Numa das sequências de As I Was Moving Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty, Jonas Mekas diz dar por si sem saber onde exactamente começa e acaba a sua vida e, por extensão, o que é ou o que significa. Em resposta a essa irresolução, diz-nos que no meio do processo de composição daquele filme hesitou também acerca da melhor forma de organizar as bobines que o viriam a constituir. Primeiro, pensou organizá-las cronologicamente. Depois achou que seria melhor aceitar a disposição em que as tinha encontrado na estante, onde as arrumara ao acaso. A justificação para esse princípio organizativo vem, diz-nos, de não saber onde é que cada pedaço da sua vida pertence — a obediência à cronologia não resolveria a questão. Os seus filmes não dão conta da pergunta em absoluto, mas encontram para ela uma resposta enviesada.
Indagar, no meio da arrumação de bobines, onde começa e acaba uma vida sublinha a contaminação, não particularmente surpreendente, dada a inclinação de Mekas para a diarística, entre a sua vida e os seus filmes. Essa contaminação começa por ser um lento extravasar de vida para dentro de filmes, mas depressa se transforma numa inquinação em sentido contrário. A possibilidade mais ostensiva é a de a vida ser redefinida pela organização que dela os filmes fazem, num mundo em que a ordem dos rolos impera sobre a ordem dos dias. Nesse mundo inverso, os limites da biografia deixam de ser biológicos. Num curto auto-retrato de 1980, cuja duração e consequentemente os limites são definidos pela extensão do rolo de película, Mekas inquieta-se muto ligeiramente por pensar como pode ser este um filme seu, se ainda não filmou nada: tornou-se objecto da sua câmara, ao invés de ser seu operador. O que indirectamente recusa é a possibilidade de ser o seu corpo e não as imagens por si criadas a definir um filme seu, ou antes, e mais curiosamente, um seu auto-retrato. Mekas parece aqui considerar mais importante o acto de filmar do que o acto de existir. Há, para esta aparente boutade, uma razoável explicação: o seu auto-retrato não precisa de ser constituído pela imagem do seu corpo, mas pode antes ser definido pelas imagens de coisas exteriores a si. Essas imagens tornar-se-ão mais significativas do que o corpo e a existência de onde provêm.
No seu solilóquio, Mekas reconhece que a maior parte da sua vida ficou por filmar, que os momentos registados são uma porção pequena de uma massa de tempo mais extensa. A pergunta central que coloca, entre um e outro gole de cerveja, é se aqueles pequenos pedaços, expandidos, podem tornar-se a representação da sua vida: se comer um estaladiço e gordo croissant pela manhã, numa esplanada soalheira de uma cidade de província francesa, pode apagar as horas de fome; se as gargalhadas no meio dos campos, no seio do clã lituano, apagam as horas passadas sozinho em terra alheia.
Aqueles vinte minutos erráticos, um auto-retrato em 1980, talvez condensem bem a resposta que este texto aflora. Desses minutos, durante os quais o realizador hesita em frente à câmara, vai e vem, por não ter preparado muito bem o que ia dizer, o que nos fica é a sua imagem despreocupada debaixo de um sol de primavera já demasiado quente. Mekas, destilador, às árvores vi-as em flor ou já despidas. Nunca das árvores viu o tempo que por elas passou. Mekas e o seu clã só existiram ao sol, com cores fortes, vivas, por poucos segundos. Passámos os olhos por eles, não lhes vimos as faltas ou as imperfeições. Os seus são reflexos vitais, doces e ténues, como costuma ser qualquer primeiro amor — a promessa de uma vida em botão, que só contém o fulgor da nascente e nunca a degradação da morte: as proverbiais flores de Mekas, rápidas, entrecortadas, a vida revelada. Cedo são roubadas aos nossos olhos, só as entrevemos. Só nos oferece delas um vislumbre, para não as deixar desparecer, para que por debaixo daquelas flores nunca se possa adivinhar a ameaça da extinção.