Nota Prévia

Quem teve a honra de ser aluno do Professor António M. Feijó contactou de perto com a (bem conhecida) amplitude dos seus interesses. Nos seminários e fora deles, ser aluno do Professor era também ter a oportunidade de conversar sobre os mais variados assuntos. Eu tive a sorte de conversar algumas vezes sobre Marx.

Numa dessas ocasiões — no Colóquio Marx: as misérias da filosofia (2017), em que foi keynote speaker — o Professor chamou à atenção para um aspecto frequentemente ignorado do início do Manifesto do Partido Comunista (1848 [1997]),[1] propondo uma hipótese de leitura a seu respeito. Neste pequeno texto, procurarei articular essa hipótese de leitura e relacioná‑la com a tese à qual por vezes se chama «teoria do colapso». Para tal, seguirei o artigo de Jamie Melrose «A Breakdown of Breakdown: A Potted Account of Marxist Breakdown Theory», apresentado na mesma conferência e publicado nas suas actas (2018).

Este texto não pretende fazer justiça à complexidade dos assuntos que aborda. Ele é o resultado de uma reflexão crítica a partir de um comentário — como sempre estimulante — do Professor António M. Feijó, através da qual pretendo expressar o meu profundo agradecimento pelas várias conversas que fomos tendo sobre Marx, Pessoa, Régio, Talking Heads, Wittgenstein, entre outros.

 

Introdução

 

A história de toda a sociedade até aqui ** é a história de lutas de classes.

[Homem] livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo [Leibeigener], burgueses de corporação [Zunftbürger] *** e oficial, em suma, opressores e oprimidos, estiveram em constante oposição uns aos outros, travaram uma luta ininterrupta, ora oculta ora aberta, uma luta que de cada vez acabou por uma reconfiguração revolucionária de toda a sociedade ou pelo declínio comum das classes em luta.

Marx e Engels (1848 [1997], 36)

Os parágrafos acima dão início ao primeiro capítulo do Manifesto do Partido Comunista, «Burgueses e Proletários». Conhecendo o teor do texto, lemos neles a previsão de que a sociedade do tempo de Marx e Engels acabará também num dos cenários descritos. O resto do capítulo confirma‑o, bem como à suspeita de que os autores privilegiam o primeiro disjunto: «o seu declínio [i.e., da burguesia] e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis» (1848 [1997], 48). Talvez seja este o motivo pelo qual se esquece frequentemente a disjunção que Marx e Engels começam por apresentar. A posição dos autores tende a ser descrita como a previsão de que a sociedade do seu tempo estava condenada a colapsar e a dar lugar a outra forma de organização social, tida como desejável. A esta perspectiva chama-se por vezes «teoria do colapso» («breakdown theory» ou «Zusammenbruchtheorie»).

O Professor António M. Feijó sugeriu um dia que o «declínio comum das classes em luta» — o disjunto frequentemente ignorado — poderia ser entendido como um cenário catastrófico decorrente das alterações climáticas. Neste pequeno texto, começarei por articular, tentando manter‑me fiel àquela que julgo ter sido a ideia do Professor, esta hipótese de leitura. Num segundo momento, relacioná‑la‑ei com a teoria do colapso, sugerindo que esta hipótese contribui para a sua compreensão e para determinar em que circunstâncias a sua plausibilidade pode ser aferida.

 

Um Declínio Climático         

A hipótese de leitura com a qual me ocuparei neste texto é a de que o «declínio comum das classes em luta» pode ser entendido como a destruição de toda a sociedade (como a conhecemos), ou mesmo a extinção da espécie humana, por consequência das alterações climáticas. Esta hipótese subdivide‑se em duas partes.

Uma vez que este declínio é, segundo Marx e Engels, um dos resultados possíveis da luta de classes, a primeira parte é a assunção de que existe (ou existiu no passado recente) luta de classes. Embora controversa, esta afirmação pode ser entendida de forma bastante fraca. Considere-se, para o efeito, o seguinte:

Nas anteriores épocas da história encontramos quase por toda a parte uma articulação completa da sociedade em diversos estados [ou ordens sociais — Stände], uma múltipla gradação das posições sociais. Na Roma antiga temos patrícios, cavaleiros, plebeus, escravos; na Idade Média: senhores feudais, vassalos, burgueses de corporação, oficiais, servos, e ainda por cima, quase em cada uma destas classes, de novo gradações particulares. (Marx e Engels, 1848 [1997], 36)

A descrição de Marx e Engels das ordens sociais que caracterizaram as sociedades da Roma antiga e da Idade Média, embora simplificada, é bastante consensual. É também consensual que os interesses dos indivíduos pertencentes a certas ordens conflituavam com os interesses dos indivíduos pertencentes a outras. Tomando como exemplo a relação entre senhor e escravo, não parecerá estranho dizer que o interesse do escravo em ser livre conflitua com o interesse do senhor em mantê-lo cativo e utilizá-lo como mão de obra (ou vendê-lo). É, aliás, o facto de considerarmos o interesse de um mais importante do que os interesses do outro que nos faz considerar a escravatura uma prática abjecta. Uma vez que estes interesses em conflito dizem respeito, não a características particulares dos indivíduos, mas aos papéis sócio‑económicos por eles desempenhados, parece razoável (embora mais houvesse para discutir) caracterizá-los como interesses partilhados pelos indivíduos que desempenham estes papéis, isto é, como interesses das ordens sociais. Sendo os interesses dessas ordens antagónicos, é também natural pensar que cada uma das ordens procurará fazer os seus interesses prevalecer, em detrimento dos das outras. Embora em alguns casos a defesa desses interesses tenha contornos moralmente condenáveis, não há nada de inerentemente errado na tentativa de se zelar pelos próprios interesses económicos.

Chegamos assim à luta de classes: ela existe em sociedades cujos membros, em virtude de ocuparem determinadas posições sócio‑económicas, estejam organizados em grupos com interesses antagónicos. Se tivermos esta descrição em conta, não parece difícil aceitar que, em pelo menos alguns momentos históricos, houve luta de classes. Segundo Marx e Engels, o período no qual escrevem «distingue-se [...] por ter simplificado as oposições de classes», estabelecendo-se a cisão «cada vez mais, em dois grandes campos inimigos, em duas grandes classes que directamente se enfrentam: burguesia e proletariado» (1848 [1997], 37). Estas classes são descritas do seguinte modo por Engels:

Por burguesia entende-se a classe dos Capitalistas modernos, proprietários dos meios de produção social e empregadores de trabalho assalariado. Por proletariado, a classe dos trabalhadores assalariados modernos, os quais, não tendo meios próprios de produção, estão reduzidos a vender a sua força de trabalho [labour-power] para poderem viver. (Marx e Engels, 1848 [1997], 36, nota à edição inglesa de 1888)

Por inúmeras razões, a simplificação da qual falam Marx e Engels parece já não se verificar. Seria importante fazer uma análise sociológica aprofundada para compreender que classes existem hoje e de que modo se relacionam com as que Engels identifica. Esta análise não cabe no presente texto, mas o ponto onde se pretende chegar é suficientemente fraco para não necessitar dela. Basta que concedamos que, independentemente de quais sejam exactamente, existem hoje grupos sócio‑económicos distintos (embora por vezes com fronteiras pouco definidas) cujos interesses conflituam entre si, e que de algum modo são herdeiros dos grupos que existiram durante os séculos XIX e XX. Poderá, então, afirmar‑se que, neste sentido fraco, existe (ou existiu no passado recente) luta de classes.

A segunda parte é a tese de que as alterações climáticas e os fenómenos devastadores que delas decorrem podem ser entendidos como consequências da luta de classes. Socorrendo‑nos do que foi dito acima, podemos compreender esta tese como a afirmação de que as alterações climáticas resultam das características particulares do sistema económico que precedeu os fenómenos aos quais assistimos. Não sendo a existência de interesses antagónicos a provocar as alterações climáticas, não pode ser stricto sensu a luta de classes que as provoca. Mas ao dizer‑se que estas são consequência da luta de classes está a utilizar‑se «luta de classes» metonimicamente para referir todo o sistema económico.

Se se aceitar que as alterações climáticas a que assistimos resultam da acção humana, parece impossível dissociá‑las das características da sociedade (lato sensu) dos séculos XIX e XX. Assim, entendendo «luta de classes» como uma forma metonímica de identificar o sistema económico que caracteriza essa sociedade, podemos concluir que as alterações climáticas resultam da luta de classes. Destas alterações seguem‑se a ocorrência mais frequente de fenómenos meteorológicos extremos, com o potencial de destruir toda a sociedade como a conhecemos ou de levar à extinção da espécie humana. Em ambos os casos, estaremos perante a destruição dos grupos que actualmente são herdeiros dos que existiram durante os séculos XIX e XX, pelo que estaremos perante o declínio desses grupos. Assim, independentemente de saber quais as «classes em luta», parece poder afirmar‑se que as consequências devastadoras das alterações climáticas podem constituir o seu «declínio comum».

 

Um Colapso Disjuntivo

Apesar da disponibilidade de uma leitura como a descrita acima, o disjunto em que Marx e Engels contemplam o «declínio comum das classes em luta» tende a ser esquecido. Isto não é surpreendente, já que, no próprio Manifesto, Marx e Engels parecem confiantes, não apenas de que será o outro disjunto a verificar‑se, mas que tal é inevitável. Esta crença é por vezes chamada «teoria do colapso» e foi alvo de alguma controvérsia, sobretudo entre autores associados à Segunda Internacional, como Karl Kautsky e Eduard Bernstein (veja-se Melrose 2018). O debate consiste em saber, por um lado, se esta teoria pode ser atribuída a Marx (ou se se segue do que ele defendeu) e, por outro, se a sua defesa é politicamente desejável.

A teoria do colapso tende a ser entendida como a conjunção de duas teses. Em primeiro lugar, a de que a propensão para a auto‑destruição daquilo a que Marx e Engels chamam «sociedade burguesa» (1848 [1997], 37) é um processo inevitável. Seriam as características do próprio sistema económico a levá‑lo a implodir, gerando contradições estritamente económicas (como, por exemplo, a impossibilidade de gerar mais‑valia; Melrose, 2018, 70). Evitar este colapso só seria possível alterando características essenciais desse sistema, o que, uma vez que consistiria em transformá‑lo noutro sistema económico, seria, na verdade, efectivar o colapso. A segunda tese é a de que o novo sistema económico seria mais estável do que o anterior e estaria livre das suas características indesejáveis.

Esta teoria enfrenta duas dificuldades. Por um lado, a ideia de que a humanidade caminha necessariamente numa direcção (tida como) positiva, caracterizada por um novo sistema económico, parece (simplista e) implausível. Por outro lado, ela convida ao quietismo político, o que (presumivelmente) torna a sua adopção contra‑producente. Por estes motivos, é problemático atribuir esta teoria a Marx. Sem mais qualificações, ela implicaria, não apenas que no Manifesto se defendem teses implausíveis, mas que o texto é contraditório, uma vez que apela à intervenção política e (alegadamente) ao quietismo político.

A forma mais reconhecível de dar conta deste problema consiste em afirmar que a sociedade em causa gera, não simplesmente outro sistema económico, mas as condições para que os indivíduos, organizando‑se, operem essa transição. O apelo à intervenção política estaria, assim, justificado pelo facto de ser ela a permitir percorrer o caminho entre as meras condições — cujo surgimento seria inevitável — e a efectiva alteração do sistema económico. De acordo com esta leitura, a afirmação de que «a vitória do proletariado» é «inevitáve[l]» (1848 [1997], 48) deve ser entendida como um slogan político baseado na tese de que, dadas certas condições geradas pelo sistema económico vigente, a intervenção política nos termos descritos é condição suficiente para a substituição desse sistema.

Esta solução é compatível com a disjunção apresentada no início do Manifesto. O outro disjunto tornar‑se‑ia (presumivelmente) verdadeiro caso, apesar de reunidas certas condições, não se levasse a cabo a intervenção política organizada nos termos descritos. O colapso de que a teoria nos fala pode, assim, ser entendido de modo disjuntivo: ou a substituição de um sistema económico por outro, ou a destruição de todos os sistemas económicos. Tendo em conta o que foi dito acima, podemos compreender esta segunda possibilidade como decorrente das alterações climáticas. Poderia então dizer‑se que esta disjunção — e não um dos disjuntos em particular — é inevitável.

Entendida desta forma, a teoria do colapso não correria o risco de incentivar ao quietismo político. Pelo contrário, ela constituiria um apelo à intervenção política, baseado nas consequências catastróficas de não intervir. Mas, por duas razões (relacionadas entre si), a teoria poderia ser considerada falaciosa. Em primeiro lugar, poderia considerar‑se que o apelo à intervenção que dela decorre é uma instância da falácia do apelo ao medo. Em segundo lugar, poderia afirmar‑se que a teoria assenta num falso dilema. Se for possível concluir que a disjunção é realmente exaustiva, então o apelo ao medo passa a estar justificado. Se, pelo contrário, se conseguir mostrar que existem outras alternativas, pode concluir‑se que a teoria do colapso, entendida deste modo, é incorrecta.

A questão relevante torna‑se, assim, a de saber se existem, ou não, alternativas. À luz das consequências visíveis das alterações climáticas, e assumindo que estas foram causadas pela intervenção humana, parece indiscutível que algumas alterações sócio‑económicas serão necessárias para evitar um cenário apocalíptico. Imaginando que estas alterações vão sendo concretizadas de modo cumulativo e bem‑sucedido — não poupando, portanto, os esforços imaginativos — chegaremos a um de dois cenários:

(i)                  as alterações não afectam aquilo que é essencial no sistema económico, mas ainda assim permitem que (contrariamente às previsões de Marx) este se estabilize e torne sustentável;

(ii)                as alterações sucessivas e cumulativas acabam por, mesmo sem que haja necessariamente uma convicção clara a esse respeito, alterar o que é fundamental no sistema económico e operar assim a sua substituição por outro, mais estável.

Ao verificar‑se um destes cenários, poderemos aferir acerca da plausibilidade da teoria do colapso. Mas talvez este esforço imaginativo seja demasiado exigente. Talvez tenhamos razões para pensar que o desfecho será realmente uma catástrofe climática, culminando na extinção da espécie. Perante essa previsão, somos forçados a admitir que a intervenção política é inútil, mas a nossa única opção, ignorando assim, também nós, o primeiro disjunto .



[1] A edição utilizada traduz o «texto da edição alemã de 1890, preparada por Friederich Engels, publicada nas Marx/Engels Werke» (1848 [1997], 4).



Referências Bibliográficas 

Marx, Karl, e Friederich Engels. 1890 [1997]. Manifesto do Partido Comunista. 4ª Ed. Trad. Ed. José Barata-Moura e Francisco Melo. Lisboa: Edições “Avante!”.

Melrose, Jamie. 2018. «A Breakdown of Breakdown: A Potted Account of Marxist Breakdown Theory». Philosophy@Lisbon. International eJournal, nº 8, 59-80. URL= http://www.philosophyatlisbon.org/userfiles/file/n_8/philosophyatlisbon8.pdf

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