Quando o Alberto Arruda estava a alinhar o programa do Workshop de Filosofia e Literatura da última Primavera e me pediu um título, eu não sabia ao certo qual ia ser o tema da minha apresentação — de longe me vem a dificuldade em escolher tópicos de trabalho e mais uma vez o problema persistia. Precisava por isso de fixar um objecto, à semelhança daquilo que as outras sessões faziam: «escrita jurídica», «Marx», «Júlio Pomar».
A essa necessidade respondi de forma enviesada, já que, em boa verdade, a única coisa pedida pelo Alberto fora uma designação. «Árvores formando um bosque», anunciei. Subitamente, nada mais havia a temer: tinha um tema — o meu título era o meu tema. No entanto, o recém-fundado método operava uma ligeira alteração na ordem dos termos, já que em vez de falar acerca de um objecto existente a priori, teria de falar para inventar um objecto. Aquela série de palavras não designava absolutamente nada e precisava de ser insuflada. O meu título pedia uma definição, uma biografia, uma obra, o que me colocava numa posição estranha — a de ter de esclarecer perante uma audiência, mas também perante mim própria, aquilo que eu mesma criara, como um pintor que tenta explicar ao público a sua arte. E ainda que o meu título pudesse estar próximo de certas obras que, muito mais do que outras, requerem contexto, esse título continuava a não ser da mesma natureza de uma pintura, mais que não fosse por se tratar de um objecto inacabado, algo por cumprir. Não era, acreditava eu, significante.
Não obstante, face a um título tão vago, houve quem me perguntasse sobre que ia falar. Espantou-me perceber que tinha criado um núcleo sobre o qual podia dizer agora o que quisesse, desde que oferecesse, pelo menos, uma impressão de coerência. Aquilo que as pessoas esperam de nós na maior parte das vezes é que não nos desintegremos quando falamos de alguma coisa, o que não deixa de ser um pedido justo. Precisava então de me deslocar e de me transformar em leitora do meu título, arranjar-lhe uma explicação.
Ser eu a delinear esta explicação a posteriori significava professar a possibilidade de, a partir de algo absolutamente inocente, escolhido ao acaso e sem sentido, construir algo significativo. O meu título podia ser qualquer coisa como as linhas que Stanley Fish deixara no quadro de uma aula para a outra, linhas que os ingénuos, mas muito competentes, alunos da segunda turma da manhã, aqueles que estudavam poesia religiosa inglesa do século XVII, leram como versos. Eu ia colocar-me na posição daqueles alunos e entregar-me a um divertimento — desenhar ligações entre coisas que não têm ligação absolutamente nenhuma, inventar tudo aquilo que precedia o meu título e transformar uma coisa insensata numa coisa coerente.
O que enviei ao Alberto foi um esboço, esboço que, como descobri depois, aludia já à sua natureza embrionária: «árvores formando um bosque». O gerúndio do título serviu de mote. A ocorrência do gerúndio pode, por um lado, ser lida como indicativa do processo através do qual árvores, ao crescerem, formam, juntamente com arbustos e outras plantas, acrescente-se, um bosque. Formando designa assim uma acção estendida no tempo e ainda por concluir. A imagem de um amontoado de árvores a desenvolver-se ao longo de uma década, sendo esquisita, apontava para o facto de o título ser apenas parte de um movimento, de um processo mais amplo acabado de iniciar.
A minha série inicial de árvores estava ainda em vias de formar um conjunto mais consistente ou que fosse ao menos reconhecido como um conjunto. Eram ainda e só os primeiros traços de algo — um bosquejo, uma descrição genérica. Repescar a palavra bosquejo, comum nas artes plásticas para designar um desenho, uma pintura não finalizados, um conjunto de traços feitos à pressa, era importante, já que a minha tarefa consistia precisamente em terminar um rascunho, em transformá-lo em alguma coisa a que pudesse melhor ou pior chamar uma versão definitiva. Partindo de um esboço, começava, a intervalos espaçados, a dedicar-me a pequenos esforços de aperfeiçoamento, de finalização.
O gerúndio apontava igualmente para essa leitura: uma série de árvores, por si só, sem uma visão de conjunto que as unifique, sem arbustos ou outras plantas, não é mais do que o rascunho de um bosque — não é ainda um bosque completo. E, no entanto, comporta já um bosque em potência. O gerúndio sugere uma espécie de relação de metonímia entre um rascunho e a imagem final de um bosque a que este eventualmente conduz — uma contém o outro e, no entanto, não são a mesma coisa. As árvores permitiam-me referir o bosque por estarem, em termos semânticos, próximas dele, e era também nesse sentido que elas o formavam. A minha apresentação ia tentar mostrar como a parte pode, num sentido absolutamente genesíaco, formar o todo — seria sobre alturas em que ainda só temos uma árvore ou, como no meu caso, só temos um título, porque estamos ainda a formar ideias. A sessão e o tempo que a antecedeu seria exactamente o que o título do conjunto das sessões anuncia — um workshop, uma oficina, um local de trabalho, um laboratório, onde se desenvolvem coisas, mais do que uma aula prática sobre uma actividade ou assunto específico. O meu tema era assim, por mera contingência, o próprio processo de invenção de um tema.
Inventar um título que não sei o que quer dizer permitia-me um movimento importante — desenvencilhar-me, tornar menos solene uma coisa que eu mesma criei, possibilidade que me agradava. A principal causa das decisões adiadas acerca de temas de trabalhos é o embaraço em fazer-me refém do trabalho escolhido. Mas se ter uma posição mais ou menos definida sobre certas coisas pode ser às vezes um sinal de estagnação, mudar constantemente não é, de todo, solução melhor. Assim, olhando com reserva as ideias demasiado fixas de colegas mais certos do que eu, olhava-as também com inveja — inveja do enorme sossego que as ideias suficientemente fixas dão. A dificuldade em relação a essa casta de ideias será sempre saber se é maior a utilidade que têm ou a obstrução que significam e determinar com precisão quando é que se atingiu o ponto a partir do qual só a mudança torna o progresso possível. Tendo sido capaz desse reconhecimento, importa então iniciar aquela que é a tarefa mais árdua: deixar um ponto de estagnação e começar a formar novas ideias.
Ocorreu-me então que o meu título, a única coisa palpável de que em boa verdade dispunha, talvez pudesse conter relativamente a isto alguma pista — pensei que o título poderia efectivamente ajudar a gerar o meu tema. Fui por isso entreter-me com a literatura disponível sobre arvoredos, que me revelou, com não muita surpresa, ou não houvesse em mim a memória daqueles competentes estudantes, poder haver entre o modo como pensamentos e árvores se associam uma relação. De forma que dou aqui início à parte científica da minha exposição.
Em Biologia, a evolução de um ecossistema é comummente designada como sucessão ecológica. Um ecossistema é composto por diferentes tipos de comunidades, e estas constituídas por diferentes espécies de organismos. Na base do sistema encontramos as comunidades mais simples, menos desenvolvidas — as comunidades pioneiras. No seu topo, as mais complexas, mais desenvolvidas — as comunidades clímax. Das comunidades pioneiras fazem parte plantas como líquenes e musgos, particularmente resistentes, de crescimento rápido e capazes de alterar o solo no qual se fixam. Produzindo matéria orgânica, que ajuda a que água seja mantida no solo, possibilitam o desenvolvimento de outro tipo de plantas. Em modo biólogo, dir-se-ia que as impressões e intuições que presidiram o nascimento da minha apresentação são como estas as espécies — de pequeno porte, pouco especializadas, não muito exigentes. Crescem depressa e em qualquer sítio, mas nunca duram muito tempo, porque, sendo simples, são também frágeis e não têm ainda ao seu redor plantas maiores que as abriguem. Ainda assim, e apesar da longevidade reduzida, são um pilar fundamental no início do processo evolutivo. Progressivamente, o seu lugar será tomado por outro tipo de espécies. A comunidade pioneira dará então lugar a uma comunidade intermédia, constituída não apenas pelos musgos e líquenes, mas também por plantas de maior dimensão, como arbustos. Estas comunidades secundárias abrangem uma variedade de espécies significativamente maior e é a partir delas que se chega a uma comunidade clímax, assim caracterizada não apenas por ser a última a constituir-se, mas também porque o ecossistema atingiu o maior desenvolvimento possível considerando as características da área envolvente. Este tipo de comunidade é mais diverso, está mais harmonizado com o meio e inclui plantas de maior porte, como árvores, espécies que precisam de mais tempo e de mais condições para crescer, mas que são também mais resistentes. A multiplicidade de espécies e as relações entre elas estabelecidas asseguram uma maior coesão do ecossistema, e este tipo de comunidades é por isso mais autónomo e menos vulnerável.
Idealmente, a minha apresentação deveria parecer-se mais com uma comunidade clímax: com ideias de maior porte, lentamente maturadas, resistentes, porque coesas. Mas ideias não se fixam a mentes como líquenes a solos e, evidentemente, há algo de absurdo em estabelecer entre ideias e líquenes, mentes e solos uma analogia. Cabe por isso aqui uma distinção evidente, mas que mesmo assim é necessário fazer, entre pessoas e essa entidade vasta que designamos por natureza: o tipo de deliberação, de agência relativa a uma pessoa em nada se parece com o tipo de impulso que move elementos naturais. Mas roubar à ecologia uma série de termos sobre comunidades e estabelecer entre pensamentos e espécies uma relação, mesmo que inoportuna, serve um propósito. Na descrição que enunciei, as espécies pioneiras permitiam o desenvolvimento de outras espécies, nomeadamente através da proliferação de matéria orgânica, matéria que anteriormente não existia. É a partir da acção das espécies mais simples que outras espécies e consequentemente comunidades maiores e mais estáveis se constituem. Das minhas impressões e intuições nascem às vezes coisas mais decentes, apresentáveis.
O modelo da sucessão ecológica implica que, ainda que o solo defina os limites daquilo que se pode vir a passar, as relações entre espécies são tão determinantes quanto o solo. E mais do que as relações entre espécies, importam as relações entre as espécies e o solo ou as condições ambientais em geral. Importa sim o modo como coisas são postas em relação. Este ponto ilumina o meu problema, sem que de forma alguma o resolva: se o ponto de partida, o solo, as características do ambiente local, e, se aceitarmos a analogia, as pessoas, são relevantes e até certo ponto indispensáveis (as minhas ideias não existem sem mim), são também (ou assim espero, a bem de apresentações vindouras) apenas um ponto de partida. O convívio entre as minhas ideias e ideias que não são minhas, entre mim e o que está fora de mim é, como na ecologia, o mais decisivo. A diferença fundamental aqui relaciona-se com aquela distinção evidente, mas que era necessário fazer acima. O modo como cada coisa é posta em relação, no que a nós diz respeito — e nós significa aqui aquilo que não é ecologia —, é deliberado. Isso significa que a transformação de uma comunidade pioneira – de ideias simples, pouco complexas, pouco resistentes — numa comunidade clímax depende da nossa capacidade de substituir as primeiras plantas por outras espécies, mais apuradas, que tanto podem desenvolver-se à custa daquelas primeiras ideias, quanto à custa das ideias que sempre nos tentam invadir, vindas de bosques vizinhos.
Quando comecei a esboçar a minha apresentação, aborreceu-me perceber que muitas das ideias que me pareciam válidas ou muitas das questões que colocava a mim mesma acerca de assuntos que me vão entretendo, pensemos, a propósito do meu título, em qualquer coisa genérica como interpretação, eram ainda as mesmas com que me debatia há um par de meses ou até de anos. Receei na altura — em boa verdade, ainda receio — não ser capaz de desenvencilhar-me da mesma forma de pensar, dos mesmos assuntos. Senti-me confinada a uma daquelas ideias fixas, uma das que provavelmente já não levam a lado nenhum. Ainda namoro muito muitas ideias simplezitas, pequenos musgos, não tenho ainda a minha colecção de médio porte (oh, invejáveis arbustos) e muito menos uns frondosos castanheiros.
Ao aborrecer-me, por não conseguir dar um passo em frente, reanimei-me: aceitando que o sentido é construído, não encontrado, preparar aquela sessão recordou-me a possibilidade de ao invés de uma pessoa, ao escolher um tema, revelar algo sobre si (o que depende da ideia de que aquilo que essa pessoa é se constituiu como uma espécie de depósito, de matéria encoberta), essa pessoa se poder definir por via das coisas que vai colocando em relação, muito mais do que por aquilo que de alguma maneira já trazia consigo, que lhe parecem, muitas vezes, traços inelutáveis. Da mesma forma, o meu título deixava de ser uma obrigação e passava a ser uma desculpa, porque dele, aos meus olhos, nasciam não directivas, mas antes algumas direcções. E, graças a Deus, há pessoas boas a desenhar bosques e outras que melhores são a apreciá-los. Primeiro o título ou primeiro a história, haja ao menos um bom bosque por onde um pobre domingueiro possa passear.