Entre a azáfama da estação ferroviária de Shoreditch High Street, rodeada de restaurantes, bares, lojas e galerias, e a famosa Brick Lane Avenue, existe uma antiga casa de tecelões setecentista, construção de tijolo com quatro andares, que foi recentemente transformada num cinema. Além de uma exígua sala de quarenta lugares e respectiva cabine de projecção, o espaço alberga uma colecção de livros e de DVDs com mais de vinte mil títulos, um café e um escritório — no centro existe um pequeno pátio que não deve ser desagradável em dias de sol. O Close-Up Film Centre, localizado em Sclater Street, tem defronte um lote para estacionamento e o antigo muro de tijolo que separa a rua dos carris.
Shoreditch fica na zona oriental de Londres, o chamado East End, durante séculos descrito como pobre, sujo, degradado, perigoso e sobrepovoado: «All the anxieties about the city in general then became attached to the East End in particular as if in some peculiar sense it had become a microcosm of London’s own dark life» (Ackroyd, 2001: 678). Próximo das docas e do Tamisa, estabeleceu-se como zona de comércio e de indústria, casa da classe trabalhadora e das vagas de imigrantes que ali se iam fixando quando chegavam à cidade, lugar de diversidade étnica e cultural, de mercados e associações locais, coração de movimentos subversivos, quer políticos, quer religiosos. Shoreditch, em particular, não é redutível a esta descrição, mas continua a ser, mesmo atendendo às rápidas alterações que sofreu em anos recentes, um eixo caótico, muito distinto da zona ocidental, mais próspera — o West End —, onde uma boa parte dos teatros e cinemas da cidade se encontra ainda hoje em dia, numa concentração desmedida de entretenimento. Se Damien Sanville, fundador e gerente do cinema, desejaria para a sua sala uma localização mais central, a condição ribeirinha, que entende comprometer a visibilidade do projecto, é, na verdade, mais constitutiva do próprio espaço do que intui.
Close-Up 1.0
Damien Sanville chegou a Londres no final dos anos 90. Vindo de Paris, trazia consigo desejos imberbes de fazer cinema à la Mekas — diarístico, captado com mão livre —, trabalhava aqui e ali, sem grande fito, e mostrava às vezes filmes às poucas pessoas que conhecia na cidade, em cassetes VHS alugadas, numa época em os clubes de vídeo eram negócio comum: além das inúmeras lojas com uma oferta de títulos mais generalista, como a Blockbuster e os seus congéneres mais modestos, existiam também alguns lugares com uma oferta mais especializada, nomeadamente no que respeita ao cinema independente ou estrangeiro. The Film Shop, que oferecia uma selecção de filmes clássicos, independentes e de autor, foi um dos modelos de Sanville, que, em 2005, abriu o seu próprio clube de vídeo, o Close-up, no número 139 de Brick Lane. Ali conhecia moradores e passantes e, apesar das frequentes reticências quanto ao esforço e dedicação pessoal implicados neste género de negócio, a paixão pelos filmes e um certo lado obsessivo mantiveram-no em actividade. A colecção de livros e filmes cresceu e em torno do Close-Up desenvolveu-se uma comunidade de membros que passaram a reconhecer Sanville como o tipo alto da loja de DVDs de Brick Lane. Durante sete, oito anos, as coisas foram correndo bem.
Dois elementos terão sido decisivos para o início do declínio. Por um lado, as transformações tecnológicas, que tornavam o desaparecimento destas lojas relativamente previsível, como reconhecia um humilde, mas ainda não resignado, anúncio de afogamento feito no website da Film Shop em 2011:
At the Film Shop we recognise the changing trends in film viewing habits and concede that a new era is dawning. It has surprised us in many ways that we have still survived after 15 years, considering that even back in 1996, people were forecasting the new dawn of digital downloads and it was confidently predicted that within 5 years, viewing films using a physical format would vanish forever. (...)
It is a testament, for the most part, to the loyalty of our customers (…) who come back to us, still attracted by the shop browsing experience, the possibility of human interaction and exchange of views that often occurs and not least, the formidable stock of new, old, obscure, artful and surprising films that we have in store.
We want to move with the times and repay your loyalty and support in these dark days. Dark days are made for film viewing however and within the next few weeks, The Film Shop will be offering Unlimited Rentals for £15 a month- 3 at a time, as many times as you like.
Reformular o sistema de subscrição foi apenas uma de muitas estratégias para contrariar o desaparecimento, motivado pela possibilidade de o cidadão comum aceder virtualmente a um extenso catálogo de títulos sem recorrer a um suporte físico, através de plataformas como a Netflix e de outros sistemas de subscrição mais especializados. Mas, em boa verdade, a história da exibição de cinema é a história de tecnologias que destronaram outras por terem mais movimento, mais som, mais cor, mais dimensões ou tão simplesmente por serem mais acessíveis, acarretando a ameaça da extinção para as espécies derrotadas, que deixaram de ser rentáveis e que se viram reduzidas a corredores mais ou menos iluminados de museus e a salas de projecção felizmente suportados por dinheiros públicos ou formas diversas de mecenato. De facto, a questão resumiu-se muitas das vezes, e ainda hoje, a uma luta entre qualidade e viabilidade — qualquer profissional da distribuição ou exibição cinematográficas tem frequentemente de justificar e defender a sua existência em termos meramente económicos. O Close-Up é, como veremos, um bom exemplo disso.
A par da transição tecnológica, a conjuntura económica terá sido o segundo factor decisivo. Por um lado, as alterações no mercado imobiliário que inflaccionaram as rendas das zonas onde as lojas em questão se localizavam, por outro, aquilo que os proprietários desses estabelecimento apontavam como o predomínio dos interesses corporativos sobre negócios locais ou independentes. O destino mais provável do Close-Up estava definido desde a sua fixação numa zona crescentemente gentrificada. A sobrevivência da loja durante mais de sete anos, a sua ulterior inviabilização, o encerramento em 2015 e a reabertura em diferentes moldes são exemplo de como as rápidas alterações em zonas como Shoreditch podem revelar-se ingratas: a mesma maleabilidade que permitiu a Sanville diluir-se naquela parte da cidade foi também a responsável pela sua expulsão. «Shoreditch and the creative Destruction of the inner city», escrito em 2004, antecipava já o que veio a acontecer:
Located between the enormous wealth of the financial district in the City of London and the (growing) poverty of Hackney and Tower Hamlets, its flashmob-like explosion into cultural and economic life became the apple of urban policy makers’ eyes in the late ’90s. Shoreditch’s convergence of culture and commerce evolving out of a once lively clubbing, music and (YBA) art scene has today reached a similar condition to that of Berlin Mitte or New York’s Lower East side. While the area now hosts bluechip art galleries formerly based in the West End, the initial ‘cultural’ elements that gave the area its charisma of community and experiment have mostly been killed off, priced out by rising rents, and supplanted by expensive apartments and culinary distractions – restaurants and bars – that make good the zone’s new fashionability.
2012 foi um ano decisivo para o Close-Up, seja pelo acumular de dificuldades trazidas pela crise económica, seja pelo lançamento da Netflix no Reino Unido — foi mais ou menos por essa altura que Sanville decidiu transformar a loja num cinema, quando a renda em Brick Lane se tornou insustentável — a antiga morada da loja é agora um Cereal Killer Cafe, uma daquelas mecas dos cereais açucarados, onde os bebés dos anos 80 e 90 buscam a felicidade perdida dos sábados de manhã em frente à televisão.
A mudança de coordenadas foi mínima — de Brick Lane para Sclater Street, menos de cem metros abaixo; mas significou o início de um difícil processo de remodelação do espaço que a proprietária da nova morada, e amiga de Sanville, ainda hoje arrenda por um preço inferior ao de mercado. Foram três anos de dificuldades ou, pelo menos, assim reza a história: manter o Close-Up (ainda loja) aberto para evitar perder dinheiro e clientela; desalojar uma das habitantes do novo prédio, remodelar o seu apartamento para construir a sala de projecção e reinstalar a senhora; comprar, em golpe de sorte, projectores analógicos de 35mm por uma pequena parte do seu preço; procurar andaimes na rua, de madrugada, para tratar de acabamentos necessários antes da noite de estreia.
Concluída no Verão de 2015, a sala de projecção foi finalmente inaugurada com a exibição de Opening Night (1977), de John Cassavetes, em jeito de celebração da travessia do deserto, como Sanville explicava em entrevista à Sight and Sound: «It’s an obvious choice in terms of Cassavetes being such a maverick, independent director who struggled. There is a distant identification in terms of our being independent and going through hurdles to raise money and to find ways to put something together».
Nesse Verão, Londres assistia ao fecho de duas importantes lojas — The Film Shop, com vinte anos de existência, e a Video City, com trinta —, ao mesmo que tempo que, nesse ano, inauguravam cinco cinemas na cidade: o Close-Up, o Deptford Cinema, a Picturehouse Central, o Curzon Bloomsbury e o Regent Street Cinema, todos eles ainda em funcionamento.
O regresso ao cinema
Se as lojas de vídeo se tornaram falíveis porque ofereciam o mesmo que as plataformas digitais — conteúdos —, uma forma de resposta foi fazer ressurgir o entusiasmo de ver cinema em sala. Aqueles cinco espaços fazem-no de forma significativamente distinta.
O Deptford Cinema é o objecto estranho da lista — um cinema de bairro, dependente de trabalho voluntário, inscrito num projecto mais amplo de divulgação das artes, que está pouco interessado em fazer dinheiro ou em exibir os «melhores filmes», mas antes em garantir que o seu espaço é economicamente acessível e usar o cinema como forma de iniciar discussões mais amplas.
A Picturehouse Central e o Curzon Bloomsbury, apesar de se autocaracterizarem como cinemas independentes, fazem ambos parte de cadeias e replicam o mesmo programa, com variações, nas suas várias sucursais. Como uma das funcionárias da Picturehouse sugeria, oferecem mainstream quality, uma descrição mais agridoce do que a sua autora poderia supor: títulos recentemente exibidos (todos eles estreados ou prestes a estrear em Portugal) incluem os «independentes» Call me by your name (Chama-me pelo teu nome), The Florida Project, On Body and Soul (Corpo e Alma), The Killing of a Sacred Deer (O Sacrifício de Um Cervo Sagrado), mas também os «comerciais»: Star Wars: The Last Jedi (Star Wars: Os Últimos Jedi), Paddington 2 (As Aventuras de Paddington 2), Murder on the Orient Express (Um Crime no Expresso do Oriente) ou Molly’s Game (Jogo da Alta Roda).
Também o Regent Street Cinema constitui uma remodelação de um cinema mais antigo e, apesar de partilhar com a Picturehouse e o Curzon alguma da programação, diferencia-se ligeiramente, sobretudo pela reposição de filmes clássicos, de que as matinés com The Big Heat (Fritz Lang, 1953), The Band Wagon (Vincente Minnelli, 1953) ou An Affair to Remember (Leo McCarey, 1957), frequentadas por um muito fiel público sénior, são exemplo.
Se, no inicio do século XX, as massas de espectadores procuravam nas salas de cinema não os filmes, mas um lugar quente e confortável para estar, a importância do espaço parece ter voltado em força. Em Londres, encontra-se cada vez mais cinemas com bares de aspecto luxuoso, assentos do tamanho de sofás, decoração ostensiva. O que oferecem, a preços por regra muito elevados, não será tanto cinema de qualidade, mas aquilo a que chamam uma experiência imersiva, e a verdade é que uma parte considerável deles está efectivamente a vingar.
Close-up 2.0
É neste contexto que o projecto do Close-Up surge como algo particular, mesmo que não absolutamente original. Sanville é filho de uma tradição que vê no cinema uma forma de arte e que despreza as tentativas de o reduzir a entretenimento. Mas o espírito do francês é menos o de um amador do que o de um negociante. Não dispondo de nenhum apoio financeiro externo além das receitas provenientes da bilheteira, do café e das quotas dos associados, tem de fazer valer o Close-Up pela importância da sua programação — transformando, de certa forma, aquilo a que chama arte em capital. O modo como projectou o cinema e a tentativa de manter viva a aventurosa história dessa construção revelam bem isso.
O Close-Up pretende definir-se como parente de museus e arquivos fílmicos, instituições que procuram manter viva a história do cinema. Longe da ousadia e da consistência do projecto que tem como referência — o nova-iorquino Anthology Film Archive, centro de estudo, difusão e preservação, fundado nos 70 por Jonas Mekas, P. Adams Sitney, Peter Kubelka, Stan Brakhage e Jerome Hill —, o cinema de Sanville é ainda assim um lugar importante de reposição de nomes canónicos do cinema, exibindo ocasionalmente obras de realizadores menos conhecidos. Os programas apresentados ao longo de quase três anos incluem Andrei Tarkovski, Pier Paolo Pasolini, Sergei Eisenstein, Yasujiro Ozu, Leos Carax, Chantal Akerman, Andrzej Wajda, Abbas Kiarostami, Werner Herzog, David Lynch, muitos deles amores antigos de Sanville, mas também nomes mais obscuros, como Peter Hutton, Shirley Clarke, Stan Brakhage, Peter Tscherkassky, Bill Morrison ou Jem Cohen.
Em articulação com a programação, a identidade do Close-Up depende igualmente das características da sala de cinema, nomeadamente das condições de projecção, bem como da manutenção da colecção de livros e DVDs, herança da loja que se distribui pelo rés-do-chão e cave do centro, acessível para consulta e requisição. Esta biblioteca (assim estrategicamente rebaptizada) inclui títulos nem sempre fáceis de encontrar, tenta responder à ideia ilusória de que tudo passou a estar disponível online. Se a era digital não matou a cinefilia, antes permitiu que esta ganhasse novos contornos, como o crítico norte-americano Jonathan Rosenbaum costuma lembrar, acreditar simplesmente que a disponibilização de conteúdos online é suficiente está longe de ser uma resposta cautelosa — é talvez por isso que o Close-Up é um bastião importante.
Aqueles dois elementos — a sala e a colecção de livros e DVDs — ligam-se a um intuito de defesa e divulgação de um legado, intuito que o francês, de modo mais ou menos comprometido, tem vindo a acalentar. Como parte dessa colecção, podemos considerar a revista Vertigo, que inclui contribuições de figuras centrais dos estudos fílmicos britânicos e cujos números o centro tem vindo a disponibilizar online. Não deixa, a propósito disto, de ser irónico que esta publicação, fundada em 1993 e financiada por fundos estatais, tenha dependido de pessoas sem ligação a essas mesmas instituições para voltar a ver a luz do dia.
No editorial de um número de 2012 da revista, dedicado a Jean-Luc Godard, e em resposta ao porquê de publicar mais escritos sobre cinema quando muito do que se publica é um pobre acrescento a algumas peças valiosas já existentes, Sanville dizia: «To incite, by any means, the desire to see these films which otherwise would be lost in the cultural wasteland we are crossing.». Na esteira de figuras como Susan Sontag, no apocalíptico «The Decay of Cinema», Roland Barthes, em «On leaving the movie theatre», ou Raymon Bellour, no seu «The Cinema Spectator: A Special Memory», Sanville cultiva a ideia de que a sobrevivência do cinema depende da existência de pessoas que o amem e de certas formas de o ver, nomeadamente aquela que Bellour define como condição fundadora de uma relação de proximidade entre um espectador e um filme:
The theater. Darkness. The fixed time of the screening, whatever form it takes (even those private sessions that bored Roland Barthes so much), as long as it preserves the experience of a projection in time and its inscription on the memory-screen, so that a special kind of work can occur (2012:211)
A experiência imersiva que o Close-Up oferece é bem diferente da que comentámos a propósito dos «cinemas boutique» — o que mais interessa é garantir uma boa projecção. Mesmo que as condições não sejam as mais esplendorosas (manifestem-se agora os apreciadores de salas pequenas), Sanville, reduzindo a sala ao estritamente necessário, conseguiu equipar a cabine com aparelhos que projectam vários suportes, analógicos e digitais. Isto concede-lhe um conjunto invulgar de trunfos, como Edward Lawrenson evidencia na entrevista de Sanville à Sight and Sound:
Sanville is clearly a celluloid enthusiast on aesthetic grounds, but a marketing logic underlines his advocacy of the medium. “It’s very important as a selling point.” he says of the 35mm screenings. “With the internet, with DVDs, with proper home cinemas, it’s going to be harder to convince people to come to the cinema to see a digital print when they have exactly the same quality as at home. So showing film on film is unique. It’s becoming quite standard to say you’re projecting on 35mm: it’s a completely different experience and everyone knows it.”
Talvez o sucesso destes primeiros anos do projecto enquanto cinema se devam ao facto de o amor de Sanville pelos filmes ser relativamente escrupuloso, mas não suficientemente maníaco, e de haver nele um lado que se ocupa em vender as coisas que o outro lado ama — se o custo do aluguer e transporte de uma cópia de 35mm for incomportável considerando as suas limitações de orçamento, não terá grande problema em mostrar esse filme em suporte digital. Se o Close-Up não é um santuário, tem pelo menos, enquanto projecto, uma certa coerência e um objectivo preciso, o de dar a ver os filmes — contrariamente, por exemplo, a um arquivo cujas cópias não sejam regularmente exibidas. O trabalho do Close-Up pode ser, em certo sentido, um pouco limitado, por se concentrar demasiado nos autores que qualquer cinéfilo já conhece ou até mesmo por promover pouco a diversidade dentro do leque de coisas que podem caber dentro do chapéu das «obras intemporais da história do cinema». Mas, em boa verdade, olhando para a programação de cinema oferecida em Londres, o Close-Up não se sobrepõe à oferta existente — antes completa lacunas.
Por outro lado, a mudança de morada significou que o grupo atomizado de sócios da loja de vídeo pode transformar-se numa comunidade mais sólida. Contrariamente ao toca e foge do primeiro, onde o elo comum eram unicamente os DVDs e a pessoa atrás do balcão, centro unificador de todos os movimentos, o actual espaço, pela zona do café e pelos seus bons sofás onde ficar a ler, mas também através das sessões de cinema, dos lançamentos de livros e da organização de cursos livres, constitui-se enquanto lugar com o qual se pode ter uma ligação mais duradora, um recurso onde regressar de tempos a tempos. As plataformas digitais — mesmo as mais especializadas e de qualidade, como a MUBI, a Fandor ou a Filmin, plataforma de origem espanhola recentemente lançada em Portugal — não parecem permitir o mesmo tipo de relação, talvez pela sua vida imaterial (já não há uma cara que podemos ver semana sim, semana não) e pelos seus gestos de recomendação algorítmicos. Mas manter um espaço acarreta custos e a velho problema da rentabilidade, iniciado com a loja, continua a subsistir.
Close-Up 3.0
Às vezes, Sanville gostava de deixar de ter de se ocupar do centro, manter os filmes só para si, levar uma vida sossegada e mais segura. Passa no Close-Up grande parte do seu tempo — no dia da minha visita, trocava lâmpadas e resolvia infiltrações. A mesma pessoa que instalou uma sala de cinema num prédio oitocentista, em cuja fachada não podia tocar por estar o edifício classificado, acalenta agora ideias de transformar o Close-Up numa plataforma digital semelhante àquelas que o destronaram, como se dali lavasse as suas mãos. A ideia é criar um bom catálogo online dedicado ao cinema de vanguarda e experimental, acessível através de um serviço de subscrição internacional. O orgulho que nutre pela colecção, nomeadamente pelos DVDs, é frequentemente abalado pelo facto de a ver como um empecilho, um excesso material muito difícil de manejar e de manter. Há, de facto, um lado obsoleto e pouco eficiente no centro. Lembre-se a transcrição manual (em vez de uma bem mais simples e convertível digitalização) de dezenas de números da Vertigo, talvez uma boa prova de que o Close-Up é simultaneamente uma forma de dedicação ao cinema e a demonstração da sua insustentabilidade.
Se existe em Sanville arrebatamento em relação aos filmes, há nele pouca abnegação ou idealismo. Mais do que com o guardião de um arquivo, o francês é parecido com os pequenos empresários, frequentemente imigrantes, que abriam cinemas no início do século XX, quando ter uma sala era, muito mais do que hoje, uma promessa de prosperidade. A ideia de desmaterializar o Close-Up é precisamente uma forma de adaptação, de tornar o negócio rentável. A ideia de uma colecção de filmes que não esteja fixada em nenhum sítio, que possa ser gerida em qualquer parte do mundo agrada muito ao francês, de quem uma amiga dizia, «He is lovely but in a bitter funny Black Books-kind of way», em referência a Bernard Black, o livreiro da série televisiva que odiava os seus clientes. Sans ville, chegado de Paris a um bairro de párias, que organiza os DVDs por país de origem do realizador (e só depois pelo nome), deixaria a Grã-Bretanha e quem sabe a Europa. O Close-Up podia estar em qualquer lugar do mundo, que não em Sclater Street? Provavelmente sim. Mas imaginar um Close-Up sem uma localização física, reduzi-lo a um cinema online, ao qual podemos aceder a partir de casa, pode não ser o apocalipse, mas é certamente um pouco triste, ainda que Sanville, intrépido, acabe muito certamente por tentar.
BIBLIOGRAFIA
Ackroyd, Peter (2001) “The stinking pile” in London: The biography, London: Vintage, pp. 675-688.
Barthes, Roland. (1980) "Upon Leaving the Movie Theatre." In Apparatus. Edited by T.H.K. Cha. Translated by B. August and S. White. New York: Tanam Press.
Lawrenson, Edward, “Farewell, Leicester Square, in Sight and Sound, Vol. 25 No. 08, August 2015.