. Para além disso, a investigação e a actividade poética, no sentido prático de escrever e pensar sobre poemas, sejam eles de que natureza forem, estão sempre ameaçadas pelas actividades sociais em que Adam se envolve, desde festas com alunos da escola de línguas onde aprende castelhano, ao consumo de drogas e álcool, à simples tentativa de passar o tempo num país estranho (as visitas regulares ao Prado, por exemplo) ou, mais importante, às ligações com duas mulheres, Isabel e Teresa.
A tentativa de justificar aquilo que faz, a si próprio mas sobretudo aos outros, é motivo de preocupação constante; mas Lerner articula as diversas tentativas do narrador de modo a que as acções deste acabem por torná-las inválidas. A prática poética, por exemplo, é continuamente desvalorizada pela forma fortuita como acontece; da mesma maneira que palavras fora de contexto podem dar origem a poemas, também ideias levianas acabam em poemas: sentado no telhado das águas-furtadas onde vive, a ver passar aviões, Adam pensa em como seria bom poder estar dentro de um daqueles aviões e ao mesmo tempo estar do lado de fora, a observar-se lá dentro. Embora reconheça a infantilidade dessa ideia, ou do sentimento que a ela associa, esta acaba por transformar-se num dos poemas que são lidos por ele numa galeria, espaço público onde a relevância do seu trabalho é atestada.
A desvalorização da poesia não depende apenas da vacuidade intelectual, mas também do processo que lhe dá origem. O maior período de criatividade, por exemplo, tem origem numa alteração que introduz na medicação que lhe fora prescrita antes de partir para Espanha, o que lhe provoca efeitos secundários como a insónia que lhe permite ler e escrever durante mais tempo. Esse período solitário de muita produtividade induzido pela medicação é interrompido pelo regresso de Isabel, que apanha Adam a «roubar» frases de The Waste Land, o que retrospectivamente volta a pôr em causa a ideia de prática poética enquanto actividade intelectual válida (p. 104) e a reforçar a acusação que repete sobre si próprio ao longo do livro acerca de ser uma fraude.
Outro método de diminuir o valor do que o narrador faz consiste em tornar analogias inócuas. Numa decisão espontânea, Adam e Isabel decidem apanhar um comboio para Granada. Sentados no comboio, que sairá de Atocha, o narrador considera as poucas viagens que fez de comboio, descrevendo o meio de transporte como «arcaico» e comparando-o com a poesia (p. 89). A comparação ressoaria no ataque terrorista à estação, mas essa associação é imprudente dadas as posições tomadas sobre poesia: poemas não são sobre nada e não têm relevância no mundo, pelo que a ideia de um ataque à poesia é absurda.
Talvez o tema central do livro acerca da relação entre a poesia e o mundo político onde é criada, tal como apontado por vários críticos, encontrasse aqui o seu eco mais forte; no entanto, a política é apenas outra das tentativas que o narrador idealiza como maneira de ser levado a sério e acaba anulada pela sua falta de conhecimento sobre o franquismo, que resulta na analogia expectável entre Franco e George W. Bush, e em considerações vagas sobre como se poderia articular essa mesma analogia. A própria reacção de Adam ao período após os atentados, a sua incapacidade de compreender ou simpatizar com os sentimentos da população espanhola, revela um absoluto desprendimento face às questões políticas que se seguiram a esse acontecimento. Desse ponto de vista, e ao contrário do que acontece com poemas, comboios (arcaicos como aquele que o leva a Granada, ou modernos como o AVE que mais à frente o transportará a ele e a Teresa, a tradutora rica e sofisticada, para Barcelona) levam-nos a sítios e fazem acontecer coisas; por oposição à poesia, a comboios podem acontecer coisas. Mas apesar de tornar a analogia incipiente, Lerner não deixa de a explorar: no final, na secção «Agradecimentos», somos informados de que o título do livro é um verso de John Ashbery, o que recupera a comparação entre comboios e poesia.
Ashbery é, aliás, uma referência importante para o narrador, por encontrar na obra deste algo que valida a sua própria obra. Numa passagem em que explica a sua posição sobre Ashbery, Adam assume:
Ashbery’s flowing sentences always felt as they were making sense, but when you looked up from the page, it was impossible to say what sense had been made; while they used the language of logical connection—“but”, “therefore”, “so”—and the language that implied narrative development—“then”, “next”, “later”—such terms were merely propulsive; there was no actual organizing logic or progression. (p. 90)
A qualidade da poesia transfere-se de uma progressão lógica ou de uma ideia de narrativa para algo como «sentir o arco e a sensação de pensar na ausência de pensamentos» (p. 90). A qualidade dos poemas de Ashbery associa-se assim a um uso não consequencial da linguagem, como se fosse possível simular uma conversa em que nada é dito. Ora, as dificuldades que Adam diz ter com o castelhano, e que não lhe permitem expressar-se correctamente, são aquilo que tem de mais próximo com emular Ashbery, fazendo uso dessa deficiência linguística para enganar os seus interlocutores acerca da complexidade daquilo que diz, produzindo enunciados crípticos que tenta passar por pensamentos profundos. Como em todos os outros aspectos do livro, no entanto, o truque de tentar induzir dúvida através destas dificuldades linguísticas parece posto em causa quando tanto Isabel como Teresa lhe elogiam a fluência na língua que ele diz não dominar: Adam é uma fraude até a ser uma fraude.
Lerner, em Leaving the Atocha Station, faz o exercício de olhar para o seu trabalho como se estivesse do lado de fora: para alguém conhecido pela sua poesia, escrever um romance sobre o trabalho de um poeta é muito parecido com a ideia de estar dentro de um avião e ao mesmo tempo fora dele a observar-se. A validação que o narrador busca incessantemente, e que encontra no final, é obtida apenas pelo respeito que lhe é dirigido pelos seus pares, e aparece inexplicavelmente, como os próprios poemas. Durante a sua participação num painel em que se discute o tema «Literatura Hoje», e para o qual se prepara decorando frases de Ortega y Gasset ou Deleuze, ainda preocupado com o domínio da língua espanhola, Adam é confrontado com a pergunta «Então porquê escrever?»; responde, hesitante, «Não sei», e talvez essa seja mais válida que outras respostas à pergunta. Nesse sentido, a maturidade que o narrador busca não depende da validação do trabalho, por ele ou por outros, ou da elaboração de uma teoria poética particular, mas apenas do acto de continuar a escrever, nem que seja, como Lerner faz aqui, optando pela prosa para falar de poesia.
REFERÊNCIA:
Lerner, Ben. Leaving the Atocha Station. Londres: Granta, 2012.