Resumo

Ainda no rescaldo do debate entre Orpheu e Presença, é frequentemente assumido que José Régio é instância de uma forma de «literatura provinciana» que se opõe à «literatura modernista». Neste ensaio tentarei mostrar que Jogo da Cabra Cega, o primeiro romance de Régio, é antes o resultado desta tensão, tal como fora sentida pelo autor. Começarei por apresentar uma leitura da narrativa de acordo com a qual ela pode ser descrita como uma deflação de A Confissão de Lúcio, de Sá‑Carneiro. A partir daqui, argumentarei que o homoerotismo do romance serve o propósito de apresentar a teoria literária de Régio (sobre «literatura viva»). Por fim, concluirei que Pedro Serra e Jaime Franco podem ser vistos como projecções de, respectivamente, José Régio e Mário de Sá-Carneiro, de onde se segue que o romance não pode ser incluído em nenhum dos pólos da dicotomia modernismo-província e assim a supera.

 

Abstract

Still in the wake of the debate between Orpheu and Presença, it is often supposed that José Régio instantiates a form of “provincial literature” opposed to “modernist literature.” In this essay, I try to show that Jogo da Cabra Cega, Régio’s first novel, rather results from the way such tension was felt by its author. I will start by providing an interpretation of the narrative according to which it can be described as a deflation of Sá‑Carneiro’s A Confissão de Lúcio. From here, I will argue that the homoerotism in the novel serves the purpose of presenting Régio’s literary theory (on “literatura viva”). Finally, I will conclude that Pedro Serra and Jaime Franco can be seen as projections of, respectively, José Régio and Mário de Sá-Carneiro, from where it follows that the novel cannot be included in either pole of the modernist-provincial dichotomy, which it thus supersedes.

 

Palavras-chave

Jogo da Cabra Cega; modernismo; literatura viva; província; Régio, José; Sá-Carneiro, Mário

 

Keywords

Jogo da Cabra Cega; modernism; literatura viva; province; Régio, José; Sá-Carneiro, Mário


 

Introdução

A literatura portuguesa do século XX tem vindo a ser analisada à luz da dicotomia, frequentemente simplificada, entre os movimentos consubstanciados nas revistas Orpheu e Presença. A estes movimentos, por sua vez, fazem-se corresponder os predicados modernista e provinciano. Se Fernando Pessoa e Mário de Sá‑Carneiro são tipicamente reconhecidos como membros do primeiro, José Régio (e os restantes «presencistas») são tipicamente associados ao segundo. Como tal, conclui‑se — e isto se tentará mostrar precipitado — que a obra de Régio é exemplo de literatura de província.[1]

O presente ensaio começará por apresentar uma leitura da narrativa de Jogo da Cabra Cega de acordo com a qual ela pode ser descrita como uma deflação de A Confissão de Lúcio. Em segundo lugar, procurar-se-á mostrar que o homoerotismo de Jogo da Cabra Cega serve o propósito de apresentar a teoria literária de José Régio, centrada na noção de literatura viva. Por fim, dados os resultados anteriores, argumentar-se-á que Pedro Serra e Jaime Franco podem ser vistos como projecções de, respectivamente, José Régio e Mário de Sá-Carneiro, resultando o romance do modo como o primeiro terá sentido a tensão entre estas formas de literatura e as terá superado através da sua concepção do que ela deve, realmente, ser: viva.

 

I

A Confissão de Lúcio (Sá-Carneiro 1913) e Jogo da Cabra Cega (Régio 1934) partilham duas características evidentes. Por um lado, em ambas existem triângulos amorosos provocados pela relação — cuja natureza está ainda por discutir — entre dois homens.[2] Por outro, estão presentes no segundo as «obsessões dominantes» de Sá-Carneiro, nomeadamente «a do suicídio, a do amor pervertido, a da anormalidade avançando até à loucura» (Régio 1964, 201). Ao contrário de A Confissão de Lúcio, todavia, seguindo a descrição que o próprio José Régio faz da obra (228-229), Jogo da Cabra Cega não é um romance fantástico. É, ao invés disso, um romance psicológico stricto sensu, centrado no drama vivido pelo narrador e personagem principal Pedro Serra a partir do momento em que conhece Jaime Franco. A densidade psicológica do romance filia-o a Dostoiévski; o modo como trata a relação entre a arte e a vida remete para Wilde; e a natureza da crise de Pedro Serra evoca Nietzsche. Estando completo o conjunto de «ironistas» nomeado por Jaime Franco num momento metaléptico «chave» da obra (Régio 1934, 60), importa esclarecer a natureza da relação entre ele e Pedro Serra para assim mostrar de que modo o enredo de Jogo da Cabra Cega pode ser descrito como uma deflação do de A Confissão de Lúcio.

Pedro Serra descreve do seguinte modo a sua crise identitária:

 

Ele representava também a minha personalidade. Ele vivia a minha personalidade que ainda não pudera ser vivida, e por isso estrebuchava consigo própria. O que lutava com ele não era, talvez, senão a minha personalidade adquirida — as convenções que em mim já se haviam tornado natureza... Ai, eu já estava a pensar com demasiada facilidade para me não falsear! Ele e eu..., ele e eu... (155)

 

Apesar de esclarecedora, esta e as restantes descrições que na obra ocorrem não indicam a causa, nem o modo de manifestação, desta crise. Cabe, portanto, ao leitor, por inferência para a melhor explicação, encontrar a interpretação que lhe permita compreender a narrativa.

Quando Jaime Franco era ainda (e apenas) «Um Desconhecido», Pedro Serra sente-se atraído por ele (11-24). Dado que não o conhecia, a natureza desta atracção não pode ser meramente social. O primeiro contacto com Jaime Franco permite, ainda que parcialmente, clarificá-la (53-72). Pedro revela-se inseguro e embaraçado, manifestando o nervosismo ou constrangimento habitual de um «primeiro encontro». No contexto deste primeiro contacto, Pedro faz uma descrição muito detalhada de Jaime Franco (65-66), reveladora de um tipo de atenção e interesse que não parece poder ser justificado apenas à custa da curiosidade intelectual. Estes indícios permitem ao leitor aperceber-se, ou, pelo menos, suspeitar, de que a natureza da atracção de Pedro por Jaime Franco é, de modo «latente, virtual ou platónic[o]» (Régio 1964, 229-230), erótico-afectiva.[3]

Depois de alguns dias sem o ver, o impacto inicial do aparecimento de Jaime Franco na vida de Pedro é atenuado (73). Todavia, ele deixa marcas profundas, que se manifestam nos devaneios subsequentes à leitura da carta de sua mãe. Destes devaneios destacam-se a memória da sua primeira experiência onanista (76-77) e, pouco depois, a do plano de casamento de Prima Baptista (78-79). Tanto por pressuposições de folk psychology (i.e., o tipo de considerações psicológicas que qualquer pessoa tece no quotidiano), quanto pela construção do próprio capítulo, não parece plausível que tais devaneios sejam totalmente alheios ao contacto com Jaime Franco. Como tal, eles parecem confirmar o carácter erótico da atracção de Pedro por Jaime e constituem o primeiro sinal da existência de um conflito psicológico entre impulsos sexuais e a necessidade de adequação a normas sociais. É a presença deste conflito que opera, desde logo, a transformação do nervosismo inicial de Pedro Serra em algo violento, com expressões de rancor aparentemente injustificado (cf. 84-85).

Pode assim afirmar-se que a crise psicológica de Jaime Franco começa por ser uma instância não totalmente consciente de pânico homossexual masculino (Sedgwick 1990). Segundo Sedgwick, o pânico homossexual dá-se quando um indivíduo do sexo masculino, que se identifica como heterossexual, sente que uma das suas relações homossociais pode conter uma dimensão homoerótica (201). Perante esta ambiguidade, o indivíduo questiona a sua própria sexualidade e vê-se confrontado com o medo de ser homossexual e das consequências que isso pode ter nos demais contextos sociais em que se insere (cf. 186-187). O pânico homossexual de Pedro Serra transforma-se numa crise profunda, marcada pelo conflito entre as duas dimensões da personalidade já indicadas: a dos impulsos sexuais (considerados desviantes) e a das normas e expectativas sociais. Antes de prosseguir, importa comentar um episódio que em muito contribui para o desenvolvimento desta crise.

Ao encontrar Pedro no quarto de Jaime, M.lle Dora sugere que eles se tenham envolvido sexualmente na noite anterior. Esta sugestão parece corroborar as intuições de qualquer leitor atento aos indícios acima enumerados, que por esta altura esperaria que tivesse sido esse o caso. Como tal, o ruborescer de Pedro Serra apresenta‑se-lhe — ao leitor — previsível, mas a reacção de Jaime Franco, que esbofeteia M.lle Dora, não (132). Assumindo que a leitura até aqui defendida está correcta, esta reacção inesperada vem agudizar dramaticamente o conflito interior de Pedro Serra. À dificuldade que, de modo crescente, vai sentindo em compatibilizar os seus desejos carnais, ou «telúricos» (porque provêm do que de mais profundo e obscuro há em si), com as expectativas e normas sociais, acresce agora a aparente impossibilidade de concretização dos primeiros por indisponibilidade do objecto desejado. Pedro Serra, que havia já expressado alguma esperança na reciprocidade dos seus sentimentos (112), vê agora desaparecer a possibilidade (inconsciente) de os assumir e enfrentar a desadequação social. A posse do objecto desejado passa, deste modo, a ser possível apenas de forma mediada, e surge a necessidade de redireccionar o desejo. Esta necessidade, por sua vez, determinará a acção ulterior.

Nessa noite, ao chegar a casa, Pedro depara-se com um cenário psicológico estranho:

 

O anormal do caso está: Primeiro: em ser mesmo hoje que eu estou sexualmente excitado; segundo: em a mulher desejada ser a Senhora Dona Felícia. Até hoje, eu mal reparara no sexo da Senhora Dona Felícia. A Senhora Dona Felícia fora-me apenas uma excelente criatura que me hospedava e tinha um gato chamado Tareco. (149)
 

Pedro considera que é Jaime quem provoca esta «transfiguração» de Senhora Dona Felícia (144, 172), relatando mesmo ter a «sensação pavorosa de um desdobramento físico» em que «o outro era simultaneamente eu próprio e Jaime Franco» (146, ênfase no original). Esta sensação parece constituir uma expressão subconsciente do desejo por Jaime, da vontade de que ali estivesse e não oferecesse resistência. Não podendo ser esse o caso, o desejo sexual, assim como a ira resultante da sua frustração, são projectados no objecto imediatamente disponível. Pedro tenta reprimir os seus impulsos, sublimando-os através de desenhos, mas é, mais uma vez, percorrido por devaneios acerca dos seus pais e da sua terra natal (155-173). Perante a incapacidade de controlar estes impulsos, Pedro viola deliberadamente e de modo compensatório as normas sociais que o impedem de se envolver com Senhora Dona Felícia (que delas é, aliás, epítome), sentindo através desta acção a «dupla satisfação de cevar um ódio e praticar um gesto de piedade...» (173).

A natureza ambivalente, e extremada, deste acto, que consubstancia uma forma de mediação entre Pedro e Jaime, repercutir-se-á no decorrer do romance. A partir daqui, as principais relações pessoais de Pedro Serra serão pautadas pela comunhão de impulsos «proto‑eróticos» e expressões de rancor e desprezo resultantes do facto de a natureza social dessas relações impedir a livre entrega aos primeiros. Disto é exemplo o diálogo com Luís Afonso, durante o qual, esquecendo «por completo o lugar público onde» estavam, as «mãos» de Pedro Serra «procuraram as suas sobre o mármore da mesa», apenas para que, pouco depois, perante um gesto de Luís Afonso, Pedro compreenda que esse «sobressalto de amor se transformara num ímpeto de rancor selvagem», sentindo «o desejo violento de o esbofetear, de lhe cuspir na boca, de lhe espezinhar a cara debaixo dos pés.» (237).

Esta tendência só é interrompida na relação com M.lle Dora. Talvez porque esta relação não implique a violação de nenhuma norma social que não esteja directamente associada a Jaime Franco, Pedro não sente por ela o desprezo que sente pelos demais.[4] Ao invés disso, o conflito interior de Pedro — que neste ponto da narrativa evoluiu já para algo bastante mais geral do que o pânico homossexual — manifesta-se pela incapacidade absoluta de compatibilizar os seus desejos com quaisquer normas ou expectativas sociais. Por um lado, Pedro só se excita quando deixa de sentir a «obrigação de praticar o amor com M.lle Dora» (283); por outro, escolhe conscientemente, e, mais uma vez, de forma compensatória, fazê-lo em casa de Senhora Dona Felícia (que acaba por ser vítima de enorme violência [289-293]).

Todos estes casos podem ser descritos como instâncias da procura de uma mediação compensatória entre Pedro e Jaime. As relações sexuais com a Senhora Dona Felícia, o diálogo com Luís Afonso e o modo como a senhoria é tratada no envolvimento de Pedro com M.lle Dora consubstanciam uma mediação indirecta, ao passo que o relacionamento com M.lle Dora constitui a forma de mediação mais curta possível — o que é, aliás, o seu aspecto mais relevante.

Apesar de aparentemente o tratar como «mera» perversão sexual associada à prática do adultério,[5] Pedro admite que uma das motivações, senão a principal, para o seu interesse erótico por M.lle Dora é o facto de ela ser amante de Jaime Franco (277). À luz do que se tem discutido pareceria desde logo pouco convincente que a perversão incidisse mais no triângulo do que neste seu vértice. Não obstante, surge pouco depois um momento que, de acordo com a leitura infra, é um dos mais claros sinais de adequação da leitura que se tem vindo a defender: Pedro afirma que gostaria de ter um corpo digno do de M.lle Dora (288).

À memória do leitor que tenha intuído semelhanças entre Jogo da Cabra Cega e A Confissão de Lúcio será difícil não ocorrer, neste momento, a fala em que Ricardo afirma que teria de mudar de sexo para poder travar amizade com um homem (Sá-Carneiro, 71).[6] Cingindo‑nos, contudo, à obra de Régio, não deixamos de encontrar elementos de estranheza que permitem defender que Pedro não está, por estas palavras, a expressar o anseio de ser mais belo do que é. Pouco depois desta confissão, e com hesitação, Pedro diz amar M.lle Dora (Régio, 289). Nem Pedro lidara o suficiente com M.lle Dora, nem por ela havia tido particular interesse, para que tal sentimento possa parecer justificado. O subtexto parece, portanto, indicar que, no contexto de mediação em que se encontra, Pedro afirma amar Jaime, apesar de se dirigir a M.lle Dora. Com tudo isto em mente, o leitor depara-se com a confissão (não proferida) de Pedro acerca do acto sexual: «todo o seu corpo me era pouco» (303, ênfase no original). A ambiguidade é, por esta altura, tão acentuada que se sugere a si mesma a leitura de acordo com a qual o corpo de M.lle Dora «lhe era pouco» por não possuir as excrescências do corpo masculino. Ao confessar que queria ter um corpo digno do da sua parceira, portanto, Pedro Serra está, na verdade, a dizer que gostaria de ser mulher para poder concretizar os seus sentimentos por Jaime Franco, sem barreiras sociais, nem uma eventual rejeição.

Embora alguns dos pontos avançados possam ser considerados demasiado especulativos,[7] parece seguro afirmar que o envolvimento com M.lle Dora constitui a mediação compensatória mais directa entre Pedro e Jaime. Além da presença constante de Jaime Franco nos diálogos (cf. 300), um outro passo significativo parece confirmá-lo, conglomerando este episódio e os dois anteriormente referidos:

 

Também por estranho que pareça: só a imagem de Jaime Franco, a da Senhora Dona Felícia e a de Luís Afonso (inseparáveis agora da evocação de certas cenas, certos estados de alma e certas complicações de nervos) conseguiam por indirectos, ínvios caminhos, nutrir em mim (e antes na imaginação do que no sangue) um bruxuleio de desejo. Ah!, eu sei que no fundo da minha corrupção sexual arde um instinto de revindicta. (279)

 

Assim, tal como em A Confissão de Lúcio, estamos perante um instinto homoerótico que, não podendo ser livremente explorado, gera triângulos amorosos. A diferença crucial está na natureza da mediação. Na obra de Sá‑Carneiro, a mediação é marcada pela dimensão fantástica do surgimento de Marta, um desdobramento de Ricardo Loureiro que assim dá corpo à relação entre os dois.[8] Em Jogo da Cabra Cega, o fantástico é, como se disse, deflaccionado, sendo substituído por um drama psicológico com as características descritas. Este drama, por sua vez, resulta num segundo tipo de mediação, não física, mas intelectual. Ele manifesta-se no momento em que Pedro decide escrever e se «apercebe» de que escreve as «pseudo‑memórias de Jaime Franco» (260). Esta forma de mediação inscreve-se num tópico mais geral da obra, cuja elaboração ocupará o remanescente deste ensaio: a relação entre a arte (em particular a literatura) e a vida.

 

II

Pouco tinham convivido e já Pedro e Jaime reconheciam (afirmando-o ou não) semelhanças entre si. Da parte de Pedro, isto parece poder ser explicado à custa da sua atracção por Jaime. Da parte de Jaime, embora seja ele quem provoca os momentos de maior aproximação física, isto permanece (e permanecerá até mais tarde neste texto) inexplicado. Quando Pedro sente não poder (por pânico homossexual e, de forma crucial, porque Jaime parece não reciprocar os seus sentimentos) possuir Jaime fisicamente, tenta, inconscientemente, possuí-lo em pensamento, achando serem seus os pensamentos dele, e concretizando essa posse na literatura.

Parece, de facto, haver algo em comum entre Pedro e Jaime: ambos têm consciência da existência de um hiato entre as suas «personalidades profundas», onde se encontram desejos «telúricos», impulsos sexuais considerados desviantes, entre outros, e as aparências que devem, ou sentem dever, manter. A diferença, de não somenos importância, está no modo como lidam com esta clivagem. Pedro, como tem vindo a argumentar-se, experiencia esta cisão de personalidade como um conflito insanável, que provoca uma profundíssima crise de identidade. Jaime, por sua vez, é capaz de a gerir naturalmente, sem grande agravo, e até com perícia (115-116).[9] Esta diferença deixa explicar-se por dois factores. Em primeiro lugar, ao contrário de Pedro, que só neste momento da sua vida se apercebe da possibilidade de uma incompatibilidade entre estas duas dimensões, Jaime foi forçado, pelos traumas relativos à prática profissional de sua mãe (120-122) e pelos abusos do padre Malva (128), a aperceber-se disso muito cedo. Em segundo lugar, também ao contrário de Pedro Serra, Jaime Franco cresceu e viveu (até àquele momento) em Lisboa. Este factor, não desconexo do primeiro, enquadra-se num subtópico do presente: o modo como o romance categoriza os diversos locais nele relevantes. É, pois, com o compromisso de não comprometer o foco do argumento, este subtópico que se tratará de seguida.

Embora a acção se desenrole apenas numa cidade, à qual não se chega a atribuir um nome, a narrativa de Jogo da Cabra Cega depende de dois outros lugares: Lisboa e a terra natal de Pedro Serra (desprovida, também, de nome). Os três parecem ser utilizados de forma metonímica ao longo do romance. Lisboa, apesar de não ser uma das grandes cidades europeias cuja importância é reconhecida, por implicatura, nas referências culturais do Grupo (cf. 42), ocorre como metonímia da cidade moderna.[10] No pólo diametralmente oposto, está a terra natal de Pedro: uma «vila pequena» (75), de costumes antiquados e provincianos (421). Esta vila ocorre, assim, como metonímia da província. Por fim, entre os pólos antagónicos da cidade e da província, situa-se a «provincianíssima cidade» na qual decorre a acção (17). A metonímia é, desta vez, a de um lugar ambíguo, híbrido, em que coexistem personagens como Senhora Dona Felícia e os cosmopolitas Senhor Elicídio (que «vira mundo» [409]) e Jaime Franco. É também neste espaço ambíguo que existe o Grupo (i.e. o conjunto amigos de Pedro Serra), cujas características, mais do que revelarem a mera concomitância de provincianos e cosmopolitas, são instância de uma terceira categoria, produzida pelo embrenhamento das anteriores. O «provincianismo citadino» do Grupo, misto de sofisticação e da sua ausência, faz-se notar em momentos como o seguinte:

 

À chegada, eu encontrara três rebeldes [José Baía, Celestino e Luís Afonso]; três rebeldes... e o Sombra: quatro. Breve me tinham associado a eles afinidades de gosto, de interesses, de linguagem, de ambições. Por exemplo: Todos sonhávamos correr mundo; ou, pelo menos, morar em Lisboa. Todos preferíamos dizer uma mulher bela a uma bela mulher. [...] E todos amávamos ou julgávamos amar a Arte: palavra que entre nós escrevíamos com A grande, e a pequeno perante os que abusivamente a maisculavam. (28, ênfase no original)
 

Neste passo, são evidenciados três sintomas de provincianismo. Em primeiro lugar, «o entusiasmo e admiração pelos grandes meios e pelas grandes cidades», que, em «O Provincianismo Português», Pessoa afirma estar disponível apenas a quem não pertença a tais meios ou cidades (Pessoa 1928).[11] Em segundo lugar, o uso de maneirismos que vinculam o discurso a uma esfera cultural citadina, embora os agentes nela não se encontrem (veja-se também o «debate» entre Celestino e Luís Afonso a este respeito [45-47]). Em terceiro lugar, a presunção de superioridade relativamente aos demais habitantes daquele lugar (cf. 36).

«O provincianismo», ainda nas palavras de Pessoa, «vive da inconsciência; de nos supormos civilizados quando o não somos, de nos supormos civilizados precisamente pelas qualidades por que o não somos» (1928). Apesar de não poder ser considerado, no contexto da obra em análise, totalmente provinciano, esta parece ser uma caracterização adequada do Grupo, sendo disto que Pedro Serra se dá conta quando observa que os seus amigos lhe parecem «muito abaixo das suas pretensões» (36).

Talvez por consciência da sua proveniência, ou, mas com menor probabilidade, por ter passado dois anos em Lisboa (17), Pedro Serra não é vítima deste «provincianismo citadino». Paralelamente, Jaime Franco é-lhe imune, na medida em que, vindo de uma «verdadeira» cidade, não a pode admirar do modo como a admira o Grupo.[12] A proveniência das personagens indica, de modo aparentemente fiável, a existência, ou, pelo menos, a consciência da existência, de um hiato entre a «personalidade profunda» e as aparências. Ao passo que esse hiato existe em Pedro e Jaime, e ambos dele têm consciência (sendo que, no caso do primeiro, o acréscimo de consciência é acompanhado por um afastamento progressivo do Grupo), o Grupo vive dedicado apenas à aparência, o que, na leitura mais fraca, revela que não tem consciência da clivagem; e, na leitura mais forte, revela a inexistência de uma «personalidade profunda» nos seus membros.

O Grupo caracteriza-se, portanto, por viver, não de acordo com a sua forma real vida, mas de acordo com as suas pretensões a certa forma de vida (cf. 30). Essa forma de vida é-lhe veiculada pela arte, em particular, pela literatura, pelo que se pode agora retomar o tópico da relação entre a arte e a vida.

O Grupo imita a arte. Isto, assim como a referência à terceira doutrina de «O Declínio da Mentira» (Wilde, 51), é tornado explícito pelo narrador de Régio: «José Baía preferia fazer obra de arte da sua vida [...] e amava Wilde. [...] A verdade é que mais ou menos criticamente, todos ainda amávamos Wilde» (30). Ao imitá-la, contudo, a vida do Grupo não apenas mata a arte,[13] mas perde a individualidade e, consequentemente, a capacidade de reconhecer momentos em que a vida «ultrapassa» a arte, por a imitar em mais do que a mera aparência socialmente construída. Do primeiro efeito, é exemplo a aspiração literária do Grupo que, mesmo no caso daquele que é, talvez, o seu membro mais inteligente, está condenada à mediocridade: «Luís Afonso não possuía o dom de [...] vivificar, ou particularizar suficientemente os seus heróis», heróis estes que existiam apenas «num mundo [...] à margem da vida: o da pessoal imaginação psicológica do autor» (40-41). Do segundo, é exemplo, além da geral artificialidade do Grupo, a sua reacção ao apogeu da crise de Pedro Serra, que o próprio descreve da seguinte maneira:

 

— Não! Mas eu sei como vos interessa a Moral, ou a Religião, ou a Arte... todas essas actividades de élite. É de bom tom, não é verdade?, e de bom gosto, e sinal de superioridade, [...] exibir uma infinita tolerância, uma ardente curiosidade, pelos heróis dos romances... Mas que um desses casos, ou um desses seres, apareça no meio de vós, sob os vossos olhos! Então é ridículo, é shocking, é dégoutant... é contra os estatutos do Grupo! Fora dos livros, é fazer cenas. (329)
 

O tema da relação entre arte e vida, assim como as referências explícitas a Wilde, apontam para a possibilidade de ser, na realidade, esse o tema central do romance, enquanto instância da teoria estética de Régio, centrada na noção de literatura viva:[14]

 

Em Arte, é vivo tudo o que é original. É original tudo o que provém da parte mais virgem, mais verdadeira e mais íntima de uma personalidade artística. A primeira condição duma obra viva é pois ter uma personalidade a obedecer-lhe. Ora como o que personaliza um artista é, ao menos superficialmente, o que o diferencia dos mais, (artistas ou não) certa sinonímia nasceu entre o adjectivo original e muitos outros, ao menos superficialmente aparentados; por exemplo: o adjectivo excêntrico, estranho, extravagante, bizarro... Eis como é falsa toda a originalidade calculada e astuciosa. Eis como também pertence à literatura morta aquela em que um autor pretende ser original sem personalidade própria. A excentricidade, a extravagância e a bizarria podem ser poderosas — mas só quando naturais a um dado temperamento artístico. Sobre outras qualidades, o produto desses temperamentos terá o encanto do raro e do imprevisto. Afectadas, semelhantes qualidades não passarão dum truque literário. (Régio 1927, 17, ênfase no original)
 

A literatura produzida pelo Grupo será sempre morta porque «O pedantismo de fazer literatura corrompe as nascentes. Substitui-se a personalidade pelo estilo. [...] E quem não tem personalidade só pode ter um estilo feito, [...] amassado de reminiscências literárias, de autoplágios, e de pobres farrapos sobreviventes ao naufrágio» (Régio 1927, 18). É também a ausência de personalidade que, por oposição a Jaime Franco (336), impede os membros do Grupo de compreender Pedro Serra e de ver nele uma natureza artística.

A originalidade, que não pode ser intencionada,[15] atinge-se pelo «insuflar» da vida do artista (Régio 1927, 19), pela recriação do «mundo através da sua própria individualidade» (Régio 1928, 46). Para tal, por sua vez, é necessário encontrar a «personalidade profunda» do criador. A antinomia entre meras palavras e as «funduras da animalidade humana» (Régio 1935, 103) pode (e deve), portanto, ser superada, à custa de uma descida aos cantos mais recônditos das segundas, que põe a claro a parte «mais virgem», ainda não explorada, do criador. Parece ser isto que Jaime Franco pretende transmitir quando, acusado por Pedro de apenas produzir «palavras», responde:

 

— Tem razão: Palavras! Também outrora sonhei escrever um ensaio..., um ensaio original..., que se chamaria: Restauração das Palavras; ou talvez: Animação das Palavras; ou ainda: Criação das Palavras..., Nascimento da Palavra... Seria um ensaio verdadeiramente original, se chegasse a escrevê-lo. Creia que gostaria de lhe contar a minha adolescência! Mas é cedo. Nem eu deveria começar hoje por aqui. É preciso começar com exemplos, fazer citações, bater com os pés no chão firme, agarrar terra nas mãos, esfarelá-la entre os dedos, ou atirá-la à cara dos companheiros... (87)

 

O interesse de Jaime Franco por Pedro Serra, que até aqui não fora esclarecido, pode agora sê‑lo. Jaime, um «anjo da morte» ou, como se denomina, «o Diabo em pessoa» (416), reconhece ao primeiro contacto com Pedro (talvez à custa dos sinais de atracção por ele demonstrados) a existência de um fundo íntimo que nunca havia sido explorado e a oportunidade de forçar nele o processo dialéctico violento que abre caminho à originalidade e à produção de literatura viva.

Jaime Franco foi certeiro no diagnóstico e, por conseguinte, bem-sucedido no seu projecto. Sem que até aí tivesse tido a pretensão de «qualquer glória pessoal na República das Letras» (260), Pedro decide escrever e fá-lo, sem que disso tenha consciência, como forma de expressão do seu desejo por Jaime, localizado nas profundezas da sua personalidade. Apesar de ainda não conseguir «falar disto que sabia senão com as palavras literárias dos que o não sabem» (156, ênfase no original), em que isto refere «a sensação de uma desmaterialização e de uma posse» (idem), Pedro pressente a inevitabilidade de tornar essas «palavras literárias» vivas, isto é, de as tornar expressão real da personalidade profunda que agora começa a reconhecer. Porque as palavras eram ainda mortas, o que pode dever-se ao contacto com o Grupo e à herança da província, Pedro localizava-as na esfera da aparência, da norma social, que, como tem vindo a ser dito, conflitua violentamente com os seus desejos «telúricos». O modo como coloca a necessidade de superação que acaba de ser descrita é, naturalmente, resultante do que caracteriza a sua crise:

 

Mas como resolver, para uma satisfação completa, o conflito entre os instintos tenebrosos (anti-sociais, imorais e inumanos) e os sociais, morais, humanistas, — luminosos? Reduzindo os primeiros aos segundos (fazendo entrar sol no subterrâneo) pela simples satisfação deles em plena fraqueza, em plena claridade, em plena alegria? Isso sabia eu que me não fora possível; e nem sabia se era possível. Subjugando os menos fortes aos mais fortes? Isso sabia eu que me deixaria incompleto e descontente; supondo, mesmo, que pudesse chegar a averiguar quais os mais fortes. Transcendendo uns e outros por... Sim, transcendendo uns e outros por Deus!, — eis a solução a que chegava agora. (382, ênfase no original)

 

A crença numa superação mística ou religiosa — que chega, em Pedro, a ser perversa (165-166) — confirma a leitura apresentada. Deus, durante todo o romance tratado por Pedro «como realidade imanente humana», é, na verdade, «aspiração clara para a beleza, a justiça, a harmonia, o amor, a perfeição» (Régio 1935, 102). A narrativa exemplifica o modo como, por ser a arte viva «humana como produto humano», pode requerer a negação de todos estes substantivos na sua produção enquanto coisa «divina» (idem).

Assim, tomando como ponto de partida uma atracção homoerótica com contornos semelhantes aos de A Confissão de Lúcio, Jogo da Cabra Cega parece descrever o processo de acesso à originalidade que, de acordo com Régio, é necessário para a produção de literatura viva. Chegados a este patamar extratextual — para o qual nos impele o romance —, não é despiciendo perguntar se o próprio Régio cumpre os critérios da sua teoria, ou, o que é o mesmo, se a sua literatura é viva. Com a tentativa de resposta a esta questão se concluirá o presente ensaio.

 

Conclusão

Se Jogo da Cabra Cega for uma instância de literatura viva, então a sua originalidade resulta do facto de espelhar a personalidade do seu autor. Este espelhamento pode ser conseguido de várias formas, uma das quais é a projecção do autor numa das personagens do romance. Neste âmbito, mesmo evitando exercícios biográficos de questionável eficácia, existem características partilhadas por José Régio e Pedro Serra que não podem ser ignoradas. A «vila pequena» onde Pedro cresceu e a «provincianíssima cidade» onde decorre a acção do romance podem ser considerados correlatos de, respectivamente, Vila do Conde, onde Régio cresceu e que à época não era cidade, e Portalegre, onde leccionava em 1934.[16] É, portanto, plausível que Régio se projecte em Pedro Serra,[17] caso no qual o romance apresenta um processo de obtenção da originalidade análogo àquele pelo qual o seu autor terá passado. Aceite-se, para benefício do argumento, que é este o caso. Resta, pois, encontrar um correlato metonímico para Jaime Franco.

José Régio descreve Sá‑Carneiro como um autor que, apesar de «Veleidades de mistificação ou manifestações de cabotinismo — termos, aliás, aqui demasiado pesados», decorrentes da sua idade, manifesta uma «fundamental sinceridade» (1964, 216-217, ênfase no original); e consegue, na sua «obra-prima», criar uma «fantasmagoria palpitantemente viva pelo peso, a substância, a densidade que lhe confere a própria personalidade do autor», ainda que nela ocorram «esteticismos relativamente superficiais» (1964, 236). Não apenas isto corrobora a tese que se avançou acerca do carácter deliberado das semelhanças entre Jogo da Cabra Cega e A Confissão de Lúcio, como permite identificar duas semelhanças entre Sá‑Carneiro e Jaime Franco. Em primeiro lugar, Paris e Lisboa desempenham, respectivamente, o papel dos «grandes meios» dos quais os dois provêm. Em segundo lugar, nenhum dos dois parece ter atingido um patamar estável de originalidade. É, portanto, defensável que Jaime Franco simbolize, metonimicamente, Sá‑Carneiro, não tanto pelas suas características individuais, mas pelo modo como a sua obra ­— epítome de uma modernidade inacabada — influenciou Régio.

Afirma Régio que «A finalidade da arte é apenas produzir-nos [...] a emoção estética», que experimentamos «quando o Artista consegue despertar o nosso próprio instinto de recriação do mundo encaminhando-o no sentido do seu» (1928, 46). Assim, as semelhanças com A Confissão de Lúcio parecem resultar da emoção estética que a obra de Sá‑Carneiro provocou em Régio. De acordo com esta hipótese, Régio, que não tinha à data publicado qualquer romance, sentiu-se atraído pela obra de Sá‑Carneiro. Essa atracção terá revelado um aspecto da sua personalidade por explorar, mas cujo livre desenvolvimento lhe estaria vedado por conflituar, não com normas sociais previamente aceites, mas com os pressupostos literários e a personalidade do autor. Régio não era, não queria, nem podia ser, sob pena de, como o Grupo, «condenar à morte» a literatura, um modernista. A atracção por Sá‑Carneiro terá, pois, causado uma tensão entre a proveniência do autor — a província — e a dimensão da sua personalidade que o aproximava do modernismo. A resolução deste conflito, ao contrário do que tantas vezes se conclui apressadamente, não está na rejeição da segunda, mas sim na superação da dicotomia. No seu primeiro romance, Régio confessa ter sentido esta tensão, converge para Sá‑Carneiro tomando tópicos e aspectos centrais da sua «obra-prima», mas não abandona a sua personalidade e assim substitui a dimensão fantástica pela complexidade psicológica e moral.

Do que foi dito se conclui que Jogo da Cabra Cega não pode ser incluído em nenhum dos pólos da dicotomia modernismo-província. Pelo contrário, a obra debate essa mesma dicotomia e rejeita a sua adequação universal. Por este motivo, ela é um contra-exemplo, tanto à tese de que Régio é instância do segundo pólo, quanto à de que esta dicotomia é central e inultrapassável na literatura portuguesa da primeira metade do século XX. É também isto que lhe confere o estatuto, tão caro ao autor, de obra de arte viva.

 

* Este ensaio foi redigido no âmbito do seminário «Modernismo e Província» do Doutoramento em Teoria da Literatura, que frequento enquanto Bolseiro de Doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia [F.C.T] (SFRH/BD/121629/2016). Devo, por isso, agradecer à F.C.T. pelo financiamento e ao Professor Doutor António Feijó pelo seminário. Agradeço ainda à Raquel Raimundo e ao André Marques por terem revisto o texto e me terem ajudado a clarificar alguns dos pontos que nele são avançados.

[1] Veja-se Lourenço 1960.

[2] Acerca do modo como ambas as obras tratam relações entre dois homens veja‑se Inácio 2012.

[3] A suspeita de uma relação marcada por este tipo de impulso ou tensão homoerótica (lato sensu) parece corroborada inúmeras vezes durante o romance por momentos de aproximação física e tensão (presumivelmente) sexual, embora restringida, entre os dois. Veja-se, por exemplo, 87, 92, 98, 112-114, 349.

[4] De onde não se segue que o acto não seja, em certa medida, violento (282-283). Esta característica, no entanto, pode ser considerada parte integrante da natureza sexual de Pedro.

[5] Se se tratasse apenas de uma perversão associada ao adultério, o que explicaria o envolvimento com M.lle Dora e não outra pessoa seria o facto de Pedro Serra acreditar que partilha várias características com Jaime Franco (cf. 278). Esta explicação parece, todavia, demasiado fraca.

[6] Pouco depois, Pedro e M.lle Dora discutem a capacidade que ambos teriam de matar alguém (297-299), o que pode também ser visto como uma alusão a A Confissão de Lúcio.

[7] Um hipotético argumento poderia partir do facto de «todo o seu corpo me era pouco» ocorrer num momento da obra em que ela assume características sensacionistas. A resposta passaria, claro, pela alegação de que essa é apenas mais uma razão para considerar que neste passo se alude, de facto, à obra de Sá-Carneiro.

[8] Assume-se, no presente contexto, a correcção da tese, defendida, entre outros, pelo próprio José Régio, de acordo com a qual A Confissão de Lúcio descreve uma relação homossexual entre Ricardo e Lúcio. Por não pertencer ao âmbito deste ensaio, esta leitura não será debatida, sendo suficiente que o autor que aqui se comenta a tenha defendido. Cf. Régio 1964.

[9] Poder-se-ia alegar que a violência para com M.lle Dora aquando da sua insinuação constitui um contra‑exemplo a isto. Todavia, Jaime não parece, nessa ocasião, movido por pânico homossexual, mas mais, como a sua placidez revela, pela vontade de marcar a sua posição na relação com M.lle Dora que arrisca, com essa sugestão, gorar o «projecto» que adiante será explicitado.

[10] Veja-se, por exemplo, o comentário acerca do vestuário de José Baía (30).

[11] O passo citado corrobora, portanto, o que se disse sobre o uso metonímico de Lisboa. Que Régio está de acordo com Pessoa a este respeito parece evidente pelo modo como caracteriza «o deslumbrado, ingénuo, juvenil e um tanto pacóvio amor por Paris, a Europa, a civilização...» de Sá-Carneiro (1964, 222), em clara consonância com o que o próprio Pessoa relata ter dito ao autor de A Confissão de Lúcio (Pessoa 1928).

[12] Além de não sofrer dos sintomas indicados, Jaime Franco parece cumprir outro dos «requisitos» de civilização apontados por Pessoa (1928): a capacidade de ironia. Isto deixa-se ver pelo facto de, ao contrário dos membros do Grupo, que dela têm apenas uma concepção superficial, Jaime Franco ter uma teoria acerca da ironia e dos «ironistas» (59-64), o que pode reflectir uma maior capacidade de a levar a cabo. Embora não pertença ao âmbito deste texto averiguá-lo, parece bastante provável que a sobreposição das posições de Pessoa e Régio não seja meramente acidental (cp. Régio 1964, 222).

[13] Cf. Wilde, 38-39.

[14] A teoria estética de Wilde é fundamental na narrativa na medida em que permite a «subida» para o nível extratextual. Contudo, não é totalmente claro o modo como se relaciona com a teoria de Régio. Embora não pareça acreditar que a arte deva ser mimética, Régio rejeita, por certo, que a arte não seja «expressão de nada a não ser de si mesma» (Wilde 1992, 50). Pelo contrário, como se mostrará, Régio acredita que a melhor arte é sempre uma expressão da personalidade do autor. Além disto, Régio vê na sinceridade um aspecto central de qualquer obra de arte (1927, 18-19), e considera a mentira útil apenas pelo seu valor instrumental na obtenção da verdade, motivo pelo qual tem a arte uma moralidade intrínseca (1935, 102). Já na narrativa de Jogo da Cabra Cega, algumas das ideias de Wilde parecem corroboradas. Não cabe ao presente ensaio determinar com precisão e finura as relações lógicas que entre as duas teorias se estabelecem.

[15] Na discussão a esse respeito, é Luís Afonso quem defende a posição que mais se aproxima da de Régio. Este é um dos momentos em que a sua inteligência se revela superior à dos demais, o que, por um lado, justifica que seja ele quem Pedro Serra procura num momento avançado da sua crise; e, por outro, mostra a existência de uma gradação no modo como se aplicam as considerações do autor. Cf. Régio 1927, 18-19; 1934, 45.

[16] A promoção de Vila do Conde a cidade foi aprovada em Assembleia da República a 18 de Dezembro 1987, promulgada a 7 de Janeiro de 1988 e publicada em Diário da República a 1 de Fevereiro 1988 (Lei 5/88 de 1 de Fevereiro). Os dados biográficos avançados podem ser conferidos em Cadete Novais 2002.

[17] Duas outras semelhanças entre José Régio e Pedro Serra podem ser apontadas. Em primeiro lugar, Régio leccionou durante dois anos no Porto, o que pode ser associado à passagem de Pedro Serra por Lisboa. Em segundo lugar, o modo como são descritos os desenhos de Pedro facilmente lembra alguns dos desenhos do próprio autor. Note-se ainda que, como se disse, em diferentes momentos, diferentes personagens parecem assumir posições de Régio nas suas falas. Isto não contradiz, contudo, o que agora se afirma.

 

BIBLIOGRAFIA

Cadete Novais, Isabel. 2002. «Cronologia Abreviada» Em José Régio: Itenerário Fotobiográfico, de Isabel Cadete Novais, 15-19, Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda e Câmara Municipal de Vila do Conde.

Inácio, Emerson da Cruz. 2012. «Leituras e Leitores ou sobre como José Régio e Mário de Sá-Carneiro vanguardizam relações.» Entreletras, jan./jul.: 53-63.

Lourenço, Eduardo. 1960. ««Presença» ou a Contra-revolução do Modernismo Português?» Em Tempo e Poesia, de Eduardo Lourenço, 143-168, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2016.

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Régio, José. 1934. Jogo da Cabra Cega. 2ª edição. Lisboa: Portugália Editora, 1963.

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Sá-Carneiro, Mário de. 1913. A Confissão de Lúcio. 8ª edição. Lisboa: Ática, 1995.

Sedgwick, Eve Kosofsky. 1990. «The Beast in the Closet. James and the Writing of Homosexual Panic.» Em Epistemology of the Closet, de E. K. Sedgwick, 182-212. Berkeley e Los Angeles: University of California Press.

Wilde, Oscar. 1992. «O Declínio da Mentira.» Em Intenções: quarto ensaios sobre estética, de Oscar Wilde, traduzido por António M. Feijó, 11-52. Lisboa: Cotovia.

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