Del mismo modo que sucedió con América,
el cine fue descubierto varias veces
Raúl Ruiz
News from Home (1976) e dois outros filmes de Chantal Akerman feitos em 1972 — a curta-metragem La Chambre e a sua primeira longa, Hotel Monterey — estão directamente associados a uma localização específica (um quarto, um edifício, uma cidade), mas há nessas imagens uma opacidade que compromete a possibilidade de as vermos sobretudo como registos, como representações de lugares. A unidade geográfica anunciada pelos títulos ou entrevista nas imagens é cancelada em cada um dos filmes. Os três contrariam uma ideia de reprodução propriamente mimética, privilegiando um olhar criativo do cineasta sobre a matéria. Dizer isto é, por si só, absolutamente supérfluo, pelo que importa sim analisar a série de elementos através dos quais, mais ou menos sub-repticiamente, isso é evidenciado.
O Quarto
La Chambre, Chantal Akerman, 1972.
La Chambre (1972) não é a simples vistoria de um quarto, nem se resume à delimitação de um lugar, exactamente como o livro de Xavier de Maistre, Voyage autour de ma chambre. O excessivamente remoto antecessor daquela curta-metragem é descrito nos seguintes termos por Pedro Mexia, no prefácio a uma edição recente da obra do escritor francês:
Uma cama, uma mesa, cadeiras, uma poltrona, um espelho, quadros e estampas, uma secretária com gavetas onde há materiais de escrita, uma lareira. Este é o levantamento topológico do país visitado por Xavier de Maistre em 1794. É verdade que não se trata de país nenhum, apenas de um quarto em Turim: mas essa diferença de escala, de natureza, não tem a mínima importância.
À semelhança da extrapolação de [de] Maistre, a câmara de Babette Mangolte, operadora de câmara e directora de fotografia deste e de outros filmes de Akerman, prolonga o espaço, ao invés de o cercear. Ao longo de onze minutos, o pequeno quarto, à época habitado pela realizadora, é ampliado por uma série de panorâmicas. La Chambre, terceira curta-metragem da belga, e a primeira a ser realizada fora do círculo de Bruxelas, longe do seu universo familiar, anuncia, como um manifesto artístico, a criação de um mundo, do qual Akerman é a protagonista — a primeira mulher que come uma maçã. E, tal como no caso de [de] Maistre, um quarto e onze minutos podem ser o suficiente para apresentar um arsenal.
La Chambre podia ser visto como um segundo génesis, se considerarmos a existência do primeiro filme da realizadora, Saute ma ville (1968), marcado pelo mesmo tipo de contenção temporal e espacial, e igualmente centrado na figura da sua autora. Mas é em La Chambre que Akerman dá pela primeira vez agência à câmara, como se a ostensiva presença da realizadora em cena, presença que caracteriza alguns dos seus filmes, fosse aqui personificada pelo dispositivo, que passa a ser explicitamente subjectivo. La Chambre encena essa transmissão de subjectividade, como se a câmara roubasse de forma efectiva a alma ao corpo que retrata. Akerman, objecto da sua própria lente, oferece a sua especificidade enquanto sujeito a essa mesma lente. Atente-se, para melhor compreender a minha descrição, nas sucessivas aparições de Akerman no filme, que funcionam como o lenço branco que um mágico sacode sobre a cartola, antes de fazer aparecer um animal. Na primeira vez que surge, estendida na cama, a realizadora abana a cabeça para um lado e para o outro, imitando a rotação da câmara, como se apontasse para ela — Akerman, visível, chama a atenção, com o seu movimento de cabeça, para aquilo que não se vê: é a câmara aquilo que ela indica, o que instaura uma cisão, porque a câmara não ocupa aqui apenas o lugar do espectador, mas, e sobretudo, o lugar do autor — o centro do quarto, o centro do mundo e o centro da criação.
A câmara, na sua lenta deslocação, parece gerar o próprio quarto, que se desenrola pela primeira vez aos nossos olhos, ao longo do movimento da primeira panorâmica. Colocada no meio do quarto, a câmara percorre-o, desenhando-o, rodando sobre si mesma, criando a ligeira, mas perceptível, ilusão de que poderia ser o quarto a orbitar a câmara — como na cena de um famoso filme de Ophüls. Àquele movimento de imitação da câmara esboçado pela cabeça de Akerman seguem-se, na segunda panorâmica, um movimento de rotação de todo o corpo, e, na terceira, o movimento da maçã que ela roda entre as mãos — estes três movimentos estão como que truncados, não constituem uma rotação completa, anunciando assim as panorâmicas erráticas que se irão seguir. Depois do vislumbre da maçã animada pelas mãos da realizadora, a câmara tem o seu movimento interrompido e em vez de completar pela terceira vez um ângulo de 360º, inverte a marcha e revela-nos Akerman — pecadora, porque desestabilizou a ordem das coisas — a comer a maçã de modo provocador, porque displicente.
A subjectividade da câmara de que falava acima é revelada precisamente através do movimento e da alteração deste. A regularidade da rotação da câmara é quebrada, o que constitui uma clara fuga ao rigor da máquina — é a dita subjectividade da câmara que impede o seu avanço absolutamente mecânico. Assinala-se assim um distanciamento de Akerman face a trabalhos mais puramente formalistas de alguma da vanguarda norte-americana das décadas de 1960 e 1970, com a qual a jovem cineasta teve extenso contacto no seu primeiro ano passado nos EUA e dos quais os três filmes dos anos 70 aqui discutidos são devedores.
Dentro dessa vanguarda, importará destacar a influência que o Cinema Estrutural teve na realizadora, nomeadamente filmes como os do canadiano Michael Snow (Wavelength, 1967; (Back and Forth), 1969; La Région Centrale, 1970-71). Há uma série de elementos que Akerman herda desse cinema — a importância dos movimentos de câmara enquanto princípio que organiza todo o filme, a utilização de planos fixos ou a recorrência dos movimentos pendulares da câmara, uma certa atenção à geometria, à simetria do plano, recursos que se relacionavam com a tentativa de o Cinema Estrutural evidenciar o funcionamento do próprio medium, de chamar a atenção sobre os aspectos formais do filme, dando à câmara uma importância igual ou superior à daquilo que é filmado — a notória primazia da forma sobre o conteúdo.
Se Akerman assume essa influência, importa observar de que forma rompe com ela: recusando, por exemplo, a repetição sem variação, variação que a câmara de Snow em La Région Centrale explorava, é certo, mas de forma muito distinta, mais puramente formalista. O modo como Akerman se serve dos recursos do Cinema Estrutural permite-lhe cancelar qualquer equívoca promessa documental contida em La Chambre, Hotel Monterey e News from Home, mas simultaneamente recusar o mecanicismo daquele outro cinema.
As panorâmicas de La Chambre não são utilizadas para descrever o quarto, como se fossem um mero substituto do plano fixo, um substituto que permitisse uma visão mais completa. A lentidão e a repetição do movimento circular, bem como a posterior decomposição desse movimento, através da sua interrupção e inversão, constituem uma subversão do gesto realista, multiplicando, de forma potencialmente infinita, um espaço tão circunscrito quanto um quarto, corrompendo o que esperaríamos poder descrever como a estabilidade do espaço e do tempo. Aquela subversão não é tão sistemática quanto as explorações de Snow, e é dessa anomalia que algo de notável irrompe. Hotel Monterey acrescenta à conversa um elemento importante para perceber de que forma a centralidade do dispositivo formal é imprescindível, ainda que não suficiente para tornar estes três filmes de Akerman objectos tão particulares.
O Hotel
Hotel Monterey (1972) poderia ser descrito como um movimento ascensional num espaço assombrado. Dá-se o caso de Akerman ter filmado um hotel barato em Upper West Side, mas a decadência do edifício é o menos relevante recurso da realizadora. Os vários planos que compõem os primeiros dois terços de um filme de 62 minutos são maioritariamente fixos ou definidos quer por uma ínfima movimentação da câmara quer por uma alteração de uma pequena parte da imagem, como na sequência do elevador abaixo desmontada.
Hotel Monterey, Chantal Akerman, 1972.
Essa fixidez quase absoluta e a longa duração dos planos conduzem àquilo que Rita Novas Miranda, em algumas linhas bem mais iluminadas sobre este filme, chama «a indução de um estado hipnótico (...) a partir de uma imobilização do corpo duplicada pela fixação num ponto, característica de todo e qualquer filme». Em Hotel Monterey, a dita indução da hipnose depende, singularmente, da correlação entre a longa duração e a fixidez dos planos, bem como da ausência de som que caracteriza todo o filme. A permanência demorada em cada plano distende o tempo e o tempo amplifica o espaço, operando uma espécie de sublimação sobre ou da imagem — a matéria passa do estado sólido para o estado gasoso — a imagem torna-se rarefeita, no sentido em que se consuma um afastamento do domínio do material e finalmente um corte com este.
Hotel Monterey, Chantal Akerman, 1972.
O próprio filme alude a essa separação, a esse levantar da âncora: no penúltimo plano de Hotel Monterey (que quase não se distingue do plano final), a câmara, enquadrando uma fieira de torres de água que mais parecem foguetões (e espelhando estas, como na sequência da maçã discutida acima), descola, zarpa, e o que vemos é o céu, o espaço vazio, uma mancha azulada. Segundo Miranda, que parafraseia Akerman a propósito de uma sequência anterior do filme: «após um certo tempo já não vemos um corredor mas amarelo, evidenciando a matéria e já não a forma (...) já não vemos a forma nem o tempo, mas o movimento». A ancoragem ao solo perdeu-se e quando, deslocando-se do céu em direcção à terra, o enquadramento parece levar-nos de regresso ao hotel, aos prédios, à rua em Upper West Side, esse é afinal, de modo importante, um falso regresso — na sequência entrevê-se um corte, precisamente quando o plano é unicamente aquela forma, aquele quadrado azulado. Pensamos regressar ao hotel que diríamos ter contemplado durante a hora anterior, mas essa hora pouco mais foi do que uma sequência de ilusões.
Hotel Monterey, Chantal Akerman, 1972.
Pensemos nos minutos que antecederam a ascensão descrita, em que a câmara parecia efectuar uma série de travellings ao longo do mesmo corredor, tal como Miranda aponta:
E inauguram-se, sequencialmente, quatro planos, com a duração de cerca de 3 minutos cada, repetindo uma mesma estrutura: a câmara fixa no corredor, um travelling à frente, a câmara fixa-se no fim do corredor na janela, terminando com um travelling de recuo (...) Os quatro travellings à frente culminam na janela e são seguidos de um plano fixo do que parece ser a mesma janela. Contudo, Akerman filma o mesmo corredor e a mesma janela em andares diferentes, sendo o movimento o da subida de andar em andar.
O que parecia ser o mesmo corredor em diferentes alturas do dia é, afinal, em cada uma das vezes um corredor diferente. Como em La Chambre, também aqui, pequenas, por vezes imperceptíveis, variações são introduzidas, desestabilizando a possibilidade de considerarmos que o papel daquelas imagens é remeter para o espaço unificado do verdadeiro Hotel Monterey, tal como Miranda indirectamente sugere: «Talvez seja esta uma das aparentes contradições de Hotel Monterey, a monotonia criada pela repetição e pela fixação no espaço não será propriamente do domínio do concreto».
Retomando a descrição anterior da série de travellings, percebemos que o movimento de avanço e depois de recuo da câmara não deve ser definido pela sua existência em relação a um objecto (ali, a janela localizada ao fundo do corredor), mas antes pela sua existência em relação a si próprio — aquele movimento de câmara, consistindo tecnicamente num travelling, aproxima-se mais, na sua essência, de uma panorâmica, se entendermos uma panorâmica num sentido estrito: um movimento da câmara sobre si mesma, sem deslocação efectiva. Em La Chambre, Hotel Monterey e News from home o movimento centra-se obsessivamente sobre si próprio, desvinculando-se quer do espaço concreto, que lhe serve sobretudo como um utensílio, quer da figura do autor, cuja presença, novamente, serve sobretudo para apontar para a auto-consciência do próprio filme. E a aparição de Akerman em La Chambre, a recorrência de efeitos de duplicação em Hotel Monterey e sobretudo o recorrente vislumbre do reflexo da câmara e da sua operadora em News from home marcam o desaparecimento da figura de Akerman, em benefício da própria câmara ou daquilo que esta permite configurar — um centro organizador do filme: sistemático, mas não absolutamente mecânico, porque no seu funcionamento serial é introduzido um elemento anómalo; subjectivo, mas dificilmente vinculado a um sujeito, porque a figura de Akerman sofre, sobretudo no terceiro filme, uma violenta diluição.
A Cidade
News from Home, Chantal Akerman, 1976.
Em 1976, Akerman regressou a Nova Iorque e realizou News from Home, um filme em que imagens de Manhattan são acompanhadas por um par improvável: a realizadora, em voice-over, lê cartas que a mãe lhe enviou durante a sua primeira estada naquela cidade, em 1971. Nessas cartas a mãe relata a vida da família e pede a Chantal que envie, também ela, algumas notícias. Só quatro ou cinco anos mais tarde é que a rapariga responde a essas missivas, filmando finalmente a cidade onde as recebeu.
Num primeiro momento, News from home é, de entre os três filmes, aquele que parece poder ter a intenção de mostrar alguma coisa, uma espécie de tentativa ingénua de anunciar que a América existe mesmo, como se os planos, longos e maioritariamente fixos, pudessem funcionar como postais tardios. Se ao filmar Nova Iorque Akerman se constitui necessariamente como herdeira de filmes que evocam uma cidade mítica, como o icónico Manhatta (1921), de Paul Strand e Charles Sheeler, a câmara de Mangolte, sempre colocada ao nível do chão, diverge, também em termos de tom, daquela que ofereceu da cidade planos filmados do cimo de arranha-céus. E este é afinal, de entre os três filmes, aquele que mais abertamente contraria o papel denotativo das imagens, a possibilidade de o cinema funcionar como uma reconstituição fiel de lugares ou acontecimentos. News from home não é uma tentativa ingénua de resposta, mas reflecte sobre o que pode ser uma resposta: a sobreposição da leitura das cartas e das imagens da cidade problematiza a definição das segundas como réplica às primeiras. Em News from home, a falta do contracampo, frequentemente apontada a propósito do filme que Akerman realiza no ano anterior — Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles (1975) — como uma forma de construir um espaço ficcional de acordo com a dualidade aquele que vê e aquele que é visto, é colmatada pelas cartas: um outro ponto de vista, o da mãe, aquela que vê ou que, pelo menos, quer ver. Considerando o conceito de montagem paralela de modo talvez excessivamente amplo, poderíamos afirmar que News from home tem na sua origem essa técnica, comummente definida como a combinação de sequências ou cenas que têm lugar em espaços distintos, seja ao mesmo tempo, seja em tempos diferentes. Se este cruzamento começou, nos primeiros anos do cinema, por ter sobretudo um papel importante em termos de progressão diegética, de criação de tensão dramática, foram os cineastas soviéticos os primeiros a mais abertamente utilizá-lo como forma de, alternando sequências, motivar a criação de significados particulares. A leitura das cartas não tem o mesmo tipo de função que um acompanhamento musical de um filme mudo. As cartas são também elas brutos que Akerman monta, um contracampo sonoro, sem o qual News from home seria não apenas um filme mudo, mas um filme mutilado.
Mas aquela mesma sobreposição, antes devemos dizer aquele confronto, de som e imagem, instanciam de forma evidente uma descoincidência. Em primeiro lugar, porque as duas partes que constituem o filme são intrinsecamente anacrónicas: as cartas são lidas pelo seu destinatário anos depois da sua recepção e a cidade que Akerman filma já não é, em rigor, a cidade onde vivia quando as recebeu. Em segundo lugar, existe um outro nível de diferimento, instanciado pela materialização das figuras do remetente e do destinatário em duas bandas diferentes — a da imagem e a do som —, revelador de que a resposta de Akerman à mãe é uma resposta minada e aquele um diálogo comprometido. A associação daquelas duas bandas evidencia o afastamento das duas entidades que lhes estão associadas, afastamento que não depende de qualquer abstracta incomunicabilidade, mas é antes fruto de um desfasamento temporal e espacial muito precisos.
Pensamos apreender a cidade através das imagens, pensamos ouvir a mãe de Akerman, mas somos no fundo vítimas da ilusão da forma, da ilusão da referência — vemos Nova Iorque e ouvimos palavras sobre o estado do tempo em Bruxelas, mas a plácida sequência de imagens, cujo acompanhamento sonoro não foi captado de forma directa, é uma sequência de quadros opacos, impenetráveis, um fraco sucedâneo da vida de Akerman há quatro anos atrás, a invenção de um lugar, uma espécie de mentira que a realizadora produz para contrapor às palavras zelosas e preocupadas da mãe, os seus pedidos de uma fotografia, sem realmente lhes atender. A partir daquelas imagens, nenhum acesso é permitido a uma vida que, em rigor, já não decorre. Sendo, de certa forma, imagens de um tempo passado, são também, por extensão, imagens esvaziadas porque desabitadas, objectos em que o movimento é observável, mesmo que nenhuma centelha de vida o motive.
Da mesma forma, as cartas da mãe são como que corpos inertes, artificialmente animados pela voz da filha, que, desencarnada, insufla as cartas e, por extensão, a figura da mãe, sem que a sua alguma vez se torne palpável — um corpo é entrevisto constantemente, nas janelas de vidro das carruagens do metro ou nos carros, insinuando uma presença que nunca se torna absolutamente visível, como uma assombração. Pensemos nos olhares dos transeuntes directamente dirigidos à câmara ou no desvio de trajecto executado por alguns carros devido à obstrução que aquela causa. Se, no chamado Cinema Directo, o reconhecimento da presença da câmara serve sobretudo como forma de expor o olhar intrusivo do realizador, aqui aquele olhar ou afastamento serve antes para caracterizar a figura de Akerman como um espaço vazio.
Tudo o que vemos e ouvimos em News from home não são afinal mais do que sombras, indícios de antigas presenças. A coexistência de diferentes níveis dentro do filme contribui para a criação de um tempo intermédio, desprovido de uma existência real, cumprindo-se assim um inesperado propósito: a imagem e o som materializam um encontro que nunca aconteceu, dão corpo às entidades desaparecidas do remetente e do destinatário, mas afirmam, através do posicionamento de cada uma delas em dimensões distintas, a sua mútua impenetrabilidade.
News from Home, Chantal Akerman, 1976.
As várias carrinhas do correio que vemos ao longo do todo filme, cruzando-se com os magotes de gente que atravessam as ruas, e a panorâmica filmada ao alvorecer que nos conduz de um parque de estacionamento até ao edifício central dos correios da cidade parecem ser os únicos elementos que Akerman utiliza de forma literal. Servem mais uma vez, como as voltas de Akerman em La Chambre, para fazer notar a natureza circular e fechada de News from home, onde não se chega ao destino, porque não é possível conhecer as coisas em profundidade. Iludidos por um trompe l’oeil, o que vemos são volumes reduzidos a superfícies.
News from Home, Chantal Akerman, 1976.
A central dos correios é grande e imponente como um mausoléu e as carrinhas parecem errar tão sem destino quanto todas aquelas pessoas por entre as quais se misturam — como se Akerman notasse com brandura que as cartas se perderam no meio de todo o rebuliço. «J’espère que l’adresse c’est ça», diz a linha de uma das cartas da mãe, inquieta por achar que a falta de resposta se deve a algum engano ou extravio. News from home, a resposta enviesada àquela inquietação, é um esclarecimento muito belo, ainda que desesperançado.
O título Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles remetia de modo directo para a coincidência entre uma pessoa e um lugar — à semelhança de um envelope, em que o nome da pessoa é escrito directamente acima da sua morada, como se o nome do destinatário, qual toldo de estabelecimento, anunciasse o lugar (ou como se lugar pudesse servir para descrever o destinatário). Em News from home, somos constantemente lembrados da origem, da localização das imagens, estas remetem inequivocamente para um lugar, mas o modo como ele nos é dado a ver, tal como acontece em La Chambre e Hotel Monterey, onde a segmentação impedia a unificação da experiência, faz dele algo repartido.
É também nesse sentido que se torna pertinente dizer que News from home não pode ser lido como uma reconstituição do real: aquelas imagens, em articulação com a leitura das cartas, servem para presentificar um mundo que nunca existiu. O filme não torna a cidade tangível, no sentido em que não chega a torná-la sequer visível. Aquilo que vemos — as ruas desoladas, onde só um ou outro carro passam, as ruas cheias de gente, os edifícios, o interior do metro nada mais são do que partes de uma cidade fantasma, um conjunto de figuras que Akerman, como um menino de escola, anima no espectáculo de final de ano — o filme servirá muito pouco o maravilhamento dos pais, mas tem a sua virtude na qualidade das figuras. E tal como La Chambre e Hotel Monterey, News from home é, acima de tudo, sobre espaços e objectos que parecem animados sem na verdade terem uma alma.
O centro agregador do filme, a filha, não parece deixar-se fazer corresponder a um endereço e define-se antes como um ponto em fuga. Pode um endereço revelar a essência dos seres que o habitam? News from home efectiva precisamente a multiplicação das faces de um objecto — uma cidade que não se deixa captar: a única visão geral de conjunto que temos, no final, quando Manhattan é vista a partir de um ferryboat, acompanha o afastamento desse mesmo objecto. É o próprio filme, insinuando constantemente a distância entre aquilo que a mãe de Akerman pede e aquilo que Akerman lhe dá, a instanciar a impossibilidade da unificação, quando poderíamos tomá-lo como o seu redentor.