COMO CITAR:

Furtado, Maria Rita. «Lydia Davis, Can't and Won't». Forma de Vida, 2015. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2015.0043.



DOI:

https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2015.0043

Maria Rita Furtado

Numa entrevista publicada no site Literary Hub, Lydia Davis fala de aprender línguas estrangeiras (no caso, norueguês) e informa o leitor de que não usa dicionários: «No, I never use dictionaries. Then there would have been no challenge. No intellectual challenge at all!» A ideia de desafio é fundamental para o que a autora explica tanto sobre a aprendizagem de uma língua estrangeira (trata-se de um jogo, de um enigma que deve ser resolvido), como também sobre a sua própria escrita. O que torna interessante a leitura de Can't and Won't – a colecção mais recente de contos de Lydia Davis, publicada em 2014 e recentemente traduzida pela Relógio d'Água com o título de Não Posso Nem Quero – é, precisamente, a ideia de enigma.

A acreditar no que disse na mesma entrevista, a Davis interessa sobretudo o que está próximo da realidade: «more and more my interest as a writer goes in the direction of taking real material and making something from it. I can distort the truth a little bit (…), but my interest, more and more, is in what really happened.» Assim, mesmo em contos desencadeados por sonhos ou pela leitura de Flaubert, Davis escreve sobre o que acontece todos os dias e que «other people might find mundane or boring», e os contos de Can't and Won't revelam essa mesma mundanidade. São enumerações de incómodos (como os garfos serem demasiado curtos, terem mudado o apresentador da meteorologia, ter saliva de gato nas meias, …) e de barulhos que os objectos que todos temos em casa fazem, mas também falam de vacas, de andar de comboio e de embalagens de ervilhas. Porém, não têm a pretensão de parecer o que não são; ao iniciar cada conto, Davis aborda directamente o assunto de que vai falar nas linhas seguintes, para o que também contribuem os títulos. Veja-se o início de «Eating Fish Alone»: «Eating fish is something I generally do alone.» Daqui parte uma construção, quase como tópicos intercalados uns nos outros, sobre as razões por que a narradora come peixe sozinha quando está em casa («because of the strong smell»), mas também sobre os rituais em torno do consumo de peixe: querer que o vinho chegue rapidamente à mesa, quando come fora, ou consultar sempre uma lista onde figuram peixes que não se devem comer. Depois, como a maioria dos peixes servidos em restaurantes não deve ser consumida, essa lista serve de mote para contar peripécias que aconteceram em vários restaurantes, desde a empregada não saber que tipo de linguado era servido, a um chefe preocupado quanto ao sabor do espadarte que cozinhara.

Consultar uma lista de nomes de peixes e das consequências que podem vir do seu consumo é um modo de lidar com a arbitrariedade dos acontecimentos do dia-a-dia, tal como o é descrever os sons que várias coisas emitem, em «The Language of Things in the House», através de palavras que se lhes assemelham: «Winter jacket as it is being unzipped:  ‘Allumettes’.» Ao longo do conto, Davis vai intercalando frases como esta, com explicações para o modo como surgem as palavras que ouve:

The different language sounds are created by these objects in the following way: hard consonants are created by hard objects striking hard surfaces. Vowels are created with hollow spaces. (…)

Water being sucked down drain of kitchen sink “Dvořák.”

First release of water from toilet tank as handle is depressed: “Rudolph.”

I don't think I've heard or read these words recently – does this mean I always have the word “Rudolph,” for instance, in my head, maybe from Rudolph Giuliani, but more probably from “Rudolph the Red-Nosed Reindeer”?

Quase parece haver, portanto, uma razão para ouvirmos o som da água como uma palavra e não outra, seja uma razão lógica e perfeitamente dedutível, muito semelhante a uma regra («hard consonants are created by hard objects striking hard surfaces»), ou por uma razão que não se descobre, mas que deve existir, ainda assim («Does this mean...?»). Porém, na última vez que interrompe a lista de sons, Davis escreve: «There is no meaningful connection between the action or object that produces the sound (man's foot on gas pedal) and the significance of the word (‘Lisa!’).» Não haver ligação de significado entre certas acções e os sons que essas acções produzem não significa que a razão para que uma determinada ave emita a palavra «Marguerite!» seja inexistente. Ou seja, levanta-se a hipótese de a ligação entre «sons emitidos» e «coisas» não ser meramente contingente, ainda que não se possa perceber exactamente a que se deve.

Ora, parece ser aqui, numa ideia de ordem e de controlo que contrasta absolutamente com a arbitrariedade do dia-a-dia, que reside o enigma de que se falava no início. Se aprender uma língua estrangeira é, como se disse atrás a propósito da entrevista ao Literary Hub, jogar um jogo cujo objectivo é resolver um enigma, percebendo os padrões que se formam («You see how you are suddenly able to unlock so many words, just by studying the pattern?»), lidar com a realidade assemelha-se a descobrir padrões no acaso. De resto, uma das maiores preocupações de Davis ao longo de Can't and Won't é precisamente o que acontece de modo fortuito. O exemplo mais óbvio desta preocupação é «If at the Wedding (at the Zoo)», um dos últimos contos da colecção, em que Davis enumera uma série de coisas que viu durante um casamento, e que não teria visto se não tivesse, por exemplo, desviado o olhar: «If we hadn't looked away from the ceremony (…), we wouldn't have seen the Hasidic and Asian families walk past the pavilion gazing curiously at us».

Se neste conto não se regista, todavia, qualquer tipo de angústia relativamente ao que se poderia ter perdido, se não se tivesse por acaso virado a cabeça, o mesmo não acontece noutros textos, como em «The Letter to the Foundation». Em vários momentos do conto é descrito o caminho que a narradora faz da ou para a faculdade e, perto do final, refere-se uma cena num restaurante perto da estação de camionetas, em que um homem é aconselhado, por uma empregada nova, a comer truta com amêndoas. Visto que o homem é alérgico a frutos secos e a empregada nova não sabia, uma empregada mais antiga intervém: «Mr. Harris, you can't eat nuts. You can't have the trout almondine. It has almonds in it.» Comenta o narrador:

I liked the fact that the older waitress was taking care of her old steady customer. Then I had a thought that was odd, though not upleasant: I realized I could just as easily not have witnessed this scene, if I had chosen to stay in the bus station. (…) It would still have taken place. I had never before thought so clearly about all the scenes that took place when I wasn't there to witness them. And then, I had a stranger and less pleasant thought: not only was I not necessary to those scenes, and not necessary to those lives that continued to go on without me, but in fact, I was not necessary at all. I didn't have to exist.

Perceber que os acontecimentos podem decorrer independentemente de estarmos ou não presentes faz com que o enigma se adense: não há qualquer padrão que possamos descortinar a partir de dados a que não temos acesso. A realidade como um todo não pode, por isso, ser apreendida por ninguém, nem sequer por alguém que se dedica a escrever sobre ela.

Este problema torna-se ainda mais complicado quando se lê um conto como «The Seals», em que a narradora perdeu a irmã, que via menos vezes do que gostaria e com quem tinha uma relação difícil de descrever: «I miss her so much. Maybe you miss someone even more when you can't figure out what your relationship was. Or when it seemed unfinished.» Grande parte do conto é, por isso, uma tentativa de perceber esta relação: a narradora fala dos presentes curiosos que a irmã lhe enviava (como umas focas que se colocavam no frigorífico para absorver cheiros), das vezes em que a irmã ficava em sua casa e dormia no sofá, da infância de ambas, que foi tão diferente e que talvez pudesse clarificar muita coisa. Porém, nada é explicado e os presentes, como as focas, são guardados apenas porque lembram quem os ofereceu e não por serem úteis: «I like having them [the seals] because they remind me of her. (…) They have black smiles painted on their faces. Or at least a line painted on their faces that looks like a smile.» Não perceber se as focas estão a sorrir, ou se a linha que está pintada no seu focinho apenas se assemelha a um sorriso, é parecido com não perceber exactamente em que consiste a relação com alguém que nos é próximo.

Perceber-se que não se pode ter acesso a tudo o que acontece, ou ter-se consciência de que há coisas que nunca se vai compreender (seja a relação com um irmão, seja se uma linha numa figura é, ou não, um sorriso) é aquilo com que Davis mais confronta o leitor da sua colecção de contos mais recente. A incapacidade de apreender a realidade não depende apenas, pois, de se estar ausente, o que impede que se observe um acontecimento curioso. A realidade não pode ser apreendida porque qualquer tentativa de o fazer a transforma, ou seja, a realidade deixa de ser realidade e passa a ser outra coisa.  Em «Writing», Davis diz: «Writing is often about real things, and then, when it is about real things, it is often at the same time taking the place of some real things.» Por isso, se escrever passa a ocupar o lugar do que é real, o resultado da escrita, podendo ser sobre a realidade, nunca é, nem pode ser, a realidade em si. Todavia, Can't and Won't apresenta-se como uma colecção destas mesmas tentativas, ainda que vários contos revelem a consciência pungente da impossibilidade de se ser bem sucedido. Ora, é na expressão da consciência de que a realidade, ao contrário de uma língua estrangeira, é um enigma que não pode ser resolvido, que Davis é exímia.

 

Referências:

Entrevista a Lydia Davis: http://lithub.com/lydia-davis-at-the-end-of-the-world/

REFERÊNCIA:

Davis, Lydia. Can't and Won't. 2014. Londres: Penguin Books, 2015.