COMO CITAR:
Carneiro, Helena. «Alice Munro, Ódio, Amizade, Namoro, Amor, Casamento». Forma de Vida, 2016. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2016.0020.
DOI:
https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2016.0020
Helena Carneiro
A primeira coisa que precisa de ser dita relativamente à edição portuguesa destes contos, não à obra, é um caveat. Apesar de estar a cargo de uma das melhores chancelas editoriais portuguesas, a tradução e revisão deste livro de Alice Munro ficam muito aquém do nível esperado: o texto apresenta erros de sintaxe graves, chegando até a haver enganos quando se trata de fazer referência a certas personagens; os erros que poderiam ter sido notados e corrigidos numa revisão, desde gralhas básicas a concordâncias várias, não o foram. O próprio texto de apresentação da contracapa contém incorrecções nas descrições sumárias de alguns contos. Estas faltas de cuidado na edição prejudicam a leitura, e por vezes até a compreensão, do que se passa nas histórias de Munro; no entanto, a qualidade dos contos resiste a este tratamento.
O primeiro conto, homónimo, de Ódio, Amizade, Namoro, Amor, Casamento, inicia-se com «anos atrás» (p. 11), e este marcador temporal torna-se programático noutros contos, mesmo quando não é explícito, revelando-se na estrutura: «Móveis de Família», «Urtigas», «O Que Se Recorda» e «Queenie» repartem-se alternadamente entre o passado e o presente de quem narra a história. Este traço ultrapassa uma questão de estilo, sendo fundamental para percebermos que as pessoas destas histórias estão a tentar fazer sentido de certos momentos da sua vida, ao mesmo tempo que nos obriga a pensar no grau de responsabilidade de cada uma destas pessoas relativamente ao curso dos acontecimentos descritos.
É também no conto homónimo que a questão da responsabilidade que temos sobre o que acontece no mundo surge de forma mais clara: «em que parte da lista de coisas que ela planeava alcançar na vida se fazia menção da sua responsabilidade pela existência de uma pessoa chamada Omar?» (p. 57). A personagem Edith reflecte sobre esta consequência das suas acções passadas e resolve o seu misto de espanto e indignação concluindo que «é-nos vedado saber… o que o destino tem reservado para mim, ou para ti» (p. 57). Mais do que isso, decide imputar essas acções e subsequente resultado ao seu «antigo eu», diferenciado do seu «eu actual» e do seu «verdadeiro eu, que ela esperava assumir no momento em que saísse daquela vila e se afastasse das pessoas que julgavam conhecê-la» (p. 57).
Em «Móveis de Família», a narradora também se concentra no objectivo de se afastar das pessoas que «tivessem perdido toda a importância na [sua] vida» (p. 103), imaginando que escrever, o trabalho que queria fazer, «parecia mais semelhante a apanhar qualquer coisa no ar do que a inventar histórias» (p. 117). Este desejo de final de adolescência e início de vida adulta ganha força pela altura no conto em que nos é descrito: Munro dá-nos a conhecer este idílio após já termos tido acesso ao momento da vida adulta desta narradora em que lhe é revelada uma informação da qual nunca suspeitara, mas que esteve sempre ao seu alcance, tivesse ela sabido ler os sinais. Não existem «eus» actuais ou passados ou verdadeiros, apenas ideais que fazem com que se corra o risco de ignorarmos o que está à nossa frente. Almejar eliminar de uma vida certas pessoas e certos acontecimentos, privilegiando outras pessoas e acontecimentos, é um exercício legítimo mas espúrio. O que tem lugar é uma selecção contínua, à medida que os anos avançam e que damos por nós numa requalificação e redescrição constante do que já vivemos, mediante o que vamos vivendo. A ignorância é uma fonte de preservação equivalente ao processo psicológico que determina que não nos lembremos de certos acontecimentos até estarmos preparados para os enfrentar.
É nestes termos de auto-preservação involuntária que Meriel, em «O Que Se Recorda», justifica ter suprimido da sua memória um detalhe particular de um encontro extra-conjugal que tivera lugar muitos anos antes. Não tivesse ocorrido essa supressão, «a sua vida podia ter sido diferente» (p. 232). Esta tomada de consciência vem acompanhada pela percepção de que uma das suas características definidoras é, justamente, a prudência. A mesma qualidade pode ser imputada à narradora de «Urtigas», que conta a história de um amor de infância reencontrado na vida adulta. Esse amor, que em nenhuma das alturas foi consumado ou sequer declarado, é descrito como «um amor que não arriscava partir o pescoço, ou converter-se numa piada má, ou desgastar-se tristemente» (p. 181). Sabemos que o reencontro é apenas um episódio na vida da narradora que teve, pelo menos, dois casamentos, e no entanto surge como central e definidor dessa vida, à semelhança do momento suprimido em «O Que Se Recorda». Não que Munro dote estes relatos de qualquer faceta extraordinária ou epifânica; pelo contrário, o tom é o de uma recordação quotidiana, algo que está sempre presente e em que pensamos mais agudamente no intervalo entre tarefas domésticas. A sensação que permanece é a de que algo poderia ter acontecido e não aconteceu, e somos confrontados com a acomodação de expectativas destas personagens.
Aquilo que é esperado que redefina as suas vidas, e são essas as expectativas a deflacionar, tem menos a ver com o tipo de trabalho que estas personagens fazem ou pretendem fazer, do que com as relações que mantêm. Estas relações são as listadas no título da colectânea. As histórias centram-se nas relações passadas que são recordadas porque estas personagens estão a tentar criar um equilíbrio entre o que lhes acontece e o que fazem, ou fizeram, acontecer. No decurso desse balanço, deparam-se com momentos em que pensaram ser possível negociar com o universo, adoptando um esquema razoavelmente lógico: um acordo.
Lorna, de «Pilar e Viga», temendo que uma decisão sua possa levar ao suicídio da sua prima Polly, tenta anular esse efeito imaginado através da «única saída que lhe restava. Fazer um acordo. Acreditar que ainda era possível, que até ao último minuto era possível fazer um acordo» (p. 205). Os termos desse acordo ficam por definir, ou melhor, a sua definição aproxima-se do modo como Edith resolve a sua perplexidade no primeiro conto: aqui, Lorna decide que «num caso como aquele, era provável que não nos competisse escolher. Não nos competia a nós definir os termos do acordo. Só os descobrimos quando os temos pela frente. Havia que prometer honrá-los sem saber quais seriam. Prometer» (p. 205). Fazer um acordo implica normalmente escolher aquilo que estamos dispostos a perder, e raramente somos capazes de uma abnegação desse carácter que seja totalmente honesta e desinteressada. O que fica claro é que até no modo como se tenta controlar e medir a nossa responsabilidade no mundo, quando se tenta negociar aquilo que pensamos ser a nossa capacidade de intervenção no que nos rodeia, há limitações.
Munro adverte para a imaturidade do acordo de Lorna esclarecendo que o mesmo tivera lugar «quando ela tinha vinte e quatro anos e nenhuma experiência de acordos» (p. 210). O acordo que Grant ensaia em «O Outro Lado da Montanha» parece ser mais experiente, mais prático e definido nos termos que o constituem. A mulher de Grant, Fiona, atinge um estádio avançado da doença de Alzheimer e é internada num lar; com o passar dos meses, deixa de reconhecer o marido e aproxima-se de Aubrey, um dos residentes temporários desse mesmo lar. Quando Aubrey é levado de novo para casa pela mulher, Marian, Fiona piora, correndo o risco de ser transferida para o piso dos doentes com distúrbios mentais severos. A troca a efectuar é simples, clara e vantajosa para todas as partes envolvidas: Grant oferece-se para ficar no lugar de Aubrey, como companheiro de Marian, para que aquele possa voltar para Fiona. Porém, o universo faz troça desse acordo: quando Grant leva Aubrey de regresso ao lar e ao quarto de Fiona, esta reconhece de novo Grant como seu marido, falando com ele como se a falta de memória nunca tivesse ocorrido. Pensando estar a fazer aquilo que poderia ser considerada a sua maior prova de amor, a reacção de Fiona transforma a acção de Grant numa traição.
Aceitar o que nos acontece não nos exime de responsabilidade; o truque está em percebermos que quaisquer que sejam os termos definidos, esses mudam no decurso do que vamos vivendo. As tentativas de equilíbrio e controlo que fazemos são para lidar com o que inevitavelmente teve de ser deixado para trás e com o que inevitavelmente nos deixou para trás. Munro sabe que não há acordos possíveis com o universo, apenas connosco.
REFERÊNCIA:
Munro, Alice. Ódio, Amizade, Namoro, Amor, Casamento. Trad. José Miguel Silva. Lisboa: Relógio D'Água, 2014.