Nunca passo por Chalk-Newton sem me desviar para observar o planalto vizinho, num ponto onde uma vereda atravessa a estrada isolada que segue a direito, separando esta paróquia da seguinte. Tal vista não deixa de recordar o que um dia ali aconteceu e, apesar de hoje poder parecer supérfluo exumar mais memórias de histórias rurais, os rumores daquele local talvez exijam ser preservados.

O coro de Chalk-Newton (uma paróquia grande a cerca de meio caminho entre as aldeias de Ivell e Casterbridge, onde hoje fica uma estação de caminhos-de-ferro) saiu de casa num anoitecer escuro, mas ameno e excepcionalmente seco para a quadra natalícia (segundo os testemunhos de William Dewy de Mellstock, Michael Mail, e outros), pouco antes da meia-noite, para apresentar os seus cânticos anuais, sob as janelas da população local. A banda de músicos e cantores era uma das maiores do distrito; e, ao contrário do agrupamento de Mellstock (mais pequeno e melhor e que evitava tudo à excepção das cordas de tripa), incluía metais e palhetas nos rituais de domingo, ocupando toda a galeria lateral.

Nessa noite, havia dois ou três violinos, dois violoncelos, uma viola de gamba tenor, um contrabaixo, um oboé, clarinetes, um serpentão, e sete cantores. O que marcou particularmente a ocasião não foram, porém, os afazeres do coro, mas aquilo que os seus membros testemunharam por acaso.

Tinham percorrido aqueles caminhos durante muitos anos sem depararem com qualquer incidente invulgar, mas, nessa noite, segundo várias declarações, predominava, para começar, um estado de espírito excepcionalmente solene e meditativo entre dois ou três dos elementos mais velhos da banda, como se pensassem que se lhes poderiam juntar os fantasmas de amigos mortos que tinham feito parte do grupo em anos anteriores, e que agora estavam mudos no cemitério, sob túmulos niveladores: amigos que tinham mostrado no seu tempo um gosto maior pela música do que aquele se via hoje; ou que, em vez de um vizinho vivo e familiar, a voz finada de alguma figura semi-translúcida pudesse gargantear, através da janela de um quarto, o reconhecimento do seu cumprimento nocturno. Fosse isto facto ou fantasia, os membros mais novos do coro encontraram-se, levando consigo a descontracção e o entusiasmo habituais. Quando se juntaram perto da base de pedra, que era o que restava do cruzeiro no centro da vila, próximo da Hospedaria White Horse, que tinham decidido ser o seu ponto de partida, alguém notou que estavam adiantados, pois ainda não era meia-noite. Naqueles dias, os cantores locais evitavam, na sua maioria, soar uma nota antes de a manhã de Natal ter astronomicamente chegado e, não querendo regressar à cerveja, decidiram começar por algumas casas nas imediações da Estrada de Sidlinch, onde ninguém tinha relógios e não saberiam se era noite ou madrugada. Concordaram, pois, seguir naquela direcção; e, enquanto subiam até uma zona mais elevada, uma luz para lá das casas, quase no cimo do caminho, chamou-lhes a atenção.

O caminho de Chalk-Newton para Broad Sidlinch tem cerca de três quilómetros e, a meio do percurso, onde passa sobre uma colina que divide as duas aldeias, atravessa perpendicularmente, como já foi dito, a estrada velha, monótona e solitária conhecida por Estrada de Long Ash, que segue direita, como uma linha de topógrafo, muitos quilómetros para norte e para sul deste ponto, sobre as fundações de uma estrada romana, e foi mencionada muitas vezes nestas narrativas. Apesar de hoje estar quase deserta e cheia de ervas, no início do século estava bem conservada e era muito frequentada. A luz cintilante parecia vir do ponto preciso onde os caminhos se cruzavam.

— Acho que sei o que aquil’é! — observou alguém do grupo.

Pararam durante algum tempo, a discutir a probabilidade de a luz ter surgido devido a um acontecimento de que lhes tinham chegado rumores, e decidiram subir a colina.

Quando se aproximaram do cimo, as suas suspeitas tornaram-se mais fortes. A Estrada de Long Ash atravessava o seu caminho, à esquerda e à direita, e viram que no cruzamento dos quatro caminhos, sob o poste de sinalização, tinha sido escavada uma sepultura, na qual, à medida que o coro se aproximava, os homens de Sidlinch contratados para a tarefa acabavam de depositar um cadáver. A carroça e o cavalo que tinham levado o corpo até ali ainda lá estavam, em silêncio.

Os cantores e os músicos de Chalk-Newton pararam e observaram enquanto os coveiros enchiam a cova e achatavam a terra até, ficando o buraco cheio, o último atirar as pás para a carroça, preparando-se para partir.

— Quem é aquele qu’enterram ali? — perguntou Lot Swanhills, em voz alta. —  N’é o sargent’?

Os homens de Sidlinch tinham estado de tal modo absorvidos na sua tarefa que só agora reparavam nas lanternas do coro de Chalk-Newton.

— O que… Vocês são os cantores de Newton? — perguntaram os homens de Sidlinch.

— Pois, claro. Podrá ser o velh’ Sargento Holway qu’enterraram ali?

— É iss’. Ouviram falar dist’então?

O coro não sabia pormenores; apenas que ele se matara com um tiro no domingo anterior, na arrecadação das maçãs.

— Ninguém parece saber porquéquele fez aquil’, ach’. P’lo menos em Chalk-Newton não sabemes — continuou Lot.

— Oh, sim, no inquérito soube-se tud’.

Os cantores aproximaram-se, e os homens de Sidlinch, parando para descansar depois dos seus labores, contaram a história.

— Foi tudo por causa do filho, pobre velho. Partiu-lhe o coração.

— Mas o filh’é soldado, n’é; agora está c’o regiment’ nas Índias Orientais?

— Sim. E foi duro pr’ó exército lá, ultimamente. Foi uma pen’ó pai ter o persadid’a ir. Mas o Luke não devia ter condenad’o sargento por isso, porque fez p’lo melhor.

Em resumo, as circunstâncias foram as seguintes: o sargento que tinha tido este triste fim, pai do jovem soldado que fora com o regimento para o Oriente, vivera pacatamente a sua experiência militar, que terminara muito antes do deflagrar da grande guerra com França. Aquando da sua dispensa, depois de ter devidamente cumprido o serviço, regressou à sua vila natal, casou, e submeteu-se obsequiosamente à vida doméstica. Mas a guerra em que a Inglaterra se viu envolvida de seguida valeu-lhe muitas aflições, pois a idade e a doença impediram-no de voltar a ser um membro activo do exército. Quando o seu único filho se fez um jovem viril, e surgiu a questão acerca do que viria a fazer da vida, o rapaz manifestou o desejo de ser mecânico. Mas o seu pai recomendou, entusiasticamente, o exército.

— Os ofícios não valem nada hoj’em dia — disse ele. — E se a guerra com os franceses durar, e durará, os ofícios estarão ainda pior. O exército, Luke, é a coisa certa p’ra ti. Foi o que me fez homem e será o que te fará homem. Não tiv’a mesma sorte que tu terás nestes grandiosos tempos agitados.

Luke hesitou, pois era um jovem caseiro e pacífico. Mas, confiando respeitosamente no discernimento do pai, acabou por ceder e alistou-se no Regimento — de Infantaria. No decorrer de algumas semanas, foi enviado para a Índia, ao encontro do regimento que se notabilizara no Oriente sob o General Wellesley

Mas Luke não teve sorte. Indirectamente, chegaram notícias de que estava doente; e num dos últimos dias, quando passeava, o seu velho pai recebera novas de que uma carta o esperava em Casterbridge. O sargento mandou que um mensageiro particular percorresse os 14 quilómetros de distância, e a carta foi paga e levada para casa; mas apesar de, como adivinhara, a carta ser de Luke, o seu conteúdo tinha um sentido inesperado.

A carta fora escrita numa altura de grande depressão. Luke dizia que a sua vida era um fardo e uma escravidão e censurava amargamente o pai por o ter aconselhado a embarcar numa carreira para a qual se sentia inadequado. Deu consigo a sofrer fadigas e doenças, sem obter glória, comprometido com uma causa que não compreendia nem valorizava. Não fora o mau conselho do pai, Luke estaria a trabalhar confortavelmente num ofício, na vila que nunca desejara abandonar.

Depois de ler a carta, o sargento avançou alguns passos até ficar bem longe da vista de toda a gente, e sentou-se no declive à beira da estrada.

Quando se levantou, meia-hora depois, parecia enfraquecido e destroçado, e a partir daquele dia o seu ânimo natural abandonou-o. Profundamente ferido pelas ferroadas sarcásticas do filho, deixou-se levar pelo álcool cada vez mais frequentemente. A sua mulher morrera alguns anos antes, e o sargento vivia sozinho na casa que fora dela. Numa manhã do mês de Dezembro de que falamos, a detonação de uma arma foi ouvida nas imediações de sua casa e, ao entrarem, os vizinhos encontraram-no moribundo. Disparara sobre si próprio, com uma pederneira velha que usava para assustar pássaros; e, pelo que ele tinha dito no dia anterior e pelas medidas que tomara no caso da sua morte, não havia qualquer dúvida de que este fim tinha sido planeado deliberadamente, como consequência do esmorecimento em que havia caído devido à carta do filho. O júri emitiu um veredicto de felo de se.

— Aqui está a carta do filho dele — disse um dos homens de Sidlinch.

— Foi encontrada no bolso do pai del’. Podem ver p’lo estado dela quantas vezes el’a leu. Maneira que seja feit’à vontade do Senhor, porqu’é assim que tem de ser, quer s’queira quer não.

A sepultura estava coberta e nivelada, sem qualquer montículo sobre ela. Então, os homens de Sidlinch despediram-se do coro de Chalk-Newton, desejando uma boa noite, e partiram na carroça em que tinham transportado o corpo do sargento até à colina. Quando deixaram de os ouvir, e o vento varreu o túmulo isolado com o habitual silvo de indiferença, Lot Swanhills dirigiu-se ao velho Richard Toller, o oboísta:

— É duro pr’um homem, e ele er’um velh’ soldad’, ser tratad’assim, Richard. Não q’o sargento tenha estad’ numa batalha maior do que pl’um pasto de mei’ectar, é verdade. Mas mesm’assim a su’alma devia de ter as mesmas chances c’as dos outros homens, hã?

Richard respondeu que era da mesma opinião:

— O que dizem de ‘toar um cântic’ sobr’a sepultura, com’é Natal, e não há pressa p’ra começarmes lá embaixo na paróquia, e não demora dez minutes, e n’há vivalm’aqui em cima pra nos dizer que não, ou pra saber dist’?

Lot assentiu:

— O homem deve de ter as suas chances – repetiu.

— Também podem cuspir na campa, que lhe fazem o mesm’ bem que farão co que lh’entoarem, agora qu’está tão longe — disse Notton, o homem do clarinete e o céptico declarado do coro. — Mas concordo, s’os outros também.

Então, formaram um semicírculo ao lado da terra recém-mexida, e despertaram o ar fastidioso com o famoso número dezasseis do seu repertório, que Lot declarou ser aquele que melhor se adaptava à ocasião e ao estado de espírito:

Ele vem para libertar os presos,
Pela escravidão de Satã detidos.

— Ó diabo!, nunca tínhamos tocado pra um homem mort’antes — disse Ezra Cattstock quando, depois de terem concluído o último verso, ficaram meditando durante um momento. — Mas ist’ parece mais mis’ricordioso do qu’ir’embora e deixá-lo, como’s outros f’lanos fizeram.

— Agora voltemos a Newton, e quand’ estivermos p’la casa do pastor, será mei-noit’e meia — disse o líder.

Porém, ainda não tinham feito mais do que recolher os instrumentos quando o vento lhes fez chegar o barulho de um veículo a ser conduzido rapidamente pela mesma estrada de Sidlinch por onde os coveiros se haviam retirado há pouco. Para evitar serem atropelados quando avançassem, esperaram que o viajante obscurecido, quem quer que fosse, passasse por eles no sítio onde se encontravam, na zona mais larga do cruzamento.

Passado meio minuto, a luz das lanternas alumiou uma carruagem alugada, puxada por um cavalo suado e exausto. O veículo chegou ao poste de sinalização, quando uma voz lá dentro gritou:

— Pára! — O condutor puxou as rédeas. A porta da carruagem abriu do interior, e de lá saltou um soldado raso, com o uniforme de um regimento de linha. Olhou em volta, parecendo surpreendido por ver os músicos ali parados.

— Enterraram aqui um homem? — perguntou.

— Não. Não somos gente de Sidlinch, graças’a Deus; somos o coro de Newton. Mas um homem acabou de ser enterrad’aqui, é verdade; e nós ‘toámes um cântic’ sobr’o esqu’let’ do pobre mortal. O quê… Os meus olhos vêem à minha frent’o jovem Luke Holway, que foi co’ seu regimento pr’ás Índias Orientais, ou vej’o seu espírito vind’o camp’ de batalha? É o filho qu’escreveu a carta…

— Não. Não me façam perguntas. O funeral terminou, então?

— Não houv’um funeral, cristão, ist’é. Mas ‘tá enterrad’, iss’é certo. Deve ter vist’os homens que voltavam na carroça vazia.

— Como um cão numa vala, e tudo culpa minha!

Permaneceu em silêncio, olhando para a sepultura, e eles não puderam deixar de sentir compaixão.

— Meus amigos — disse ele —, agora compreendo melhor. Vocês cantaram paz à sua alma, julgo eu, por caridade entre vizinhos? Agradeço-lhes, do fundo do coração, pela vossa amável compaixão. Sim, sou o miserável filho do Sargento Holway; sou o filho que causou a morte do seu pai, tanto como se o tivesse feito com as minhas próprias mãos!

— Não, não. Não sejais tão duro convosc’, jovem. Ele já andav’em baixo há algum tempo, dia sim, dia não, foi o qu’ouvimos dizer.

— Estávamos no Oriente, quando lhe escrevi. Tudo me parecia correr mal. Logo depois de a minha carta ter seguido, mandaram-nos regressar a casa. É por isso que me vêem aqui. Assim que chegámos ao quartel em Casterbridge, ouvi falar dist’… Maldito seja eu! Atrever-me-ei a seguir o meu pai e acabar comigo, também. É a única coisa que resta fazer!

— Não vos precipitais, Luke Holway, volt’a dizer; mas tentai corrigir isto p’la vossa vida f’tura. E talvez o voss’ pai sorria um sorriso vind’o céu sobre vós por iss’.

Abanou a cabeça.

— Não tenh’a certeza disso! — respondeu amargamente.

— Tentai ser merecedor do qu’o voss’pai tinha de melhor. Não é demasiad’ tarde.

— Achais que não? Imagin’ que seja!... Bem, vou voltar para trás. Obrigado p’lo vosso bom conselho. Terei por que viver, de qualquer mod’. Vou mudar o corpo do pai para um cemitério cristão decente, nem que o faça com as minhas próprias mãos. Não poss’ salvar a sua vida, mas poss’ dar-lhe uma sepultura digna. Ele não repousará neste sítio maldito!

— Iss’. Com’o noss’ pastor diz, é um c’stume bárbaro qu’ainda têm em Sidlinch, e deviam acabar co’ele. O homem também era soldado. Vede, o nosso pastor n’é com’o voss’em Sidlinch.

— Ele diz que é bárbaro, diz? E é! — gritou o soldado. — Agora oiçam bem, amigos… — então, perguntou se eles aumentariam a dívida que ele tinha para com o coro levando a cabo, confidencialmente, a remoção do corpo do suicida para o cemitério não de Sidlinch, uma paróquia que agora odiava, mas de Chalk-Newton. Ele dar-lhes-ia tudo o que possuísse para o fazerem.

Lot perguntou a Ezra Cattstock o que pensava disso.

Cattstock, o violoncelista, que também era sacristão, vacilou e aconselhou o jovem soldado a começar por sondar o reitor.

— Talvez seja qu’ele desaprove, e também pode ser que não. O pastor de Sidlinch é um homem dur’, é verdad’, e disse que s’agente se matasse de cabeça quent’ tinha de sofrer as consequências. Mas o noss’ não pensa assim nunca, e pod’eixar.

— Como se chama ele?

— Sr. Oldham, o honorável e reverend’irmão do Lord Wessex. Mas não precisais de ter med’ele por iss’. Ele vai flar convosc’ com’um homem do pov’, desde que não tenhais bebid’ tant’ que tenhais ficad’com mau hálit’.

— Ó, o mesmo de antes. Vou perguntar-lhe. Obrigado. E assim que isso estiver feito…

— O quê?

— Há guerra em Espanha. Ouvi dizer que iríamos para lá. Tentarei provar a mim próprio que sou o homem que o meu pai desejava que fosse. Calculo que não consiga, mas tentarei, do meu modo frouxo. Ao menos isso juro, aqui, sobre o seu corpo. Deus é testemunha — Luke bateu com a palma da mão no poste branco com tanta força, que este abanou. — Sim, há guerra em Espanha; e uma nova oportunidade para que eu seja digno do meu pai.

Assim, naquela noite a questão ficou encerrada. Que o soldado tinha posto em acção uma das promessas que fizera tornou-se evidente, pois durante a semana de Natal o reitor foi ao cemitério quando Cattstock lá estava, e pediu-lhe que descobrisse um sítio que fosse adequado para um tal enterro, acrescentando que tinha privado vagamente com o falecido sargento e que não tinha conhecimento de qualquer lei que o impedisse de aprovar a trasladação, tendo as normas sido cumpridas à letra. Mas como não queria que parecesse que o que o motivava era a oposição ao seu vizinho de Sidlinch, estipulara que o acto de caridade deveria ser levado a cabo à noite, de modo tão discreto quanto possível, e que a sepultura deveria ficar numa zona recôndita do cemitério.

— É melhor consultar o jovem a este respeito, imediatamente — acrescentou o reitor.

Mas antes que Ezra tivesse feito alguma coisa, Luke foi até casa dele. A sua licença fora interrompida devido a novos desenvolvimentos da guerra na Península e, tendo sido compelido a regressar ao seu regimento imediatamente, foi forçado a deixar a exumação e o novo enterro nas mãos dos seus amigos. Estava tudo pago e ele implorou a todos que cumprissem a tarefa de imediato.

Com isto, o soldado partiu. No dia seguinte, Ezra, reflectindo sobre o assunto, voltou a dirigir-se à casa paroquial, atingido por uma preocupação repentina. Lembrara-se que o sargento tinha sido enterrado sem caixão, e era possível que o corpo tivesse sido atravessado por uma estaca. A tarefa seria mais delicada do que tinham suposto inicialmente.

— Sim, é verdade! — murmurou o reitor. — Temo que afinal não possa ser feito.

O acontecimento seguinte foi a chegada de uma lápide, por portador, vinda da vila mais próxima, a ser deixada em casa de Mr. Ezra Cattstock; todas as despesas estavam pagas. O sacristão e o portador colocaram a lápide no anexo do primeiro; e Ezra, encontrando-se sozinho, pôs os óculos e leu a inscrição breve e simples:

AQUI JAZ O CORPO DE SAMUEL HOLWAY,
ANTIGO SARGENTO AO SERVIÇO DO REGIMENTO –– DE INFANTARIA DE SUA MAJESTADE,
QUE DEIXOU ESTA VIDA A 20 DE DEZEMBRO DE 180—.
ERGUIDA por L. H.
«NÃO SOU DIGNO DE SER CHAMADO VOSSO FILHO.»

Ezra dirigiu-se novamente à casa paroquial, à beira-rio.

— A lápide chegou, senhor. Mas tenh’ medo que não se possa fazer não.

— Gostaria de lhe prestar esse serviço — disse o incumbente, distintamente velho. — E renunciaria a qualquer remuneração de boa vontade. Contudo, se tu e os outros acham que não conseguem levá-lo a cabo, não sei o que dizer.

— Bem, senhor, perguntei a uma mulher de Sidlinch sobre o enterro dele, e o que eu pensava parece verdade. Enterraram ele c’uma estaca de metr’ioitenta plo corpo, do bardo d’ovelhas da pastagem do Norte, embora não o admitam agora. E a questão é, val’a pena a mudança, considrand’o embaraço?

— Tiveste mais notícias do rapaz?

Ezra apenas soubera que ele tinha embarcado nessa semana para Espanha, com o resto do regimento.

— E s’ele estiver tão desesp’rado como parcia, talvez nunca mais o vejamos aqui em Inglaterra.

— É um caso bicudo — disse o reitor.

Ezra discutiu o assunto com o coro; um deles sugeriu que a lápide fosse colocada no cruzamento. Isso foi considerado inviável. Outro disse que talvez pudesse ser posta no cemitério, sem se remover o corpo; mas isso foi considerado desonesto. Portanto, nada se fez.

A lápide permaneceu no anexo de Ezra até que, tendo-se cansado de a ver ali, a escondeu entre os arbustos, no fundo do seu jardim. Por vezes, o assunto ressurgia entre eles, mas terminava sempre com:

— Considrando como foi enterrad’, dificilmente podemos fazer ist’.

Havia sempre a ideia de que Luke nunca mais regressaria, uma impressão tornada mais forte pelas tragédias que se dizia terem assolado o exército, em Espanha. Isto tendia a tornar a inércia deles permanente. A lápide foi ficando verde durante o tempo que permaneceu virada ao contrário, sob os arbustos de Ezra; então, uma árvore à beira-rio foi deitada abaixo pelo vento e, caindo sobre ela, partiu-a em três pedaços. Finalmente, os pedaços ficaram soterrados em folhas e bolor.

Luke não tinha nascido em Chalk-Newton, e deixara de ter quaisquer relações em Sidlinch, por isso não chegaram notícias dele a nenhuma das vilas, durante a guerra. Mas, depois de Waterloo e da queda de Napoleão, entrou um dia em Sidlinch um sargento-mor inglês, coberto de divisas e, ao que parece, pleno de glória. O serviço no estrangeiro tinha mudado Luke Holway de tal maneira, que só quando ele disse o seu nome é que os habitantes o reconheceram como sendo o único filho do sargento.

Ele servira com uma eficiência inabalável durante as campanhas peninsulares, comandado por Wellington; tinha lutado no Buçaco, em Fuentes d’Onore, Ciudad Rodrigo, Badajoz, Salamanca, Vittoria, Quatre Bras, e Waterloo; e agora regressara para desfrutar de uma pensão mais do que merecida e descansar na sua terra natal.

Permaneceu em Sidlinch pouco mais do que o tempo suficiente para tomar uma refeição à chegada. Nessa mesma tarde, seguiu a pé pela colina para Chalk-Newton, passando o poste de sinalização e dizendo, ao olhar para aquele local: «Graças a Deus: ele não está ali!» O anoitecer estava iminente quando chegou à segunda vila; mas seguiu directamente para o cemitério. Ao entrar, ainda havia luz suficiente para distinguir as lápides umas das outras, e Luke observou-as atentamente. Porém, apesar de ter procurado na parte da frente, perto da estrada, e na parte de trás, junto ao rio, não conseguiu encontrar o que desejava: o túmulo do sargento Holway e a lápide com a inscrição «NÃO SOU DIGNO DE SER CHAMADO VOSSO FILHO.»

Saiu do cemitério e fez perguntas. O velho, honorável e reverendo reitor tinha morrido, bem como vários membros do coro; mas, pouco a pouco, o sargento-mor ficou a saber que o seu pai permanecia no cruzamento da Estrada de Long Ash.

Luke seguiu, melancólico, o caminho para casa, o que, percorrendo-o sem se desviar, o obrigava a passar novamente pelo local, pois não havia outra estrada entre as duas vilas. Mas já não podia passar por aquele sítio, que vociferava acusações no tom de voz do pai; passou a cerca e vagueou sinuosamente pelos campos arados, para evitar aquele sítio. Luke tinha suportado muitas lutas e fadigas por pensar que estava a repor a honra da família e a fazer rectificações nobres. Porém, o seu pai permanecia em degradação. Era mais um sentimento do que um facto que o corpo do pai tinha sido obrigado a sofrer por causa das suas próprias ofensas; mas, devido à sua sensibilidade exacerbada, parecia-lhe que os esforços que fizera para restabelecer o seu carácter e apaziguar a alma do insultado tinham falhado.

Esforçou-se, contudo, por se livrar da sua letargia e, porque não gostava da sociedade de Sidlinch, arrendou uma pequena casa em Chalk-Newton, que estava vazia havia muito. Aí viveu sozinho, tornando-se num verdadeiro eremita, e não permitindo a entrada a nenhuma mulher.

No Natal após ter-se instalado ali, estava sentado no canto da chaminé, sozinho, quando ouviu umas notas ténues ao longe, e pouco depois irrompeu uma melodia do lado de fora da sua janela. Vinha dos cantores, como de costume; e apesar de muitos dos cantores veteranos já terem partido para o eterno descanso, incluindo Ezra e Lot, ainda se cantavam os mesmos velhos cânticos, saídos dos mesmos velhos livros. Ali ressoaram, através das persianas do sargento-mor, os versos familiares que o coro defunto tinha entoado sobre a sepultura do seu pai:

Ele vem para libertar os presos,
Pela escravidão de Satã detidos.

Quando terminaram, seguiram para outra casa, deixando-o com o silêncio e a solidão anteriores.

O pavio chamuscado da vela precisava de ser cortado, mas ele não o cortou, e permaneceu sentado até a vela se extinguir no castiçal, produzindo sombras ondeantes no tecto.

A alegria natalícia da manhã seguinte foi quebrada ao pequeno-almoço pela notícia trágica que se espalhou pela vila como vento. O sargento-mor Holway tinha sido encontrado com um tiro na cabeça, disparado por si próprio, no cruzamento da Estrada de Long Ash, onde o seu pai jazia.

Sobre a mesa, em casa, o soldado tinha deixado um pedaço de papel no qual escrevera o seu desejo de ser enterrado no cruzamento, ao lado do pai. Mas o papel foi acidentalmente empurrado para o chão e desprezado até ao enterro, que decorreu do modo convencional, no cemitério.

Natal de 1897.

 

* Tradução feita ao abrigo da Bolsa de Apoio ao Doutoramento da Universidade de Lisboa (Faculdade de Letras).

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