Recentemente, a publicação de uma nova proposta de cânone da literatura portuguesa[1] mereceu especial, e talvez pouco usual, consideração por parte da comunicação social e do público. O tópico envolve alguma polémica, a que os editores não se furtam. Não surpreende a quase ausência de autores/textos medievais, reduzidos a um capítulo sobre a lírica, e ao justamente louvado Fernão Lopes e ainda a D. Duarte (ambos já do século XV). De facto, os autores medievais não parecem gozar de especial admiração por parte da crítica contemporânea; afinal, o que é um D. Dinis frente a um Camões ou um Pedro de Barcelos em face de um Herculano?

Algo semelhante foi notado por José Mattoso[2] para o «cânone ocidental» proposto por Harold Bloom (trad. port. O Cânone Ocidental, Lisboa, Temas e debates, 1997). Os cerca de mil anos que vão entre 400-1400 não mereceram mais do que um único autor: Santo Agostinho. Já para não dizer que Agostinho, com a recente autonomização da Antiguidade tardia, só dificilmente será hoje considerado um autor «medieval»...

Como é evidente, a proposta de um determinado cânone decorre menos de um conjunto de critérios objectivos do que dos juízos contingentes que cada sociedade determinou e dos gostos subjectivos de quem escolheu (como os editores deste Cânone português admitem logo na introdução). Desconheço se Bloom acredita mesmo que o seu cânone decorre do «fulgor estético, força intelectual ou sabedoria dos textos», como ele defende. Eu modicae fidei me confesso: desconheço como ele aferiu aquelas categorias, a não ser pela sua opinião subjectiva.

A verdade é que os autores medievais continuam a ter «má imprensa». É evidente que já ninguém se atreve a avaliar abertamente o mundo medieval como uma «época de trevas», mas quase ninguém considera verdadeiramente entusiasmante como modelo literário e de pensamento a esmagadora maioria dos seus autores e textos. Se olharmos para a Antiguidade tardia e sobretudo para a Alta Idade Média, essa conclusão é ainda mais evidente. Os motivos para isso residem nas características do próprio cânone que se formou neste período. De facto, este foi, até ao século XX, o único cânone verdadeiramente disruptivo no mundo mediterrâneo-ocidental. Interessa-me aqui discutir esta disrupção, desnaturalizar critérios de «qualidade» e confirmar que não há nada de universal nem de intemporal no «cânone». Os exemplos que apresentarei circunscrever-se-ão sobretudo ao mundo ibérico, embora eu creia que eles se aplicam a grande parte do Mediterrâneo ocidental no mesmo período.

 

O primeiro factor em que importa insistir é que o cânone que se cristalizou na Antiguidade tardia e Alta Idade Média estava associado à escola. Já era assim desde a Antiguidade (e de facto é assim até aos nossos dias): não houve nenhuma destruição causada por uns maléficos monges ao serviço de uma inquisição psicótica. Os textos que sobreviveram desde a Antiguidade foram sobretudo os que eram estudados na escola. Esses eram os que eram considerados «melhores» de acordo com os critérios estéticos e/ou utilitários da época. Neste sentido, a Antiguidade tardia e a Alta Idade Média mantiveram o cânone «clássico», mas acrescentaram-lhe, no entanto, outro que incluía, antes de mais nada, a Bíblia, que aparece nos textos medievais como a Bibliotheca por excelência; e os chamados Padres da Igreja, sobretudo Agostinho, Jerónimo, Ambrósio e Gregório Magno, no ocidente. Os textos «utilitários» ou «espirituais», como os muitos tipos de livros litúrgicos (saltérios, antifonários, martirológios, livros de ordens, passionários, homiliários, livros de horas, etc.) ou exegéticos devem ter desempenhado também algum papel na aprendizagem escolar e religiosa. Por fim, a historiografia (e a biografia) desempenha também um papel importante. Esta surge sobretudo com uma função religiosa — harmonizar as histórias bíblica e dos impérios mediterrâneos; e proporcionar ao leitor exemplos do modo como a história obedece à providência divina e pode, por isso, ser lida teologicamente. Conhecer a história é compreender o modo como Deus actua e como se foram concretizando os seus planos para a humanidade ao longo do tempo. Além disso, com a fragmentação do Império Romano, no contexto dos novos reinos do ocidente a partir do século V, a história permite inserir estas novas realidades numa diacronia: é isso que Isidoro de Sevilha, o maior intelectual hispânico do período visigótico, procura fazer com as suas Histórias dos Godos, Vândalos e Suevos — utilizar a história para assegurar um processo de translatio regni na Hispânia e, assim, a legítima sucessão visigótica neste território, depois de Roma.

No entanto, não foi apenas o cânone escolar que se alargou para integrar estes novos textos. De facto, logo desde a Antiguidade tardia houve também uma reavaliação das posições relativas dos vários autores dentro do cânone. Jerónimo explica-o bem numa carta que dirige à virgem Eustóquio. Ele conta-lhe com pormenor o seu amor pelos clássicos: «não podia passar sem a biblioteca que coligira para mim, em Roma, com grande zelo e trabalho. Assim eu, infeliz, antes de ler Cícero, jejuava. Depois das ininterruptas vigílias nocturnas [...], tomava Plauto nas minhas mãos. Se porventura, caindo em mim, começava a ler um profeta, a linguagem rude horrorizava-me». Por isso, conta Jerónimo, ele teria sido arrebatado em sonhos até ao tribunal celeste onde, «interrogado acerca da minha condição, respondi que era Cristão. Mas aquele que presidia disse: Mentes. És Ciceroniano, não Cristão; “onde estiver o teu tesouro, aí está também o teu coração” [Mat. 6, 21]. Calei-me de imediato e, por cima das vergastadas, era ainda mais torturado pelo fogo da minha consciência» (ep. 30). A oposição Ciceronianus vs. Christianus marca este episódio: para o tradutor da Vulgata, estes dois mundos não são idênticos e não é indiferente ler Plauto ou Isaías. É verdade que esta oposição entre os textos clássicos e os textos cristãos se torna um tópico literário e nunca foi realmente motivo suficiente para impedir a leitura de Plauto ou de Cícero. O que Jerónimo quer dizer é, no entanto, outra coisa: que existe uma real diferença de qualidade entre Plauto e os textos cristãos; e os textos cristãos são preferíveis, porque têm uma qualidade capaz de levar à salvação do ser humano. O juízo não é sobretudo estético (Jerónimo aceita que Plauto seja esteticamente melhor); é religioso. É isto que determina o novo cânone e a posição relativa dos textos a ler. Como critério parece-me tão válido, certamente não menos objectivo e até identificável com a ideia de força intelectual ou sabedoria dos textos.

É verdade que Salústio, Vergílio ou Cícero continuaram a ser autores de escola no ocidente mesmo para lá da conversão de Constantino (como Homero, Platão ou Demóstenes no Mediterrâneo oriental). Continuava a aprender-se gramática e retórica a partir de exemplos extraídos destes autores. Contudo, na linha de Jerónimo, ainda na primeira metade do século VII, um homem culto como Isidoro de Sevilha continuava a advertir contra as leituras das «fantasias dos poetas» que incitavam o espírito aos prazeres (Isid. sent. 3, 13; ed. P. Cazier, CCSL 111). Isidoro indignava-se com os que se deleitavam com o «discurso ornamentado e balofo» dos pagãos, e desprezavam a «expressão simples» das Escrituras. Mais valeria «fugir» aos textos pagãos «por amor à Sagrada Escritura», defende ele. O que aconteceu foi que o cristianismo foi alçado a novo padrão cultural e isso contribuiu para que o critério de inclusão e de valorização dos textos no cânone literário na Antiguidade tardia mudasse.

Esta reavaliação não decorreu de nenhuma piedade tola. A opção pela mudança do cânone respondeu sobretudo a um critério de racionalidade. De facto, para os intelectuais da Antiguidade tardia e Alta Idade Média, o Deus cristão estava longe de ser uma divindade delicodoce a habitar nas sacristias. A identificação de Cristo com o Verbo (Jo. 1, 1) e a sua definição como «Deus», «gerado não criado, consubstancial ao Pai» garantiram para o cristianismo algo que a religiosidade clássica das cidades do mundo greco-romano dificilmente poderia alcançar: a sua consideração não como religio ao nível dos cultos cívicos tradicionais, mas como philosophia uera uma vez que tinha o próprio Verbo como salvador e mediador entre a humanidade e o Pai e encontrava na procura de um tipo concreto de Sabedoria (ἡ Σοφία τοῦ θεοῦ) o motivo principal da sua reivindicação filosófica/teológica. Mas podemos ir ainda mais longe nesta reivindicação: Verbum é a palavra latina utilizada por Jerónimo na sua tradução da Vulgata. De facto, em grego, o início do Evangelho de João afirma que ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν θεόν, καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος («no princípio era o logos e o logos estava junto de Deus e o logos era Deus»). A palavra λόγος/logos é especialmente difícil de traduzir nas línguas românicas, onde não encontra um equivalente perfeito; a escolha do próprio Jerónimo reflecte esta dificuldade. O famoso Lidell and Scott’s Greek-English Lexicon enumera mais de cinquenta significados para o lema: significa «palavra» (tal como Verbum), mas também quer dizer, como é bem sabido, «cálculo», «razão», «raciocínio», «pensamento», «discurso», «texto», «discussão», «debate», etc., etc. Por isso, dizer-se desde praticamente os primeiros cristãos que Cristo é o Logos de Deus é uma poderosíssima afirmação cultural — ao contrário da maior parte da tralha de deuses pagãos, que eram também as personagens das narrativas míticas esteticamente tão fulgurantes dos tempos clássicos, o Deus cristão é desde o princípio apresentado como razão, pensamento, palavra e discurso. Obviamente, a sua potencialidade intelectual ultrapassava as historietas clássicas, por mais bem escritas que elas fossem.

Isso significa que a opção por Cristo está muito longe de ser sobretudo fruto de um qualquer beatismo individual, mas torna-se desde cedo também uma opção racional ou filosófica. É assim desde Justino, no século II, que descobre nos textos cristãos a verdadeira filosofia; depois na escola filosófica-cristã de Alexandria com Clemente ou com Orígenes; e mais tarde com o dinamismo intelectual dos séculos IV-V em grego e em latim. Pode parecer-nos bizantino o debate sobre se Cristo era homoousios (consubstancial) ou homoiousios (de substância semelhante) ao Pai, mas desafio à leitura dos textos dos concílios de Niceia (325) ou de Constantinopla (381) ou das discussões que hão-de depois levar aos concílios de Éfeso (431) e sobretudo de Calcedónia (451) para se compreender o grau de complexidade intelectual que está por trás da discussão. De novo, não estamos a falar decerto de fulgor estético. Contudo, o modo como a discussão procurou definir esta estranha divindade, que sendo única seria também trina e cuja segunda pessoa seria identificada como logos, decorreu inteiramente das regras da lógica filosófica clássica, sobre a qual se cruzou a influência do neoplatonismo. Esta discussão atingiu por vezes uma densidade que é particularmente difícil de seguir, e que confirma que não estamos no domínio da recusa da herança clássica, mas da utilização plena dos instrumentos que as escolas filosóficas gregas tinham criado.

Acrescente-se ainda um último factor que é, desta vez, extrínseco ao carácter cristão dos textos, e que explica também a reavaliação efectiva do cânone. De facto, o acesso aos textos clássicos começara a fazer-se ainda em pleno Império Romano não apenas (ou talvez nem sobretudo) pela leitura directa e integral das obras, mas por intermédio de gramáticas, manuais, breviários, comentários e outros instrumentos práticos, que tendiam a resumir, a citar ou a apresentar uma versão mais acessível dos textos originais. Isto não foi algo imposto pelo cristianismo: era uma característica da cultura da época. Podemos supor e temos várias notícias de que alguns dos «grandes clássicos» ainda eram lidos e apreciados nos séculos IV e V; mas depois disso eram claramente mais apreciados do que lidos. Tal como hoje, não parece que as leituras integrais fossem comuns na escola (nem depois dela); os alunos liam e treinavam gramática e retórica com base em excertos de autores clássicos e cristãos, que memorizavam e depois imitavam. Mais tarde, pelo menos no que à escola visigótica diz respeito, é muito difícil verificar o grau de conhecimento, por exemplo, de um poeta como Vergílio. Quando lemos autores como Isidoro de Sevilha e Julião de Toledo, parece que eles o conheciam muito bem. No entanto, é bom não embandeirar em arco: quase todas as citações que encontramos são também detectadas em gramáticas ou comentários da Antiguidade tardia. Havia certamente uma Eneida nas bibliotecas de Sevilha ou de Toledo; mas ela dificilmente era utilizada como fonte ou inspiração directa. E se isso não acontecia na Hispânia do século VII, dificilmente acontecia no mesmo período nas regiões da Europa central ou septentrional.

O fim do pesado Império tardio e o atrofio das estruturas cívicas no ocidente mudaram também o objectivo da educação: a escola deixou paulatinamente de estar ao serviço da cidade, das suas eleições, dos seus senados e da sua administração; e a educação deixou praticamente de servir como elemento de promoção ou emulação social fora do contexto eclesiástico. A educação servia assim, cada vez mais, o propósito das leituras edificantes e da Bíblia, a liturgia, a legitimação dos novos reinos ou as novas exigências da muito mais leve máquina administrativa das cidades, mosteiros, dioceses e reinos.

É por tudo isto também que, paulatinamente, os temas deixam de ser sobretudo os que tinham interessado aos indivíduos da época de Augusto. Ainda encontramos autores como Claudiano ou Macróbio no Ocidente, ou Nono de Panópolis (que tanto escreve em verso uns Dionisíacos como uma Paráfrase do Evangelho de João), no oriente: estes continuam a escrever sobre os temas mitológicos clássicos (e é irresistível não imaginar o ar blasé dos intelectuais que, em pleno século V, são concebidos por Macróbio a debater temas clássicos durante os Saturnalia, como se o cristianismo não existisse). No entanto, era esse o mundo que estava a ficar fora de moda. Já em meados do século IV, quando o imperador Juliano visitou o templo de Apolo em Dafne, perto de Antioquia no Orontes, ele tinha percebido isso mesmo:

Imaginei na minha cabeça o tipo de procissão que seria, com um homem a ter visões, animais para sacrifícios, libações, refrães em honra do deus, incenso e os jovens da cidade a rodear o santuário [...]. Mas quando entrei no santuário, não encontrei incenso, nem um bolo, nem um animal para sacrifício. Nesse momento fiquei espantado e pensei que ainda estava fora do santuário e que estavam à espera de um sinal meu, dando-me essa honra por eu ser o sumo pontífice. Mas quando comecei a indagar que sacrifício a cidade pretendia oferecer para celebrar a festa anual em honra do deus, o sacerdote respondeu: «Trouxe comigo da minha casa um ganso como uma oferenda ao deus, mas a cidade desta vez não fez preparativos». (Juliano, Misopogon 362A-B)

A religião cívica clássica estava «fora de moda»; e com ela os mitos interpretados pelos seus deuses.

A longo prazo, esta mudança tinha de ter consequências nas bibliotecas que conhecemos. Chegou até nós uma lista de livros que foi copiada já no ano 882 nos últimos fólios do códice ibérico mais antigo que conhecemos hoje, que Ambrósio de Morales encontrou em Oviedo em meados do século XVI (Escorial R.II.18, f. 95r-v): «este é um inventário de livros, copiado, querendo Deus, na era 920». O inventário inclui 42 entradas que devem corresponder ao número de códices de uma biblioteca que se perdeu, mas que teve aqui o seu registo.[3] Aliás, este mesmo códice (o R.II.18) aparece na lista: liber Nature rerum qui et in manus est. Não sabemos qual a origem deste manuscrito (embora todos os indícios apontem para o mundo moçárabe) ou desta biblioteca, embora seja muito tentadora a possibilidade de que o Eulógio referido no f. 6v possa ser Eulógio de Cordova, cujas relíquias chegaram a Oviedo precisamente no ano 882. Seria este o inventário da biblioteca de Eulógio, que teria também sido levada para Oviedo com as relíquias do santo nesse mesmo ano? É uma possibilidade, até porque boa parte destes títulos aparece de novo em 927 numa doação que o abade-bispo Cixila fez ao seu mosteiro de São Cosme e São Damião de Abellar (perto de Leão).

Destas 42 entradas, apenas duas se referem a autores «clássicos»: a Eneida de Vergílio; e as Sátiras de Juvenal. A estes textos junta-se o que parece ser uma antologia com Vergílio, Ovídio et quedam sententie filosoforum. Tudo o resto são autores cristãos — em prosa, encontramos historiadores (Orósio, Isidoro de Sevilha com a sua Crónica, duas Histórias Eclesiásticas e um De uiris illustribus) e a Cidade de Deus de Agostinho; entre os poetas, Juvenco, Avito, Coripo, Prudêncio, Sedúlio, Dracôncio, Aldelmo, Eugénio e o ps.-Catão. Além destes autores, encontram-se ainda um glossário, uma colecção de textos conciliares e um tratado de geometria. Tudo o resto (mais de metade) são sobretudo livros de natureza litúrgica e espiritual. Roger Collins propõe que a apreciável colecção de poesia (com a Cidade de Deus) tenha sido levada para Córdova por Eulógio nos anos 840s, a partir de um misterioso mosteiro de São Zacarias algures nos Pirinéus.[4] De facto, alguns destes textos aparecem numa lista citada por Álvaro de Córdova, na sua Vida de Eulógio (Vita 9), escrita pouco depois do martírio do santo em 859. Um medievalista tecerá loas à qualidade desta biblioteca; de um ponto de vista estritamente «clássico», ela não parece demasiado estimulante: Bloom talvez se aborrecesse de morte.

Sugiro que se olhe para este inventário como uma espécie de cânone (ainda que não tenha sido esse obviamente o primeiro objectivo de quem redigiu esta lista). De facto, os textos da biblioteca elencada no ms. Escorial R.II.18 devem decorrer de um processo de selecção com origem num determinado indivíduo ou instituição, feito de acordo com critérios conscientes ou inconscientes de gosto e/ou de utilidade.

Termino com o célebre testamento da condessa Mumadona Dias, datado de 26 de Janeiro de 959. Trata-se de um documento extraordinário que permite avaliar o que seria parte da fortuna de uma mulher da nobreza regional do norte do Douro no final do primeiro milénio. Entre os bens que Mumadona doou ao mosteiro de Guimarães (que fundara alguns anos antes) encontra-se uma biblioteca. Desconhecemos por completo onde a poderá ter reunido, embora se encontrem algumas semelhanças entre esta biblioteca e a que o bispo Rosendo, um familiar da condessa, tinha doado em 942 ao mosteiro de Celanova. Vale a pena ler a lista:

Vinte livros eclesiásticos: três antifonários, um organum (talvez um livro de música sacra ou um saltério), um Liber comitum (que deve ser talvez um leccionário) e um manuale ordinum (um outro livro litúrgico difícil de identificar), dois saltérios, um passionário e um livro de orações, uma Bíblia, talvez os Moralia in Iob de Gregório Magno, duas regras, um livro de cânones conciliares, umas Vitas Patrum talvez de Cassiano, cum geronticon (a versão latina dos  Apophthegmata por Pascásio de Dume?), um Apocalipse (o comentário de Apríngio de Beja?), as Etimologias de Isidoro de Sevilha, uma História Ecclesiástica, doze salmos e um De uiris illustribus, um códice com a regra de Pacómio e os passionários (provavelmente regras monásticas) de Ambrósio, Bento de Núrsia, Isidoro e Frutuoso de Braga, uma regra puellarum, um códice pequeno com as regras de Bento de Núrsia, Isidoro e Fructuoso, uns Livros de diálogos talvez de Cassiano ou de Gregório Magno, as Instituições de Efrém Sírio, e um códice pequeno com a Vida de São Martinho (provavelmente de Sulpício Severo) e um Sobre a virgindade de S. Maria (talvez de Ildefonso de Toledo).

A opinião é unânime: é uma biblioteca extraordinária. No entanto, ainda mais do que a lista do R.II.18, os temas são exclusivamente de natureza religiosa. Poder-se-á talvez imaginar que Mumadona apenas doou ao mosteiro os livros deste tipo, mas teria outros. Contudo, isso é pura especulação. Estes livros são consentâneos com o que era costume haver numa pequena biblioteca de uma nobreza regional periférica em meados do século X, mesmo em outras partes da Europa. É certo que, na época de Martinho de Braga, quatrocentos anos antes, deve ter-se ainda reunido na Galécia uma apreciável biblioteca com autores clássicos. Se isso aconteceu, não é possível rastrear para onde foram esses livros. Ao que parece eles já não se encontravam na região no século X: talvez se tenham perdido ou tenham sido levados para outro local; ou, mais provavelmente, estragaram-se e, com a mudança do cânone e certamente com o definhar da educação à maneira antiga (que acarretou sem dúvida a dificuldade crescente de ler livros em latim «clássico»), não foram considerados para cópia.

A centralidade do Deus cristão na mundividência tardia e medieval não se pode questionar. Podemos eventualmente discutir o grau de cristianização efectiva das populações, mas a omnipresença de Deus é evidente em todos os sectores da cultura. Essa centralidade institui-se como padrão cultural ainda no século IV, num contexto em que o imperador se converte mas também num contexto em que o cristianismo evidentemente não era uma religião apenas de grupos sociais desfavorecidos e/ou ignorantes. Quanto ao cânone, este novo padrão de cultura veio, na prática, criar uma nova hierarquia entre os textos que deviam ser lidos, escritos e copiados: a Bíblia torna-se o livro por excelência; e os textos em torno da interpretação das escrituras e da vida religiosa tornam-se também centrais. Os textos clássicos, com as suas mitologias, perdem paulatinamente interesse quer em termos de leitura quer ainda mais em termos de produção e de cópia, excepto em contexto escolar, onde ainda assim raras vezes se detectam leituras integrais ou directas das obras.

Esta característica da cultura escrita tardia e altomedieval revela-se também como a sua fraqueza. Quando os paradigmas voltam a mudar com a recuperação dos autores greco-romanos como modelo literário e com o questionamento do cristianismo como padrão da cultura erudita, o cânone medieval ficou praticamente vazio. É verdade que é difícil vislumbrar uma especial qualidade literária em muitos dos textos produzidos. Naturalmente, a educação e, por isso também, as condições para a produção de textos de qualidade degradaram-se muito ao longo da Alta Idade Média, quando o latim deixou de ser língua materna, mantendo-se durante quase meio milénio como única língua escrita.

Contudo, não é só isso. Como mostrou José Mattoso, mesmo a cultura medieval posterior ao ano 1000 continuou a produzir exemplos extraordinários do que ele chamou «sabedoria», mas que eu não hesitaria em considerar exemplos de fulgor estético ou força intelectual: vejam-se autores como Anselmo de Cantuária, Pedro Abelardo, Hugo de São Victor, Hildegarda de Bingen, Francisco de Assis ou Tomás de Aquino. Simplesmente, na interpretação imortalizada por Vergílio, aconteceu com eles o que tinha também acontecido aos Aqueus, num primeiro tempo vencedores em Tróia: Veniet lustris labentibus aetas / cum domus Assaraci Phthiam clarasque Mycenas / servitio premet, ac victis dominabitur Argis (Aen. 1, 283-5: «virá um tempo, com a passagem dos lustros, em que a casa de Assáraco reduzirá à servidão Ftia e a ilustre Micenas, e dominará sobre Argos vencida»; trad. L. M. G. Cerqueira). Com a passagem dos lustros, o mundo dos modelos e temas clássicos, inicialmente vencido, acabou por triunfar sobre o medieval, e o que os medievais escreveram deixou realmente de interessar. Em primeiro lugar o cânone que se estabeleceu no final da Idade Média, que (re)impôs os textos da Antiguidade greco-romana como modelo literário e de pensamento, e em segundo lugar o mainstream intelectual dos séculos XVII e XVIII, que passou a olhar com geral desprezo para os textos abertamente cristãos, mataram a possibilidade de se considerar os autores medievais e as suas obras como parte do cânone. Pelos vistos, deixaram de mostrar fulgor estético, força intelectual ou sabedoria; e assim continuam.

 

[1] A. M. Feijó, J. R. Figueiredo, M. Tamen, ed., O Cânone, Lisboa, Tinta da China, Fundação Cupertino de Miranda, 2020.

[2] J. Mattoso, «Onde está a sabedoria medieval?», Memória e sabedoria, V. N. Famalicão, Húmus, 2011, 181-197.

[3] A lista foi já várias vezes publicada. Veja-se M. C. Díaz y Díaz, Códices visigóticos en la monarquía leonesa, León, Centro de Estudios e Investigación «San Isidoro» (C.S.I.C.), Caha de Ahorros y Monte de Piedad, Archivo Historico Diocesano, 1983, 42-43.

[4] R. Collins, «Poetry in ninth century Spain», Papers of the Liverpool Latin Seminar 4, 1983, 181-195.

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