COMO CITAR:

Vala, João Pedro. «Marilynne Robinson, Lila». Forma de Vida, 2016. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2016.0023.



DOI:

https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2016.0023

João Pedro Vala

Antes de lermos o terceiro volume da trilogia que Marilynne Robinson agora conclui tudo o que sabíamos acerca de Lila era apenas que tinha criado uma certa empatia com Jack, o filho pródigo do reverendo Robert Boughton, e que se casara com o pastor John Ames, depois de, num dia de chuva em que “there was no other doorway for her to step into” (página 11), ter entrado na Igreja onde Ames pregava. A narrativa desloca-se assim para o lado e alternadamente para a frente e para trás, contando-nos não só a história de Lila e John Ames mas também o que se passou com Lila antes de chegar a Gilead.

Apesar de focados em personagens radicalmente diferentes, os três volumes desta saga parecem ser sempre sobre regressos de exílios, sobre pessoas que voltam a um sítio cujo acesso lhes tinha sido vedado e de onde se sentiam excluídos. Em Gilead, Ames regressa ao amor esponsal de que se tinha afastado depois da morte da sua primeira mulher; em Home, Jack regressa à sua terra natal para junto do seu pai moribundo, depois de ter a vida inteira fugido do amor da sua família e agora em Lila, Lila regressa a Deus.

Lila começa com Lila ainda criança a viver numa casa degradada com pais negligentes e violentos. Lila está de castigo, a chorar fechada do lado de fora de casa quando passa Doll, que a levanta e envolve num xaile, dizendo-lhe: “Well, we got no place to go. Where we gonna go?” (página 4). Logo de seguida, é-nos dito que “If there was anyone the child hated worst, it was Doll”. Lila é assim salva pela pessoa que mais odiava, algo que se virá a repetir constantemente ao longo do romance. Lila compreende sempre de forma clara que o amor é uma fraqueza e que a torna vulnerável, odiando sempre os momentos em que confia em alguém e, por consequência, aqueles em quem confia.

Doll não tem nome e não sente necessidade de dar nome nenhum a Lila. Lila chama-se Lila Dahl por causa de uma mulher morta chamada Lila e porque uma professora achara que Doll era um apelido norueguês. Lila habituara-se a vida inteira à ideia de que um dia morreria sem que ninguém perdesse um segundo a chorá-la. O grupo com que sempre andava deixá-la-ia para trás assim que se tornasse obsoleta, assim que deixasse de ter forças para ser útil e da sua vida inteira restaria, na melhor das hipóteses, uma tabuleta ao lado de uma qualquer estrada.

Depois de conhecer o pastor de Gilead, Lila começa a visitar no cemitério a primeira mulher e a filha de John, dedicando-se a arranjar as rosas das campas da família Ames. Ao fazer isso, percebe que até ali “her name had the likeness of a name. She had the likeness of a woman, with hands but no face at all, since she never let herself see it. She had the likeness of a life, because she was all alone in it. She lived in the likeness of a house, with walls and a roof and a door that kept nothing in and nothing out” (página 68). Lila percebe então que a resposta que Doll lhe dera à pergunta “What are we, then?” não lhe basta, percebe que não são, ao contrário do que Doll acreditava, “just folks” (página 47). Lila vivera uma vida inteira sem saber quando era o Natal, uma vida em que o Inverno é apenas um tempo para se tentar sobreviver, mas ao chegar a Gilead começa a deixar de querer ser anónima. Quer ter um nome que seja um nome e uma vida que conte para alguém.

    Cansada da solidão e de uma vida em que não podia confiar em ninguém, Lila entra na Igreja do pastor Ames e fica espantada com a beleza daquele mundo que até então só observara ao longe. Como sempre, ao perceber que se interessara por qualquer coisa, Lila arranja imediatamente uma desculpa para este espanto, dizendo que a beleza da cena pode ter sido inflacionada pela fome com que estava na altura. Lila aproxima-se então de John Ames, o velho pastor congregacionalista de Gilead, e pede-lhe que a baptize. Fá-lo sem saber bem porquê, se para acabar com o seu anonimato, para se aproximar do pastor, para se salvar ou apenas por estar “tired of the damn loneliness” (página 58).

Ao olhar para o pastor, Lila começa a querer saber mais do que os melhores dias para colher feno. Ao ver aquele velho, Lila olha para a existência e pergunta “Why does he want more of it, with his house so empty, his wife and child so long in the ground?” (página 75). E esta pergunta serve também para si mesma. Lila começa a ver em John alguém com quem partilhar a solidão, alguém que sofrera tanto quanto ela e em quem poderia reclinar por um segundo a cabeça, acabando por, sem qualquer preparação ou contexto, pedir-lhe que case com ela. Lila e John casam e têm um filho, vivendo os três juntos, ao que tudo indica, até à morte do pastor.

No entanto, a progressão acima descrita de forma simplificada é tudo menos linear. Lila percebe que baptizar-se e amar Ames é um gesto de uma profunda violência, que nega tudo aquilo que fora até então e essa renúncia é penosa para si. A certa altura, Ames empresta a Lila uma camisola e Lila afeiçoa-se tanto a essa camisola que chega a desejar incinerá-la, apenas para se livrar do amor que sente. Lila chora muitas vezes à medida que o seu amor por Ames vai crescendo mas as lágrimas de Lila não são lágrimas de alegria, são lágrimas de arrependimento porque Lila Dahl sabe que ao amar o pastor, ao decidir baptizar-se na fé cristã, está a colocar-se do lado oposto ao daqueles com quem sempre vivera, do lado oposto do líder do seu antigo grupo, do lado oposto das prostitutas da casa em St. Louis, do lado oposto de Doll. Lila (tal como John Ames) não consegue conceber ser feliz num paraíso onde não estejam todos os seus companheiros de viagem, todos aqueles de quem ninguém, excepto ela, sentiria falta. Todos aqueles que nunca perderam um minuto a distinguir um Domingo de uma Segunda-Feira. 

É precisamente esta a grande virtude de Marilynne Robinson. É a capacidade que a escritora tem de nos devolver, a partir da história do casamento entre um pastor e uma nómada, o mistério e a importância de elementos centrais para o Cristianismo como o baptismo, aos quais nos tornámos insensíveis por culpa do hábito que mais impressiona nesta trilogia que agora se completa. Lila percebe que ao entrar pelo baptismo na fé cristã está verdadeiramente a nascer de novo, deixando para trás a sua vida velha. E é essa consciência que a leva a, pouco depois do seu baptismo, ir ao rio, erguer por três vezes as mãos cheias de água para que o rio que era “just like old life” (página 22) limpasse o seu baptismo, para que, caso encontrasse Doll sozinha e a vaguear, esta a pudesse reconhecer. É essa consciência que leva a que Lila, já no fim da gravidez, se dirija ao seu filho ainda por nascer, dizendo-lhe “We’ll just wander a while. We’ll be nowhere, and it will be all right. I have friends there” (página 251), porque em Lila, Marilynne Robinson mostra-nos que todos os baptismos são, tal como o baptismo do filho de Lila e Ames, baptismos de fogo.

 

Lila está traduzido para português pela Editorial Presença

REFERÊNCIA:

Robinson, Marilynne. Lila. Nova Iorque: Farrar, Straus and Giroux, 2014.