Casa de Lava (1994), de Pedro Costa, abre com imagens da erupção da Ilha do Fogo, em Cabo Verde, filmadas pelo geógrafo português Orlando Ribeiro, em 1951. A erupção, pela qual se espera muitos anos, como pelo  eclipse solar de No Quarto da Vanda (2000),  chega ao filme pela mão de Ribeiro, passando assim a pertencer à família de objectos que Costa reclamou para a sua filmografia: a última carta de Robert Desnos a Youki, passada de Edite para Mariana, de Ventura para Lento; as fotografias de Jacoob Riis, que abrem Cavalo Dinheiro (2014), imagens de salas esconsas onde se apinham irmãos remotos das personagens de Costa; o requiem de György Kurtág para Andreae Szervánszky, cujo excerto encerra Vanda e os filmes que se lhe seguem; o poema «Sombra» de Antero de Quental, que Ventura recita a Vitalina na missa fúnebre que celebram — obras vindas do submundo ou que falam dele.

Do interior do vulcão negro e enfumarado surgem, antes de todas as outras, imagens das filhas do fogo, figuras de cabelos crespos, uns altos como labaredas, e olhos grandes, fixos em algo fora de campo — os pais, os maridos, os irmãos que deixaram a ilha. Distinguimos nelas os olhos largos de Mariana, a Clara do primeiro filme do cineasta, O Sangue (1989), cujo rosto brando reaparece agora nos retratos mais secos destas mulheres, multiplicados nos rostos dos próximos filmes: Vanda, Clotilde, Bete, Vitalina. Se para trás ficaram as personagens de O Sangue, e parte do seu classicismo, Casa de Lava retoma daquela obra a inelutabilidade de pertencer a uma família.

A erupção, espécie de génesis, anuncia toda a linhagem dos filmes de Costa, a prole de Bassoé — «Filhos, tenho mais de trinta», uns cujas ilhas de nascimento nomeia, outros que nem sequer conhece — os mais de vinte filhos de Alina, os filhos perdidos que Ventura procura atrás de cada porta dez anos depois, em Juventude em Marcha (2006), locução também ela herdada do filme de Cabo Verde, quando Edite e Amália, duas «velhas feias» que muito se amam, se reúnem para dançar, virando a velhice em mocidade, como numa cantata de Bach que Costa refere em entrevista[1]: «Que a tua velhice seja como a tua juventude». Nestes filmes, como na obra de Jacques Tourneur que Casa de Lava recupera I Walked with a Zombie (1943) — um «chora os nascimentos e alegra-se nos funerais», invertendo as duas metades do mundo, a luz e a sombra.

Ao contrário do que Mariana pensa quando leva Leão de volta à ilha, o que aí vai encontrar é uma colónia de mortos e não de vivos — e ali «até os mortos dançam». Levantam-se e incendeiam os vivos, tentam matá-los também — «o morto quer matar o Tano» —, arrastam-nos para a terra do fogo, das cinzas e das sombras, «longe das casas, longes das aldeias», transformam a bata branca de Mariana num vestido que se usa por sete dias, avermelhado como as línguas de lava que saltam da boca do vulcão infernal. Os mortos coabitam com os vivos, num terreno em que Leão é um intermediário mudo, como Carrefour, personagem do filme de Tourneur, guardião que recebe o nome das encruzilhadas que vigia.

Leão é a razão da vinda de Mariana para Cabo Verde, e, obliquamente, de Costa também, a peça narrativa que serve só para justificar uma viagem, ironia interna — «não fui eu que o inventei», diz Mariana, em quem a deriva do realizador, e a sua transitória desadequação à ordem da ilha, se espelham. Poderíamos dizer que o Fogo e os seus mortos os chamaram, para fazer deles mensageiros. Depois da rodagem do filme, Costa recebeu uma porção de cartas para entregar aos habitantes cabo-verdianos das agora desaparecidas Fontainhas, na Amadora, familiares da multidão de Casa de Lava.

É assim que Costa chega a Ossos (1997), primeiro filme no bairro, aquele em que tenta ainda impor às passagens estreitas daquele lugar a engrenagem aparatosa de uma grande rodagem, cheia de invasores e máquinas — é só em Vanda que desce sozinho ao interior do vulcão, para por lá ficar e se tornar parte dele. Contra as vistas amplas e em parte luminosas de Casa de Lava, constroem-se os espaços confinados e escuros dos filmes seguintes, quartos e casas, em que a prole recorre — Ossos, No Quarto da Vanda, Juventude em Marcha, Cavalo Dinheiro e o mais recente Vitalina Varela (2019).

Essas casas, espaços interiores, são frequentemente lugares da afirmação do amor ou da falta dele, quase sempre indissociáveis de uma mulher: o quarto da Vanda; «a casinha de lava que tu tanto querias» da carta de Edite;  a casa escura, também ela magma, onde Clotilde espera Leão; a outra mulher, «com rosto de Clotilde, mas [que] não era Clotilde», de Juventude em Marcha, que atira a mobília pela janela, e cuja partida representa o desaparecimento das Fontainhas e o regresso a um existência de rua.

Aos homens fica frequentemente reservado o exterior, onde deambulam; como Ventura, que antigamente se enganava na porta e acabava a dormir em casa de algum estranho, semeando filhos, que deixou Cabo Verde e uma mulher em 1972. O marido morto que Vitalina vem a Lisboa enterrar chamava-se Joaquim, o «belo sacana», mas podia chamar-se Ventura também. Como Edite, Vitalina esperou quarenta anos pelo regresso dele. Ela é talvez, de todas estas figuras, a que representa a coincidência mais perfeita entre mulher e casa, por oposição a Mariana, pássaro sem poiso. Uma, sem saber crioulo, foi levar um vivo a Cabo Verde, outra, sem saber português, veio recuperar um morto a Portugal, insinuando um fecho de ciclo na filmografia de Costa.

Em Vitalina Varela, a protagonista entabula um longo diálogo com aquele morto, uma tentativa de ajuste de contas. O principal tópico dessa conversa é a casa, constantemente lembrada por Vitalina ao espírito de Joaquim, forma prosaica de recriminação:

Esta tua casa está um trabalho muito mal feito. As janelas são bueiros. Portas de merda, bato com a cabeça nelas todos os dias. A casa que fizemos juntos, em Cabo Verde, é incomparável.

A casa do presente, a de Joaquim, é uma casa de fantasmas, como a casa ardida de Juventude em Marcha, em cujas paredes ficaram as mãos de Lento, ou o apartamento do Casal da Boba que nesse mesmo filme dão a Ventura, que não a vê como sua porque não nasceu das suas mãos, e nela só encontra teias que se espalham pela ausência de vida humana. Desse filme, Costa dizia igualmente que era feito de duas partes: «uma luminosa, o bairro do passado, e uma sombria, o bairro do presente». Também para Vitalina o presente é escuro e o passado, a casa de Cabo Verde cheia de céu azul por cima, é luminoso, como o Cristo que, no poema de Quental, existe ainda sem mácula antes de Judas o beijar.

Vitalina Varela, Pedro Costa, 2019.

Vitalina Varela, Pedro Costa, 2019.

[1] Ferreira, Francisco. «Sentimos que ele (Ventura) tem a grandeza de um mito fundador.» Entrevista a Pedro Costa publicada originalmente no Expresso. Consultado em 18/04/2020.

Seis mais uma #9

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