Na história da filosofia, não foram poucos os que apostaram numa explicação dual de mundo, em que os acontecimentos se apresentassem dentro de um sistema de tensão e elasticidade, retração e avanço, orientado, de um lado, pela vontade pura, caótica, fragmentária, e de outro pelo apego sóbrio aos sentidos preestabelecidos, ao que é constante e seguro, ao que se compôs, acomodou e engessou em formato fixo. Para Simmel, por exemplo, as sociedades configuravam-se a partir de uma dialética multidirecional que nunca se resolvia; para Wolflin, a arte resumia-se a duas escolas estilísticas em eterno conflito, a dos clássicos e a dos românticos, transfiguradas de um modo diferente em cada época. Há também quem, como Bourdieu, encontre por baixo dessa crosta de dicotomia generalista um fundo político: os signos próprios dos pensamentos de esquerda e de direita. Mas um choque entre cosmovisões e gerações, afirmariam eles, molda o rumo dos tempos, norteando nossas fantasias estéticas e morais.
Diz Vilém Flusser, em Ficções filosóficas, ecoando retoricamente essa ideia, que a escolha entre escrever tratados académicos e escrever ensaios é uma «decisão existencial no sentido estrito do termo». Para ele, a cisão entre uma coisa e outra, apresentada ao escritor de não-ficção logo que descobre essa sua estranha vocação, poderia muito bem representar o pêndulo entre os tais dois polos da História — entre o continental e o analítico, o apolíneo e o dionisíaco. Ser académico é retirar-se do tema para dissecá-lo, para decompô-lo em vectores geométricos, como faria um biólogo com o cadáver de um esquilo ou um físico com o movimento das marés. Ser ensaísta, inversamente, é implicar-se no tema, tornando-o inseparável de si próprio. O ensaísta é um pária entre os intelectuais justamente porque renega a precisão metódica ao prazer do texto, ao prazer de se deixar envolver pelo texto.
Se Macedonio Fernández é, até hoje, um enigma tanto para leitores quanto para teóricos da literatura, é pelo menos certo que nunca foi um académico. Retratado ao mesmo tempo como metafísico e como humorista, já que ia da filosofia mais erudita à piada mais trivial sem mudar de parágrafo, ele não divorciava a imaginação séria de mundo da imaginação jocosa, e por isso a sua obra tinha como aspectos essenciais a reflexão, a comicidade e a inventividade. As influências das psicologias de Spencer, Schopenhauer e William James são bastante nítidas já nos primeiros livros, e mais tarde refinam-se, na medida em que o seu conhecimento se vai tornando enciclopédico (e a sua admiração por Dom Quixote uma espécie de devoção).
O seu primeiro livro publicado, No todo es vigilia de los ojos abiertos, de 1928, é uma densa elaboração sobre o idealismo, tão densa que pode lembrar, ao leitor ligeiramente atento, uma sátira. Seu último e mais famoso, Museu de la Novela de la Eterna, escrito entre 1904 e o dia de sua morte em 1952, foi classificado por Jim Ruland, numa resenha para o Los Angeles Times, como uma «antinovela», por ter sido montado com a intenção de nunca ser lido, contando com mais de cinquenta prólogos. Sueli Barros Cassal, que organizou a primeira colectânea de Macedonio Fernández no Brasil, diz que com ele a literatura se torna «sem mundo, sem assunto, imaterial». Joca Reiners Terron fala de um «malabarismo da fala», evocando sua individualidade radical, que transbordava o plano da literatura (política e socialmente anarquista, ele teria tentado fundar, com amigos, uma vila no meio da selva paraguaia, e em 1927 chegou até a lançar, ironicamente, uma candidatura à presidência da Argentina).
Macedonio teve quatro filhos e abandonou-os assim que ficou viúvo. Foi um xadrezista inveterado. Exerceu a advocacia e mais tarde viveu exilado, sem sair de casa, em estado de meditação perene. Oficialmente, nunca morou fora de seu país. Foi grande influência para os artistas do chamado Grupo de Florida,[1] a ponto de, depois da morte, acabar mais conhecido como o mestre de Jorge Luis Borges (para Noé Jitrik, «o homem que inventou Borges») do que como um escritor propriamente independente. Houve quem acreditasse, inclusive, que ele não passava de uma personagem borgeana.[2] Neste sentido, a sua biografia e a sua obra continuam revestidas de dúvidas, produzindo essa figura mítica, oracular, em que aquilo que dela se diz num dia é logo desmentido no outro. Permanece, porém, uma certeza: Macedonio Fernández nunca foi um académico, nem mesmo quando, em 1907, a tentação de um emprego como professor lhe amuralhou a consciência. Porque, querendo ou não, era um ensaísta.
Mas como se faz um ensaísta, então? O que baliza essa categoria de homens, ligando-os ao ensaio? Segundo Jean Starobinski, um ensaio não se define tanto por sua forma quanto pela disposição no interior da qual se desdobra seu autor. «Vou, inquiridor e ignorante»: essa é a única fórmula para um ensaio, como o definiu Montaigne em seu texto pioneiro. Que o escritor ponha-se num estádio de registo e interrogação livre dos acontecimentos. «Ensaiar» é, até mesmo etimologicamente, examinar, testar, investigar, especular, explorar experimentalmente, numa espécie de tateamento tranquilo, às escuras, dos gestos mentais. Ensaia-se quando a palavra pode passear amplamente sobre o papel em branco, «desobrigada do esgotamento material», como nos lembra o jornalista André Martins referindo-se a O ensaio como forma, de Theodor W. Adorno.
Hoje, há ainda quem acredite, sobretudo na Europa, e sobretudo nos programas de pós-graduação europeus (talvez sob influência desta sisudez da Teoria Crítica), que o ensaio não passa de um exercício de linguagem anabolizado pela pretensão científica ou monográfica — há quem acredite que «ensaio» e «ensaio académico» são qualquer coisa mais que cognatos laterais, e que a distinção notada por Flusser é um acidente. Poderemos, sem dificuldade, pelo menos como pretexto para esta elucubração, concordar que existe uma diferença de natureza, e não apenas de grau, entre a primeira e a segunda categoria. E que a pergunta primeira de Starobinski («É possível definir o ensaio?») se agiganta contra quem acredita na polilogicidade do género, em seu modo de ser forma antes de ser atitude de deriva. Starobinski torna o ensaio, outra vez, escapadiço: «o movimento de uma mente livre quando brinca», no belo dizer de Cynthia Ozick, ou a «aposta na espontaneidade e numa elegância descuidada», como o aponta César Aira.
Neste sentido, poderíamos entender que, no caso de Macedonio Fernández, o que leva ao ensaio é a sua originalidade extrema. Têm seus escritos, sobretudo a partir de 1920, como se verá, uma inclinação ao paradoxo, à metalinguagem, à subversão do «tema» literário, que desaparece em meio à livre efabulação — há uma tentativa muito clara de se escrever o que ainda não foi escrito ou o que simplesmente não pode ser escrito, de buscar a fonte da subjetividade do autor no cerne da expressão literária, pela conjugação e apropriação de todos os temas, pelo embarque em todas as rotas simultaneamente, como se ali se desenhasse uma brincadeira. Para Macedonio, o ensaio é justamente o género da livre efabulação, do lúdico, que não confina a limites inertes o que o texto se propõe a ser, desde que ele possa iluminar a vida, tirando-a da condição de espuma fantasmal e dando a ela, por efeito de sua magia, substância, corporeidade, cinematografia. É o género que não precisa distinguir a ficção e a realidade, os métodos de construção do texto e as tramas biográficas, por exemplo, e que, assim, pode expandir-se do meramente textual.
O ensaio é o género mais compatível com essa irresponsabilidade formal que Macedonio propunha como método de exploração. O ensaio a promove, até, fazendo-a insinuar-se sob os olhos do autor, que, ensimesmado, pode invocar a volúpia do pensamento. Macedonio tinha que ser ensaísta, então, porque o ensaio era próprio de sua personalidade. Não há quem seja mais voluptuoso no trato com as palavras e com o próprio ambiente literário; ele mesmo «ensaificava» seus atos, hábitos, costumes e sua atenção. A longa barba branca, a roupagem negra, a sombra silenciosa, a pele porosa, salinizada pela maresia de Buenos Aires: nada disto é coincidência, é claro, e menos ainda oportunismo. Não queremos dizer com isso que ele planejava seus atos (ou, no mesmo sentido, seus textos) para serem de vanguarda, para repelirem intencionalmente as arquitecturas tradicionais de «autor» e de «livro», até porque, para ele, como nos avisa Borges, publicar era irrelevante. Era o ensaísmo, o experimentalismo, que se conformava ao seu jeito de ser com perfeição, como um terno de alfaiataria. Aqui, ele está até de acordo com a definição (instável, indefinitiva) de Starobinski, para quem, no que se refere aos ensaios, é quase sempre igual: eles se constituem como resposta ou consequência, fruto de uma série de arbitrariedades, e só são assim denominados por falta de termo melhor para usar.
Em Macedonio Fernández, escrever especificamente ensaios era a maneira de confirmar a soberania do seu pensamento, de escrever sem deformar o texto em nome de uma lógica livresca tacanha ou da necessidade de se adequar ao convencional (de tornar o convencional e o texto compossíveis entre si). Afinal, os bons ensaios, os infinitamente fecundos (vejamos os de Pascal ou Chesterton, dois escritores também admirados por Macedonio), surgem da rara combinação da autonomia artística com a autoridade para manipular a língua como melhor interessar, para torcê-la, dilatá-la, distendê-la, para fazê-la vibrar em frequências bizarras, sem tomar consideração pelo que se impõe norma ou bom senso. Vale, no ensaio, que o texto seja terreno da pura autarquia, do domínio integral do autor sobre o autor e da palavra sobre a palavra. Nele o escritor é dono de si próprio e demonstra gosto nesses mútuos pertencimento e posse.
Também há gosto assim, liberdade assim, às vezes, em contos e poemas, é claro, e vem daí, um pouco, a capilaridade taxonómica do ensaio. Como não possui margens exactas, ele vai se misturando aos outros géneros, produzindo simbioses literárias, ensaios-crónica, ensaios-romance, ensaios-tese-poesia (o último livro de Lydia Davis, Can’t and Won’t, de 2014, é um óptimo exemplo disso, mescla de longo ensaio descosturado com uma colecção de microensaios). Por isso, aliás, o humor das insistentes tentativas da crítica de redefinir o ensaio: por ser tarefa quase impossível, dada a variedade de definições possíveis (e plausíveis) para o termo.
Um ensaísta como Macedonio às vezes calha de escrever crónicas porque a crónica, principalmente a de vertente latino-americana, que é a que nos interessa neste caso, se irmana ao ensaio aqui. Se, para Alfonso Reyes, o ensaio é o «centauro dos géneros» — já que na mitologia grega, como se sabe, o centauro é uma criatura com dorso de homem e corpo de cavalo, de maneira que nele se misturam os baixos instintos e as ordens de civilidade, os sentimentos apolíneos e os dionisíacos —, para Juan Villoro a crónica é o «ornitorrinco da prosa». Da mesma forma que o centauro ou o ornitorrinco, ensaio e crónica pegam emprestados pedaços dos outros géneros e com eles, sabendo-se devedora deles, constroem-se como golem: amálgamas de estilos (muitas vezes pouco coesos) que se mascaram uns nos outros, produzindo uma articulação original.
Assim como o ensaio, a crónica é extremamente pessoal, a ponto de só produzir obras inimitáveis. Muniz Sodré, que a definiu, muito didaticamente, como um meio-termo entre o jornalismo e a literatura (por aproveitar «do primeiro, o interesse pela atualidade informativa; do segundo, o projeto de ultrapassar os simples fatos»), talvez não tenha percebido toda a sua potência de contaminação. Nessa apreensão, o cronista se estenderia entre os dois géneros apenas como o locutor de uma realidade atravessada, como uma espécie de repórter despido da pretensão de objetividade do jornalismo. Mas, se bem nos parece, a crónica também se estende entre géneros de modo mais geral, na medida em que toda escrita parte de um processo de montagem (de seleção, sucessão e reconhecimento) que é próprio da definição de «jornalismo» utilizada por Sodré. Na América Latina, essa contaminação tem lastro característico: para Germán Arciniegas, a própria história da América é cronística ou ensaística, pois parte de um problema, de um desafio à criatividade — o aparecimento súbito de um trecho de terra no oceano —, para chegar a um modo incerto de consolidação — as constantes reconfigurações identitárias de um continente-laboratório.
Tanto a crónica quanto o ensaio latinoamericanos costumam partir de contextos que os condicionam profundamente. Se os dois géneros se aparentam, então, e se isso acontece de maneira especial em Macedonio, não é porque os dois tratam necessariamente do seu autor, como acontece na autoficção (outro género que amplifica este traço da cosmovisão latina), mas porque eles são testamentais, e por isso são do autor, são profundamente do autor. Quer dizer, porque eles têm a comédia e o azedume do autor, porque compõem seu espectro de criatividade próprio, porque são fruto do seu manejo idiossincrático da vida e da cultura. Se o ensaio e a crónica se entrelaçam a ponto de às vezes se confundirem, é por explorarem essa autenticidade íntima que escapa às fronteiras tradicionais dos géneros. Ambos são como tirar uma lasca da consciência, seja de que parte dela for, embalá-la em sintaxe, seja da forma que for, e entregá-la gentilmente a um público, no mais das vezes, indiferente. Isso se dá especialmente na crónica e no ensaio, em detrimento, por exemplo, do romance, porque esses não têm personagem, e, sem eles, sem a mediação dos «procedimentos tediosos» de escrita que envolvem os personagens, como sugere Aira, sobra apenas o autor e sua inteligência.
No entanto, se o ensaio e a crónica se entrelaçam, eles também se desconectam e se dividem; também se estratificam em posições diametralmente opostas, tanto quanto o ensaístico e o académico o fariam para Flusser, ainda que num sentido totalmente diferente. No centro da secessão entre o ensaio e a crónica está o emprego das técnicas ficcionais. Enquanto os ensaios adoptam uma voz que tende a perscrutar o mundo, para sublimá-lo solitariamente, as crónicas tomam emprestadas uma miríade de vozes e tendem à catarse. O ensaio é uma forma de investigação que permite ao texto terminar sem que a discussão se feche — ele deixa o tema levitar, suspenso no ar, ainda em pauta; desobstrui os poros através dos quais a realidade respira; mantém a subtileza, a intrincabilidade, a contradição até, daquelas verdades mais genuínas —, mas é, querendo ou não, uma investigação.
Nas crónicas permanece a graça, a leveza planar do ensaio, sim, mas não há nelas o seu teor inquisitivo, e nem a sua morfologia aberta, a sua geografia maleável. A crónica precisa ser fechada, diz Villoro, ela precisa manter o «pacto de objectividade com o leitor» sem descartar os «mistérios insondáveis» que tangencia, e por isso precisa da narrativa, da urdidura, da roteirização. Precisa montar um mundo-maquete para poder, então, habitá-lo. A crónica nunca está além dos fatos, mas paira sobre eles, os filtra e percola. Os ensaios vão e vêm, saltam entre o centro e a periferia, entre o sincrónico e o diacrónico, vão do universal ao particular e do particular ao universal num súbito arranque. Já as crónicas costumam vincular-se ao drama da vida através de progressões minuciosas, que desfolham o tema ou o fato, espiralando até seu centro, como se, em seu empenho, elas emulassem o desembrulhar das franjas de uma cebola. Se a crónicas, no sentido tradicional, tendem à brevidade, isso não significa que seu ritmo seja naturalmente acelerado, nem que tenda a rarefazer por falta de fôlego, mas, pelo contrário, que seu autor precisa deter-se, antecipando o leitor, de modo a não permitir que ele fixe sobre o texto a suspeição que poderia «resolvê-lo», solucioná-lo esquematicamente e, portanto, estragá-lo, torná-lo usual. E, claro, na crónica também há a necessidade de adequar a linguagem ao espaço tipográfico de uma coluna de jornal.
Os artigos de jornal de Macedonio Fernández eram escritos com o cuidado delicioso da mão firme. Ele visualizava seu leitor, podemos percebê-lo, fosse porque, nesse caso, respondia a um estado de coisas mais imediato, a olhos mais reactivos, fosse porque as suas crónicas são, em geral, anteriores a 1920, e portanto à mutação de estilo que ocorreu após a morte de sua esposa. Os livros — todos, sem excepção, ensaios híbridos —, por outro lado, pareciam amontoados à última hora, escritos numa sintaxe complexa e a partir de anotações, de retalhos de papéis guardados em gavetas, bolsos e potes. Ou, como ele próprio dizia, eram livros «cheios de valas […] aos quais a numeração de páginas é inútil». Só mais tarde, anos mais tarde, é que esses retalhos eram reunidos, muito pelo empenho ordenador de seus colegas e seguidores, em volumes miúdos e desconexos, num costume que ele deixaria para vários outros autores argentinos, como Cortázar, Piglia, Zelarayán e, evidentemente, Borges. Quer dizer, podemos separar com facilidade o Macedonio cronista do Macedonio ensaísta ao separar sua produção jornalística de sua produção livresca, fazendo um outro tipo de recorte, em que os dois tipos de texto se singularizem não por seus atributos, mas pelos meios em que foram publicados. Mas também não há dificuldade em separá-las, ainda, por critérios mais interpretativos.
Em «Tantalia», Macedonio apresenta um casal de namorados cuja paixão depende de um pé de trevo, para depois transformar este trevo em narrador hermético e, por fim, relatar a confissão de um ser divino, que está além do tempo (além da «Cessação», da «Dor», da «Eternidade») e que nos surge como o torturador da planta. Esse ensaio é, como tantos dos seus, uma brincadeira especulativa, imersa em esoterismos, que faz jus à célebre frase de William Carlos Williams: «o ensaio deve se mover como um motor; suas partes devem ser infinitamente relacionadas umas com as outras». Isto é, «Tantalia» faz uma concatenação obsessiva de diferentes linguagens e lógicas internas enquanto busca exprimir uma única imagem, sempre fugidia, da morte. Por isso o texto espoca, de repente, de um conto romântico, melodramático até (contando a história pudica de «uma plantinha» que sustenta, solitária, a «sentimentalidade, a capacidade de simpatia» desse casal), a uma difusa, rebuscada e magnética jornada pelos confins da teologia (em «Quarto momento: novo sorrir», que com esta frase se inicia: «A fórmula radical, íntima, do que Ele miseravelmente estava fazendo, era a ambição e a ansiedade de obter a substituição, pelo Nada, da Totalidade, de tudo que existe, do que existiu, do que é, de toda a Realidade material e espiritual»).
Já as crónicas de Macedonio, como as escritas para o jornal comunista de Leopoldo Lugones, La Montaña, ou para o periódico do seu primo Octavio Acevedo, El Progresso, são homogéneas, apoiando-se em pensamentos lisos, delgados e límpidos. Em «La desherencia», para o primeiro jornal, em 1897, argumentava, com apática clareza, em favor do plágio, pois tudo o que havia para ser dito na literatura já teria sido dito, e só restaria, ao autor, copiar, imitar, contrafazer — «Na arte, tudo está feito; ninguém superará Beethoven, Heine, Dante» — enquanto à ciência, pelo contrário, se ofereceria um amplo espaço de territorialização. Em «El teatro aqui», para o segundo jornal, em 1892 — um dos seus primeiros textos —, faz o que se pode até qualificar como uma fábula para debochar da condição do jornalismo e expor a burguesia portenha como uma recolha de tipinhos burlescos, apresentando a cidade como um mecanismo fechado. Em todo caso, há, nessas crónicas, uma lisura, uma total ausência de estrias, que as distingue nitidamente de um ensaio como «Tantalia» ou dos ensaios desorientados que se perfilam em seus livros. Pois se, em Macedonio Fernández, o ensaio se bifurca do tratado académico, também a crónica se bifurca do ensaio, e o ensaio do próprio ensaio, engendrando um labirinto de categorias literárias; todas, como não poderia deixar de ser, inconclusivas em seu esforço de hierarquização.
A separação que mais faz jus ao hibridismo de Macedonio, entretanto, deve ser a separação biográfica. Por essa perspectiva, entenderíamos sua mudança estilística como uma mudança interna, de seus regimes noológicos e mesmo existenciais: com a morte de sua esposa, Elena de Obieta, e seu consequente afastamento da vida social, da concretude das experiências, das responsabilidades formais e contextuais — a casa, os filhos, o escritório, tudo é deixado de lado, distribuído entre amigos e parentes —, Macedonio deixa de ter de dizer algo e passa a poder tratar a língua como mero jogo, exatamente da maneira que fariam, muitos anos depois, por exemplo, Calvino e Perec em seus ensaios e romances com estrutura de quebra-cabeças. Macedonio não se importa mais com sua reputação, com seu legado, com a literatura, e mal se alimenta propriamente, vivendo num estágio entre a boémia e a mendicância. Por isso, a intenção de seus textos pode deixar de ser a transmissão de pensamentos ou acontecimentos, de uma massa de inferências lineares, para se tornar apenas a consolidação de um mosaico de opções: a linguagem passa de veículo a performance e as barreiras formais dissolvem-se vertiginosamente.
Já houve algum esforço para desmistificar a imagem de uma genialidade macedoniana advinda da condição de «viúvo triste»,[3] até porque, em 1921, quase concomitantemente à morte de sua esposa, Borges retorna da Europa e os dois começam a se corresponder com mais vigor, o que sem dúvida impactará as obras deste tanto quanto as daquele. Apesar disso, é óbvia, a partir da tragédia, a radicalização e a sensibilização de seus experimentos, cada vez mais centrados em questões como a finitude, as poéticas do incorpóreo e a transfiguração da matéria. É só depois de 1920 que virão à tona textos como os de Papeles de Recienvenido e Manera de una psique sin cuerpo, que formarão o grosso da sua bibliografia. Prova da relação entre a mudança estilística e a morte de Elena é o próprio Museu de la Novela de la Eterna, aliás, tentativa de cristalizar uma imagem derradeira de sua amada.
Outras provas estão nas belíssimas elegias de vanguarda que escreveu após o fatídico dia, como Elena Bellamuerte e La muerte no es la nada, ambas tentativas de matar a morte (tanto a de Elena quanto a Morte em si), publicadas na revista Sur, e que dariam origem a ensaios nos anos posteriores. Na primeira, Macedonio reafirma a beleza da saudade de sua esposa, cuja pura ausência não é mais que uma presentificação negativa, pois esconde um fazer-querer ainda mais essa presença, essa memória, e, portanto, ao mesmo tempo a dignifica e o entusiasma, vivificando-os ambos («Eu não sinto dor, ora: olhe para mim!»). O segundo, exercício barroco, evoca esta síntese do seu idealismo heterogéneo, multifásico, e cheio de ironia: «A Morte não é o Nada, mas nada é / O Nascimento não é a Vida, mas nada é».
[1] Conclave de artistas de vanguarda, principalmente escritores, da Buenos Aires dos anos 1920 e 1930, que se apoiou no surrealismo e no futurismo. Também foram chamados Grupo Martín Fierro, porque suas ideias entravam em confluência por meio da revista de mesmo nome, e desenvolveram suas concepções em oposição ao Grupo Boedo, que propunha a reemergência de temáticas do realismo social. Entre os membros do Grupo de Florida incluem-se Xul Solar, as irmãs Victoria e Silvina Ocampo e Oliverio Girondo, além do próprio Jorge Luís Borges, seu grande articulador.
[2] A curiosidade é trazida à tona por Mónica Bueno, uma das maiores especialistas em Macedonio, em entrevista ao jornal Rascunho. Mas, dado que Macedonio surge como personagem em contos de Borges (como também de outros autores — Ricardo Piglia, Leopoldo Marechal, etc.), e dado que os escritos de Macedonio geralmente foram lidos depois destes contos e a partir deles, tal confusão não nos parece tão inexplicável. Para exemplificar, basta nos referirmos à carta de Thomas Pynchon a seu editor na época da escrita de Gravity’s Rainbow, em que ele expressa sua admiração por «Tlon, Uqbar, Orbius Tertius» e coloca em dúvida a existência de Adolfo Bioy Casares, autor muito mais célebre que o próprio Macedonio, mesmo então, mas que se confundia totalmente com o irreal na esfíngica ficção borgeana.
[3] Refiro-me especialmente ao artigo publicado pelo jornal La Nación em 2010.
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